O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, refez seu voto contra a tese do ‘Marco Temporal’ na sessão desta quinta-feira (9). Seu voto favorável aos povos originários, que motivou comemorações no acampamento ‘Luta Pela Vida’, onde cerca de quatro mil indígenas aguardam desde o dia 22 de agosto, em Brasília, a decisão dos ministros.
Edson Fachin, que é relator do caso, votou contra o reconhecimento da constitucionalidade da tese do marco temporal. Ele foi enfático ao resumir que ‘a data da promulgação da Constituição de 1988 não constitui marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas’.
O julgamento está previsto para ser retomado na próxima terça-feira (14). Nesta data, o Supremo chegará ao vigésimo dia de análise da tese de marco temporal, ainda sem definição clara de maioria.
As sessões iniciais do julgamento da tese ficaram restritas a sustentações orais de 39 representantes de indígenas, agricultores e sindicatos ligados ao agronegócio, que divergiram frontalmente na compreensão da melhor decisão a ser adotada pelo Supremo.
Em defesa das reivindicações indígenas, Fachin declarou que a Constituição reconhece como ‘permanente’ o ‘usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos’ preservados por essas comunidades. O relator elencou a Constituição Federal de 1934 e outros dispositivos jurídicos com balizadores da consagração da posse sobre terras tradicionais às comunidades originárias. Neste sentido, o ministro frisou que a Constituição de 1988 foi um ‘marco relevante’ no reconhecimento do direito dos indígenas à terra, mas não o primeiro.
“Os direitos das comunidades indígenas, à luz da Constituição, constituem direitos fundamentais que garantem a manutenção das condições de existência e vida digna dos índios”, afirmou. “A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
“Não se desconsidera a complexidade da situação fundiária brasileira, menos ainda se desconhece a ampla gama de dificuldades dos produtores rurais de boa-fé. No entanto, segurança jurídica não pode significar descumprir as normas constitucionais, em especial aquelas que asseguram direitos fundamentais”, observou Fachin. “Não há segurança jurídica maior do que seguir a Constituição”.
Fachin já havia apresentado seu voto em junho, quando o caso ainda era apreciado em julgamento virtual. Na sequência, graças a um pedido de Alexandre de Moraes, a discussão foi levada às sessões presenciais da Corte, que se ocupam do tema desde o último dia 26.
Segundo Fachin, a Constituição garante aos indígenas o direito às terras tradicionalmente ocupadas por eles. Por essa razão, não se pode restringir esse direito apenas àqueles que estavam nas áreas à época da promulgação do texto, em outubro de 1988, como defendem entidades ruralistas que acompanham o julgamento.
Em seu voto, Fachin reconheceu “a complexidade da situação fundiária brasileira”, mas defendeu que eventuais desapropriações de terras, devido a novas demarcações, devem ser compensadas com indenizações sobre as benfeitorias e, se for o caso, prioridade nos programas de assentamento do governo federal.
“Segurança jurídica não pode significar descumprir as normas constitucionais, em especial aquelas que asseguram direitos fundamentais”, afirmou o ministro. Segundo Fachin, negar aos indígenas o direito à posse de suas terras é “lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação, negando-lhes o direito à identidade e à diferença em relação ao modo de vida da sociedade envolvente”, o que o ministro considera inconstitucional.
“Autorizar, à revelia da Constituição, a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena, significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos índios integrantes daquele grupo”, afirmou em seu voto.
A decisão de origem se trata de uma ação da Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina (Fatma) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng solicitando reintegração de posse de uma área. A ação foi julgada procedente pela justiça de Santa Catarina, mas o órgão indigenista recorreu e apresentou o Recurso Extraordinário por entender que violava a Constituição e o caso ganhou repercussão geral e, portanto, servirá de base para julgamentos similares.
Segundo voto
O ministro Nunes Marques deu início a sua fala, mas o mérito do voto ficará para a próxima quarta-feira (15), para que não haja interrupção enquanto explicita o mérito da decisão. Até o momento, Nunes Marques ateve-se a fazer uma introdução, que seguiu em partes o relatório do ministro Fachin.
“A assistência precária oferecida pelo Estado, pressionada ante a crescente onda de invasões, obriga as comunidades a enfrentarem, elas mesmas, o avanço de garimpeiros e grileiros. Assim, para manter as referências culturais, os indígenas são obrigados a viver em constante movimento de resistência”, afirmou Nunes Marques.
A tese proposta por Fachin
Ao concluir seu voto, Fachin apresentou uma proposta de tese, sintetizando os principais pontos em debate em relação aos direitos territoriais indígenas. A proposta foi a mesma que já havia sido apresentada no plenário virtual do STF, em junho, quando o julgamento foi suspenso por um pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes.
Com dez pontos, tese proposta pelo relator do processo é a seguinte:
“Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:
I – a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II – a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
III – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;
IV – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição. 108 Cópia RE 1017365 / SC
V – o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
VI – o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;
VII – as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
VIII – as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
IX – são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;
X – há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente”.