
Entre 2000 a 2023, 344 cidades retomaram o controle público sobre os serviços de água e esgoto, revela levantamento da BBC
Em uma manobra na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), os deputados aprovaram em regime de urgência a votação para a privatização da Sabesp. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), autor do projeto, já deixou claro que seus principais projetos políticos eram entregar a Sabesp, a companhia de saneamento estadual, à iniciativa privada.
Fundada em 1973, a empresa atende mais de 28 milhões de habitantes com água tratada e 25 milhões com coleta de esgoto, em 375 dos 645 municípios do estado (58% do total).
Atualmente, a Sabesp é a maior empresa de saneamento da América Latina, a terceira maior do mundo e há mais de 20 anos não dá um real de prejuízo aos cofres públicos. Dados públicos apresentados pela própria companhia apontam que a empresa disponibilizou vários bilhões de reais na forma de dividendos para o governo investir, além de distribuir bilhões em lucros aos acionistas. Apenas em 2022 foram 3 bilhões de reais de lucro líquido.
Com isso ao privatizar a Sabesp, Tarcísio vai à contramão de uma tendência global. Crescem no mundo exemplos que vão à direção oposta, devolvendo a gestão das águas ao controle público após períodos de concessão privada.
Segundo o portal BBC News Brasil, entre 2000 e 2023, houve 344 casos de “remunicipalização” de sistemas de água e esgoto mundo afora, a maioria na Europa, de acordo com levantamento do banco de dados Public Futures, coordenado pelo Instituto Transnacional (TNI), na Holanda, e pela Universidade de Glasgow, na Escócia.
De acordo com Lavinia Steinfort, coordenadora do projeto de Alternativas Públicas do TNI, essas reversões têm sido motivadas por problemas reincidentes em experiências de privatização e parcerias público-privadas (PPPs), como serviços inflacionados, falta de transparência e investimentos insuficientes.
“A experiência mostra repetidamente como a privatização gera aumentos de tarifas e torna a água menos acessível à maioria da população”, afirma a pesquisadora e geógrafa política.
Ainda, segundo a pesquisadora, frequentemente a remunicipalização é motivada por saltos nos preços após concessões privadas. Ela cita os exemplos de Paris, onde as tarifas de água aumentaram 174% entre a privatização, em 1985, e 2009; Berlim, onde subiram 24% entre 2003 e 2006; e Jacarta, capital da Indonésia, onde triplicaram entre 1997 e 2015, quando um processo judicial movido por cidadãos obteve uma primeira vitória judicial para anular contratos com o setor privado.
Além disso, investimentos privados são movidos por metas de lucros, o que a seu ver termina por comprometer o acesso a um direito humano essencial que exige investimentos volumosos que não podem depender de gerar retorno financeiro.
Cidades como Berlim, Paris, La Paz, Maputo e Buenos Aires são exemplos de lugares que retomaram o controle público sobre seus sistemas de saneamento, algumas após lutas judiciais ou sociais, revertendo processos de privatização, ao contrário da tendência que se vê no Brasil.
“A tendência a privatizar se baseia em uma ideologia ultrapassada de que o setor privado é mais eficiente. Hoje, temos evidências crescentes de que não é o caso”, afirma Steinfort, ressaltando que a preocupação se torna ainda mais premente com o agravamento da crise climática, o avanço de governos da extrema-direita no mundo e ameaças cada vez maiores ao direito humano à água.
De acordo com estudos da TNI, cerca de 90% dos sistemas de água no mundo são de gestão pública. Dados da Federação Mundial de Operadores Privados da Água, a AquaFed, indicam que cerca de 10% da população mundial é atendida por sistemas privados.
A privatização de serviços de água e esgotamento sanitário começou a se expandir nos anos 1980, em muitos casos impulsionada por cenários de austeridade, crises fiscais e instituições financeiras internacionais. Entretanto, a gestão privada ainda representa uma fatia pequena do setor.
“É uma desproporção enorme”, afirma o pesquisador Léo Heller, da Fiocruz Minas, ex-relator especial da ONU para o direito à água e ao saneamento. Mundialmente, ele diz que não há uma movimentação em curso para inverter esse balanço.
BRASIL É GRANDE EXCEÇÃO DO MUNDO
“O Brasil hoje é a grande exceção do mundo”, afirma Heller. “A tendência mais forte tem sido de fortalecer sistemas públicos ou de remunicipalizar sistemas privados. Há iniciativas de privatização, mas menos que no passado. A tendência predominante tem sido de se afastar de sistemas privados”, afirma ele, que é coordenador de relações internacionais do Observatório Nacional para Direitos a Água e Saneamento (Ondas).
Segundo Heller, não há um padrão linear entre gestão pública ou privada de sistemas de água baseado no nível de riqueza ou desenvolvimento de um país.
“Tanto países mais pobres quanto os mais ricos implantaram sistemas privados. Países estatizantes como a França privatizaram massivamente, enquanto os Estados Unidos, com toda a sua tradição neoliberal, privatizaram muito pouco”, exemplifica.
Na Europa, países Escandinavos, Bélgica e Holanda mantêm sistemas públicos; França e Espanha são exemplos de países onde sistemas privados se proliferaram.
“Hoje, o Brasil é o único país que está ingressando de forma determinada e com velocidade em direção à privatização. O que surpreende, aqui, é que não são casos individuais, impulsionados por características locais, mas sim um direcionamento de política pública, estimulado pelo governo através de incentivos do BNDES”, considera Heller.