CARLOS LOPES
Aqui, e nas duas partes seguintes, estão reunidas todas as seções deste trabalho, publicado entre 16 de abril e 27 de junho de 2014 na HORA DO POVO. Provavelmente, mereceria revisão (e ampliação) em vários pontos, sobretudo a inclusão de trechos que foram escritos, mas, pelas características de uma publicação em jornal, acabaram por ser retirados, pois tornariam a leitura mais difícil. No entanto, por falta de tempo, limitei-me a algumas correções de estilo, com uma exceção – que, por sinal, não estava escrita: na sétima parte, incluí referência a algumas considerações de Celso Furtado, em um de seus livros de memórias.
A dedicatória está ao final. Pensei, além disso, em colocar uma epígrafe – e foi quase óbvia a lembrança da frase de Kurtz em “The Heart of Darkness” (O Coração das Trevas), de Joseph Conrad, popularizada pela interpretação de Marlon Brando, na adaptação cinematográfica de Francis Ford Coppola (“Apocalypse Now”): “The horror! The horror!”. Conrad, nessa frase, claramente sintetizou a essência desumana do colonialismo.
Porém, pensando bem, mais apropriada, pelo decorrer dos acontecimentos após 1964, e, principalmente, após 1985, é aquela que foi usada por Eloy Dutra, em seu livro sobre a interferência da CIA nas eleições de 1962. Tem, além disso, a vantagem da autoria nacional:
O Brasil não é “isso”. É “isto”. O Brasil, senhores, sois vós. O Brasil é esta assembleia. O Brasil é este comício imenso, de almas livres. Não são os comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesouro. Não são os mercadores do parlamento. Não são as sanguessugas da riqueza pública. Não são os falsificadores de eleições. Não são os compradores de jornais. Não são os corruptores do sistema republicano. Não são os oligarcas estaduais. Não são os ministros da tarraxa. Não são os presidentes de palha. Não são os publicistas de aluguel. Não são os estadistas de impostura. Não são os diplomatas de marca estrangeira. São as células ativas da vida nacional. E a multidão que não adula, não teme, não corre, não recua, não deserta, não se vende. Não é a massa inconsciente, que oscila da servidão à desordem, mas a coesão orgânica das unidades pensantes, o oceano das consciências, a mole das vagas humanas, onde a Providência acumula reservas inesgotáveis de calor, de força e de luz para a renovação das nossas energias. É o povo, num desses movimentos seus, em que se descobre toda a sua majestade.
RUY BARBOSA
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Alguns meses depois do 1º de abril de 1964, Stanislaw Ponte Preta, em seu “Primeiro Festival da Besteira que Assola o País” (FEBEAPÁ 1), escreveu uma síntese da situação do país: “… estreou no Teatro Municipal de São Paulo a peça clássica ‘Electra’, tendo comparecido ao local alguns agentes do DOPS para prender Sófocles, autor da peça e acusado de subversão, mas já falecido em 406 a.C. Era junho e o pensador católico Tristão de Ataíde, o mesmo Alceu de Amoroso Lima, uma das personalidades mais festejadas da cultura brasileira, chegava à mesma conclusão da flor dos Ponte Preta em relação à burrice reinante, ao declarar, numa conferência: ‘A maior inflação nacional é de estupidez’.”
Foi uma ditadura, antes de tudo, burra, sem subestimar os seus crimes – as prisões, torturas e assassinatos, que nos últimos dias têm aparecido em certa mídia, aquela que, submissa a Washington, é mais responsável por esse regime que infelicitou o país do que até os militares que o apoiaram.
Entre tantos depoimentos ou textos valiosos, assim como algumas capitulações retardadas, a questão decisiva foi colocada pelo ex-ministro do Trabalho do governo João Goulart, Almino Afonso: ‟Quem ignora a presença americana no golpe militar de 1964 está perdido no tempo”.
Alguns apresentaram como prova de que os EUA nada tiveram a ver com a questão o seguinte trecho do livro da historiadora norte-americana Phyllis R. Parker sobre a “Operação Brother Sam” (a ajuda militar dos EUA ao golpe de Estado):
“Não há provas de que os Estados Unidos instigaram, planejaram, dirigiram ou participaram da execução do golpe de 1964. Cada uma dessas funções parece ter competido a Castelo Branco e seus companheiros de farda. Ao mesmo tempo, há sugestivas evidências de que os Estados Unidos aprovaram e apoiaram a deposição militar de Goulart quase que desde o princípio. Os Estados Unidos reforçaram o seu apoio ao elaborar planos militares preventivos que poderiam ter sido úteis para os conspiradores, se houvesse surgido a necessidade”.
