O jurista Miguel Reale Jr. avalia que o conjunto de provas obtidas pela Polícia Federal colocam o ex-presidente Jair Bolsonaro “no meio da tentativa de golpe de Estado” que resultou nos ataques do dia 8 de janeiro.
“Quando Bolsonaro não teve apoio do Exército e nem da Aeronáutica e ficou com os fuzileiros navais, mas não houve concretização, de quem ele se vale? Da Polícia Militar do Distrito Federal. No conjunto da obra se reforça claramente a sua intencionalidade e sua participação no que aconteceu no 8 de janeiro”, afirmou Reale Jr. em entrevista ao UOL.
O jurista citou a elaboração, por parte de Jair Bolsonaro e seus auxiliares, de decretos presidenciais que visavam anular as eleições. Bolsonaro chegou a levar os documentos para os comandantes da Forças Armadas para buscar apoio, mas não conseguiu.
“Há demonstração clara e evidente da intenção de Bolsonaro de dar o golpe”, assinalou Miguel Reale Jr. A intenção, continuou o jurista, se realizou no golpe do dia 8 de janeiro.
“Primeiro, o golpe. Não deu certo? Ele [Bolsonaro] vai fazer uma ocupação [em frente ao Quartel-General do Exército] e esperar que tropas sejam alimentadas por essa ocupação”, explicou.
“Essas pessoas [os acampados] foram alimentadas por quanto tempo? Essa ideia de tomar os poderes foi alimentada dentro do acampamento o tempo todo”, acrescentou.
“O 8 de janeiro não foi uma infantaria de idiotas que saiu por conta própria para invadir. Não, foi tudo organizado. Tanto que um grupo foi para o Palácio do Planalto e outros para o Congresso e Supremo [Tribunal Federal]”, disse.
“A ideia era essa: vamos sentar e esperar que as Forças Armadas cheguem e ocupem esses lugares. Era uma tentativa de desestabilização efetiva do governo Lula para criar uma oportunidade de assunção das Forças Armadas”, sustentou.
Ele citou o ataque dos bolsonaristas contra a sede da Polícia Federal, no dia 12 de dezembro, e a tentativa de explodir um caminhão-tanque no Aeroporto de Brasília, no dia 24 de dezembro.
“É o conjunto da obra que leva claramente a que o Bolsonaro não era meramente um assistente distante dos preparativos do golpe. Os acampamentos na frente dos quartéis são o caldo de cultura para o golpe”, acrescentou.
“Os atos que estão sendo revelados pelos [ex-]comandantes do Exército e da Aeronáutica complicam muito o Bolsonaro em relação ao 8 de janeiro”, apontou.
“O conjunto da obra coloca Bolsonaro no meio da tentativa de golpe. Mostra que Bolsonaro é o organizador disso. Não de um golpe via estado de defesa, porque ali permaneceu no ato preparatório, mas do golpe que aconteceu concretamente no 8/1”, considerou, ainda.
Os dois ex-comandantes, general Freire Gomes e brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, confirmaram que Jair Bolsonaro levou até eles os decretos de golpe.
Baptista Junior avalia que, “caso o comandante [Freire Gomes] tivesse anuído, possivelmente a tentativa de golpe de Estado teria se consumado”.
“Em uma das reuniões dos comandantes das Forças Armadas com o então presidente da República, após o segundo turno, depois de o presidente Jair Bolsonaro aventar a hipótese de atentar contra o regime democrático, o general Freire Gomes afirmou que se caso tentasse tal ato teria que prender o presidente da República”, completou.
Miguel Reale Jr. foi professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso. Reale foi um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e também assinou pedidos contra Bolsonaro.
Leia trecho da minuta de GLO que Bolsonaro apresentou ao comandante Freire Gomes:
“Ordem e Progresso: o lema de nossa bandeira requer nossa constante luta pela ‘segurança Jurídica’ e pela ‘liberdade’ no Brasil, uma vez que não há ordem sem segurança jurídica, nem progresso sem liberdade.
“Nossa Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, reúne normas gerais favoráveis a ‘segurança jurídica’ e a liberdade da sociedade brasileira na medida em que direitos e garantias (como o direito a vida, a liberdade e a igualdade), princípios fundamentais (como o devido processo legal, o contraditório e a imparcialidade) e remédios constitucionais (como o Habeas Corpus ou o Habeas Data) foram criados pelo Constituinte em linha com os interesses de todos os membros da sociedade brasileira.
“Sem dúvida, neste contexto, a ideia de justiça para o Direito do Estado presume que o Poder emana do povo e que a realização da justiça é um imperativo para a sociedade e os agentes públicos. É dizer, numa perspectiva constitucional, a ideia de justiça para o Direito depende de leis justas e legitimas no Estado Democrático de Direito, assim como de decisões judiciais justas e legitimas. Para tanto, devemos considerar que a legalidade nem sempre é suficiente: por vezes a norma jurídica ou a decisão judicial são legais, mas ilegítimas por se revelarem injustas na prática. Isto ocorre, quase sempre, em razão da falta de constitucionalidade, notadamente pela ausência de zelo a moralidade institucional na conformação com o ato praticado.
“Devemos lembrar que a Constituição Federal de 1988 inovou ao prever expressamente o ‘princípio da moralidade’ no caput de seu artigo 37.
