
Faleceu nesta quarta-feira (5), aos 83 anos, a química, militante e intelectual Elvira Ballester Lafertt, esposa do dirigente comunista Raul Carrion e figura fundamental nas lutas pela democracia no Brasil e na América Latina.
Natural de Santiago do Chile e filha de dirigentes comunistas chilenos, Elvira conheceu Carrion em 1972 no exílio imposto a ele pela ditadura. A partir de então, passaram a compartilhar a vida. “Tive a felicidade de conhecê-la no início de 1972. Logo a nossa amizade transformou-se em amor. Sua vasta cultura, sua extrema sensibilidade e generosidade, sua firmeza de caráter, as afinidades ideológicas e psicológicas, o grande respeito mútuo, fizeram com que eu lhe propusesse unirmos nossas vidas”, relatou Carrion ao comunicar a morte da companheira.
Publicamos a seguir o sensível comunicado de Raul Carrion despedindo-se de Elvira. A ele e sua filha Maria Victoria, nossos mais sinceros sentimentos.
Partiste, mas ainda está aqui
RAUL CARRION
Com imensa dor, comunico o falecimento, no dia de hoje, de Elvira Ballester Lafertt, minha companheira, amiga e esposa, ser humano extraordinário, que por mais de 53 anos compartiu comigo – e com nossa maravilhosa filha Maria Victoria – alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, na luta pela construção de um mundo mais livre, mais justo e mais humano.
Elvira nasceu em 1941, em Santiago do Chile, filha de dois militantes do Partido Comunista do Chile – José Ballester, combatente republicano na Guerra Civil Espanhola – e Marina Lafertt – sobrinha-neta de Elias Lafertte, líder mineiro que presidiu o PC do Chile, foi Senador e candidato a presidência do Chile.
Graduada em Química (1966) na Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, na União Soviética, Elvira passou a trabalhar como pesquisadora e professora de Química nos Cursos de Química, Biologia e Medicina da Faculdade de Ciências da Universidade do Chile.
Tive a felicidade de conhecê-la no início de 1972. Logo a nossa amizade transformou-se em amor. Sua vasta cultura, sua extrema sensibilidade e generosidade, sua firmeza de caráter, as afinidades ideológicas e psicológicas, o grande respeito mútuo, fizeram com que eu lhe propusesse unirmos nossas vidas.
Foi um amor incondicional, pois a qualquer momento eu poderia ter que voltar ao Brasil, o que só não ocorreu porque o PCdoB decidiu que eu, Diógenes Arruda, Dynéas Aguiar e outros camaradas ficássemos no Chile, para organizar a solidariedade à luta do povo brasileiro contra a ditadura militar, no que Elvira, seus pais e os camaradas do PC do Chile muito ajudaram.
Juntos festejamos os avanços do governo Allende, juntos sofremos o golpe terrorista de Pinochet. Obrigado a me asilar na Argentina, Elvira abandonou tudo e viajou com Maria Victoria para Buenos Aires para ficarmos juntos. Pela sua capacidade técnica, tornou-se gerente de produção e desenvolvimento da SINTORGAN, empresa que produzia insumos de alta pureza para a indústria farmacêutica.
Em 1976, o golpe de Videla me fez retornar clandestinamente ao Brasil. Elvira e Maria Victoria permaneceram na Argentina, por razões de segurança. Após três anos de separação, decidimos reunirmos novamente. Elvira abandonou o seu trabalho e a sua vida estável em Buenos Aires e junto com Maria Victoria viajou para Goiânia, onde eu vivia na clandestinidade. Em fins de 1979, com a Anistia, viemos para Porto Alegre e retomamos a vida legal.
Não tendo conseguido reconhecer o seu curso de Química no Brasil e convidada pela SINTORGAN – que não abria mão de sua competência técnica – a trabalhar três a quatro meses a cada ano em Buenos Aires, Elvira aceitou. Isso nos obrigou a novas e longas separações. Após alguns anos, decidimos pôr fim a essa situação e Elvira começou a trabalhar em computação, para o que fez diversos cursos.
Com o seu trabalho na área de computação – na maior parte das vezes voluntário – ajudou o PCdoB a informatizar os dados de seus 15 mil novos filiados, obtidos na campanha de filiação que nos foi imposta pela legislação eleitoral, no início dos anos 90, para confirmar o registro do PCdoB. Também colaborou na secretaria de finanças do PCdoB-RS, no mandato da deputada estadual Jussara Cony e nos meus mandatos de vereador e de deputado estadual.
Secretária-executiva do Centro de Estudos Marxistas RS (CEM-RS), foi decisiva na realização de dezenas de seminários, e na publicação de quatro livros. Da mesma forma, como secretária-executiva do Centro de Debates Econômicos Sociais e Políticos RS (CEDESP-RS), foi fundamental na organização de três Seminários Internacionais na UFRGS – precursores do Fórum Social Mundial, que geraram três livros – e de outros três Seminários Internacionais, nos primeiros Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre.
Não tendo conseguido contabilizar os seus anos de trabalho no Chile e na Argentina e tendo contribuído na maior parte do tempo como autônoma, Elvira só se aposentou aos 70 anos, depois de toda uma vida dedicada à luta por “um outro mundo possível”, mais livre e mais justo, um dia socialista!
É dessa grande mulher – que sempre fez o seu trabalho sem preocupar-se em “luzir”, capaz das maiores renúncias para que pudéssemos estar juntos, que me despeço hoje – com o coração partido e uma saudade imensa!
A homenageio compartindo a poesia “Fruta Aberta”, do poeta Thiago de Mello.
A FRUTA ABERTA
THIAGO DE MELLO
Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.
Agora sei as coisas como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.
Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com a tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.
Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.