A senhora Parker fez um bom trabalho ao confirmar, a partir de documentos e fontes norte-americanas, que a “Operação Brother Sam” existiu – veja-se o seu livro “1964: O papel dos Estados Unidos no Golpe de Estado de 31 de Março”, Civilização Brasileira, Rio, 1977.
Mas é evidente que Castelo – ou, por exemplo, Lacerda – não teriam empreendido o golpe sem incentivo e apoio do governo dos EUA, inclusive com um agente da CIA, Vernon Walters, visitando o então chefe do Estado Maior do Exército na calada da noite. Sem isso, no máximo haveria um putsch ao estilo Jacareacanga ou Aragarças. Por parte de Castelo, nem isso, pois sempre optou por ficar quieto ou ao lado do governo em qualquer situação que implicasse um risco à sua carreira (v. “Lembranças de 1964: o Brasil, o golpe de Estado e a verdade”, HP 23, 25, 30 de maio e 1º de junho de 2012).
Além disso, é a própria Phyllis R. Parker (posteriormente auto-descrita como “uma jovem inocente de 27 anos” na época em que o escreveu) que diz em seu livro:
“O programa de ação norte-americano parece estruturado para beneficiar os Estados Unidos – política, econômica e militarmente – mas, ao que tudo indica, sem maior consideração pelo impacto de seus empreendimentos sobre a integridade das instituições de outros povos. Segundo esse critério, os direitos reivindicados pela Declaração da Independência soam cada vez mais como princípios que se aplicam somente aos Estados Unidos e seus cidadãos, frequentemente à custa do sacrifício desses mesmos direitos em outras nações”.
Estamos de acordo em que o “programa de ação” da casta dominante nos EUA é sempre o oposto do que é dito – as operações encobertas são, precisamente, o centro da política norte-americana.
Portanto, fugir ao conteúdo do golpe – ao seu caráter pró-imperialista, antinacional, portanto, antidemocrático, antipopular – passou a ser o objetivo de todos os caifases do mercado. Um deles, o “historiador” oficial do PSDB, ao modo das mariposas que não encontram a saída da sala em que se meteram, exumou o próprio pretexto dos golpistas (e dos americanos) como se fosse teoria, ou, pior, verdade histórica: o de que, em 1964, o golpista era Jango – e não os que deram o golpe, rasgaram a Constituição, castraram o Congresso e o STF, promoveram uma erupção de sangue, etc., e cassaram o direito do povo escolher seu governo durante mais de 20 anos.
No entanto, foi a submissão a Washington, Wall Street, etc., que ficou mais evidente no – e após – o golpe de 1964, mais evidente até para os golpistas, daí a histeria com que os menos desavergonhados procuravam abafar, inclusive dentro de si, o que qualquer um era capaz de ver e sentir. Daí os berros à uma suposta defesa de uma suposta “civilização ocidental e cristã”, que, todos sabiam, era apenas o alinhamento por baixo do imperialismo norte-americano.
O objetivo golpista, as perseguições, a estupidez a que se referiu o pensador católico Tristão de Ataíde, e a evidente participação da CIA e do Departamento de Estado, foram um escândalo na época. Para isso, ninguém precisou saber, como se sabe hoje, que, no dia 30 de março de 1964, o secretário de Estado dos EUA, Dean Rusk, enviara um telegrama à sua embaixada com as últimas instruções para o golpe. Entre outras coisas, dizia:
“É altamente desejável que as ações das Forças Armadas sejam legitimadas pelo Congresso brasileiro ou por outros meios que criem um ar de legitimidade” (grifo nosso).
[O original do telegrama, nessa parte, é: “It is highly desirable, therefore, that if action is taken by the armed forces such action be preceded or accompanied by a clear demonstration of unconstitutional actions on the part of Goulart or his colleagues or that legitimacy be confirmed by acts of the Congress (if it is free to act) or by expressions of the key governors or by some other means which gives substantial claim to legitimacy” (cf. State Department telegram 1296 to American Embassy, Rio de Janeiro, March 30, 1964, 9:52 p.m.)].
Uma gravação, apresentada no documentário “O Dia que Durou 21 Anos”, de Camilo Tavares, registra Rusk dizendo, sobre o golpe no Brasil: “Apoio aéreo pode ser fornecido imediatamente se houver campo de pouso em Recife ou outro lugar no Nordeste do Brasil capaz de receber aviões de grande porte”.
Mas, talvez, o diálogo mais impagável (até certo ponto…) seja aquele, depois do golpe, entre Lyndon Johnson e o conselheiro para segurança nacional McGeorge Bundy – um fariseu absoluto, capaz de decidir, como presidente do “comitê 303”, os assassinatos e ações encobertas da CIA, desde que sua imagem pública fosse a de reitor de Harvard: McGeorge Bundy: “Há uma diferença entre Gordon, que quer que seja entusiasta, e nosso ponto de vista na Casa Branca, de que o senhor deveria ser cauteloso enquanto este cara (Castelo Branco) está botando gente em cana”.