“Este princípio constitucional (de inspiração humanista e iluminista) surgiu na Jurisprudência do Conselho de Estado Francês há mais de 100 anos, como forma de controle para o desvio de finalidade na aplicação da lei. Para além de seu reconhecimento e aplicação na França, o Princípio da Moralidade também vem servindo de baliza para o exercício dos agentes públicos em outros países.
“A evidência, de forma louvável e pautada por este precedente, a Constituição Federal de 1988 converteu a “moralidade” em fator de controle da “legalidade”, inclusive quanto a interpretação e aplicação do texto constitucional e de suas lacunas, justamente para conferir a justa e esperada “legitimidade” aos atos praticados pelos agentes públicos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.
“Insta dizer que o Princípio da ‘Moralidade Institucional’ presume a probidade, qualquer agente publico, ou seja, sua honestidade e lisura. Ele proíbe o desvio de finalidade, enquanto arbitrariedade supralegal. Enfim, não permite que leis e/ou decisões injustas sejam legitimadas por atos autoritários e afastados do marco constitucional.
“De modo geral, todo servidor público (seja ele um Ministro do Supremo Tribunal Federal ou um ‘gari’ de uma cidadezinha do interior) deve atuar sempre de acordo com o “Principio da Moralidade Institucional: deve atuar de forma íntegra e legitima, sempre de acordo com ajusta legalidade!
“O ‘servidor público’ no exercício da magistratura não pode aplicar a lei deforma injusta, ou seja, contra a Constituição em especial de modo contrario ao Principio da Moralidade Institucional, isto porque, este mandado constitucional não pode ser afastado, nem ter o seu alcance mitigado: deve sempre ser considerado aplicado. Do contrário, teremos uma atuação ilegítima.
“O juiz de direito (seja ele ministro do STF, ou não) nunca pode agir sem a devida e esperada conformação de suas decisões a moralidade institucional.
“Enquanto, os “guardiões da Constituição”, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, STF, também estão sujeitos ao “Principio da Moralidade”, inclusive quando promovem o ativismo judicial.
“Aliás, o desmedido ‘ativismo judicial’ e a aparente ‘legalidade’ (desprovidas de legitimidade; contrárias ao Principio da Moralidade Institucional; e, assim injustas) não podem servir de pretextos para a desvirtuação da ordem constitucional pelos Tribunais Superiores, sendo vejamos, entre outros, algumas situações recentes:
- 1) as normas legitimas autorizando a atuação de juízes suspeitos (nestas eleições, o Ministro Alexandre de Moraes nunca poderia ter presidido o TSE, uma vez que ele e Geraldo Alckmin possuem vínculos de longa data, como todos sabem);
- 2) as decisões legitimas permitindo a censura prévia (restringindo as prerrogativas profissionais da imprensa e de parlamentares, por exemplo);
- 4)as decisões afastando muitas “causas justas” da apreciação da Justiça (o TSE não apurou a denúncia relativa à falta de inserções de propaganda eleitoral);
- 3) as decisões limitando a transparência do processo eleitoral e impedindo o reconhecimento de sua legitimidade (impedindo o acesso do Ministério da Defesa ao “código-fonte” das urnas, não apurando a denúncia do PL quanto às urnas velhas; e, ainda, impondo multa arbitrária confiscatória para constranger o PL em razão de suposta litigância de má-fé — aliás, os dois primeiros dígitos da mula importa coincidem com o número do partido politico em questão); e
- 4) as decisões abrindo a possibilidade de revisão do “transito em Julgado” de importantes matérias já pacificadas pelo STF (notadamente, para prejudicar os interesses de certos e determinados contribuintes)
“É importante dizer que todas estas supostas normas e decisões são ilegítimas, ainda que sejam aparentemente legais e/ou supostamente constitucionais, isto porque, são verdadeiramente inconstitucionais na medida em que ferem o Princípio da Moralidade Institucional: maculando a segurança jurídica e na prática se revelando manifestamente injustas.
“Para além deste fundamento comum de verdadeira inconstitucionalidade, outros princípios, direitos e garantias também restam vulnerados deforma pontual. Enfim, são normas e decisões aparentemente constitucionais, mas inconstitucionais, em verdade) que colocam em evidência a necessidade de restauração da segurança jurídica e de defesa às liberdades em nosso país.
“Não à toa, encontramos ao longo da história algumas ideias convergentes ao apelo de nosso discurso.
“Na Antiguidade, “Dar a cada um o que é seu” já era uma ideia defendida por Aristóteles, como definição de justiça e princípio de direito. No Iluminismo, a necessidade de “resistência às leis injustas” já era uma ideia defendida por Tomás de Aquino. Mais recentemente, após a Segunda Guerra Mundial, Otto Bachof defendeu na Alemanha a possibilidade de controle das normas constitucionais inconstitucionais, em especial ao reconhecer a existência de um direito supralegal, ou seja, um direito pressuposto natural acima da Constituição e de suas normas.
[Aqui, tratar deforma breve das decisões inconstitucionais do STF]
“Afinal, diante de todo o exposto e para assegurar a necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas, com base em disposições expressas da Constituição Federal de 1988, declaro o Estado de Sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem [o restante do documento não foi disponibilizado pela Polícia Federal].”