Johnson: “Acho que tem gente que precisa ir em cana aqui e lá também. Gostaria que tivessem colocado alguns em cana antes que tomassem Cuba”.
McGeorge Bundy: “Uma mensagem mais rotineira seria mais desejável”.
Johnson: “Eu gostaria de um certo entusiasmo”.
McGeorge Bundy: “Vai ser publicado…”
Johnson: “Eu sei, mas estou me lixando”.
O que estava em jogo era perfeitamente conhecido na época – ou seja, na luta que antecedeu ao golpe. Quase um ano antes, escrevia o deputado federal Sérgio Magalhães (PTB-GB), presidente da Frente Parlamentar Nacionalista: “A verdadeira causa da miséria em que se encontra o povo brasileiro, com a subida constante do custo de vida, o desemprego, o subdesenvolvimento, os déficits e os compromissos externos, é a transferência de riqueza para o exterior através da atuação dos monopólios estrangeiros.
“Talvez sejamos atualmente a nação mais sacrificada do mundo pelo imperialismo voraz e desumano que leva tudo por caminhos vários: pelo comércio exterior, pelas inversões de capitais, pelos empréstimos externos, pelo contrabando, pelo falso faturamento, pela especulação cambial, pelos empréstimos de bancos oficiais, pelas ajudas econômicas, pelos acordos internacionais, pelas sociedades de financiamentos e investimentos, pelas indústrias estrangeiras instaladas com favores excepcionais e por todas as modalidades de monopólios.
(…)
“Através do IBAD fraudaram as eleições e agora financiam os monopolistas a campanha de insultos pessoais contra os nacionalistas, na falta de argumentos para justificar a dominação econômica estrangeira. Já estão mesmo na fase do desespero. Perderam a compostura.” (Sérgio Magalhães, “Perderam a Compostura”, O Semanário, nº 341, ano VIII, Rio de Janeiro, 11 a 17 de Julho de 1963).
Sérgio Magalhães foi um dos homens mais íntegros e melhor preparados de sua geração. Alguns de nós o conhecemos depois da anistia, quando ele voltou à vida pública. Apesar de ter sua trajetória cortada pela ditadura, continuava o mesmo sujeito sério que foi descrito por tantos nas décadas de 50 e 60. É interessante – porque bastante precisa – a sua avaliação do fracasso do Plano Trienal, de autoria nada menos que de Celso Furtado: “Temos procurado romper o atraso da política brasileira trazendo para discussão o problema da dominação econômica estrangeira. Recentemente, conseguimos a aprovação, em primeira discussão, do projeto que suprime a garantia do Tesouro Nacional e dos estabelecimentos oficiais de crédito aos empréstimos tomados no exterior por empresas de capitais estrangeiros. É um dos projetos que faz parte do plano de emancipação econômica. Grande parte da nossa dívida externa resulta desses favores a empresas estrangeiras. Outros colegas também têm obtido êxito quando levantam os problemas concretos, de cuja solução depende a libertação econômica do País.
“A experiência está demonstrando que esse é um bom caminho para elevar o nível da política brasileira, reduzindo-se, ao mesmo tempo, o poder econômico estrangeiro, criando-se condições para o planejamento do desenvolvimento independente e diminuindo-se o ritmo do aumento do custo da vida.
“O fracasso do Plano Trienal resultou, precisamente, da falta de providências para conter a atuação dos trustes e monopólios internacionais. Já se fala em novo Plano. Que a lição seja aproveitada. Não é fazendo concessões a monopólios estrangeiros para depois mendigar empréstimos externos, que se consegue resolver o problema da carestia de vida. A verdade está aos olhos de todos. Planeje-se o desenvolvimento com base na iniciativa estatal, protegendo-se a iniciativa privada brasileira e disciplinando-se a iniciativa estrangeira, subordinando-a ao interesse nacional, que os objetivos visados serão alcançados em prazo curto” (O Semanário, nº 360, Rio de Janeiro, 21 a 27 de Novembro de 1963).
Da mesma forma, sua avaliação sobre as consequências do assassinato de Kennedy. Pode-se, talvez, censurar um certo pessimismo ou fatalismo – que ele tentaria superar nos meses seguintes – mas jamais que ignorasse o perigo: “Tudo indica que a luta pela emancipação dos povos latino-americanos vai ingressar num período crítico após o assassinato do Presidente Kennedy.
“Ao que se sabe, por enquanto, a corrente mais reacionária dos EUA não estava satisfeita com a orientação do ex-Presidente. A política oficial de não intervenção armada para garantir interesses dos poderosos grupos econômicos, de coexistência pacifica e de respeito pela autodeterminação dos povos, enfim, a política de paz mundial estava em choque com o capitalismo na sua etapa imperialista. A contradição estava matando o sistema capitalista organizado na base da exploração dos países subdesenvolvidos. A revolução cubana, a situação na Venezuela, a revogação dos contratos petrolíferos na Argentina, a lei de remessa de lucros no Brasil foram golpes sucessivos na estabilidade do sistema imperialista, já abalado por outros acontecimentos, após a Segunda Guerra Mundial.
“[O assassinato de Kennedy] Equivale ao golpe de Estado, à mudança da política.
“É possível que a contradição entre as correntes reacionárias, a exaltada e a moderada, não tenha sido resolvida com o crime de morte, e que a luta interna nos EUA prossiga durante algum tempo. Há o problema racial que não é para ser desprezado. Talvez o novo Presidente tenha dificuldade para por as cartas na mesa. O mais certo, porém, é que a soberania dos países latino-americanos está sob ameaça de uma ofensiva sem precedentes. (…) A primeira conseqüência da nova política norte-americana será o golpe nas nossas instituições democráticas para facilitar os acordos antinacionais e fazer calar a voz dos nacionalistas” (O Semanário, nº 361, Rio de Janeiro, 28 de novembro a 4 de dezembro de 1963).
Com efeito, o ânimo de Kennedy em relação a um golpe de Estado no Brasil era diferente daquele de Johnson, como aparece em outra gravação, uma conversa com o embaixador no Brasil, Lincoln Gordon:
Kennedy: “Você acha que Goulart, se tivesse poder, agiria?”
Gordon: “Acho que faria algo como Perón.”
Kennedy: “Um ditador.”
Gordon: “Um ditador pessoal e populista.”
Kennedy: “Acho que não posso fazer nada com ele ali.”
Gordon: “Acho que pode.”
O leitor não deve se espantar (ou pode até se espantar) com a ignorância ou cinismo de Johnson, que não sabia (ou não lhe convinha saber) das pessoas “em cana” sob a ditadura de Batista, sustentada pelos EUA em Cuba – ou a de Kennedy, que não sabia que Perón foi duas vezes eleito pelo povo (depois seria pela terceira vez). O imperialismo norte-americano não é conhecido pela sua cultura – nem a mais elementar. Ou por seu amor à verdade.
Mas, continuemos.
“O Semanário”, jornal fundado por Oswaldo Costa em 1956, expressava a posição nacionalista do PTB de Jango.
A manchete da edição em que saiu o primeiro artigo, que mencionamos, do deputado Sérgio Magalhães – irmão de Agamenon Magalhães, ex-ministro de Getúlio e ex-governador de Pernambuco – era uma convocação contra o “golpe fascista”, financiado com “dinheiro americano”, sustentada pela seguinte chamada de primeira página: “O governo, afinal, resolveu tomar conhecimento da existência do golpe tramado pelos ‘gorilas’, com dinheiro do IBAD e dos norte-americanos, através do Fundo do Trigo. Em importante pronunciamento feito à Nação, o sr. Darci Ribeiro, chefe da Casa Civil da Presidência da República, apontou o governador Carlos Lacerda, como entidade financiadora, atribuindo a este o levantamento de recursos da ordem de cinco bilhões de cruzeiros para comprar jornais, rádios e televisões e compor um ‘Congresso de serviçais, de paus-mandados dos donos do dinheiro’. O governo fez suas portanto, as conclusões a que já chegou a Comissão Parlamentar de Inquérito. Esperamos que as autoridades tomem medidas enérgicas, providenciando o fechamento imediato do IBAD e neutralizando a ação dos ‘gorilas’. O povo, no que lhe diz respeito, saberá mobilizar-se. Sobre o assunto, leiam a reportagem de Edmar Morel, na última página, e outros artigos nas páginas 5 e 7 deste número.“ É compreensível que leitores mais jovens não saibam – ou saibam pouco – do que se trata. O IBAD (”Instituto Brasileiro de Ação Democrática”) foi uma operação da CIA, antes de 1964, com o objetivo de fraudar as eleições e subornar o Congresso com dinheiro vindo do exterior.
Porém, leitores, melhor será, aqui, seguir o conselho do “Semanário” e passar a palavra ao grande repórter Edmar Morel.
Há dois relatos de Morel sobre o assunto: aquele publicado em seu livro “O Golpe Começou em Washington” e aquele publicado, um ano antes, 1963, em “O Semanário”. Apesar deste último ser mais imperfeito, por várias razões, preferimos publicá-lo, porque é um texto escrito no calor da batalha (se nos é permitido um pequeno lugar-comum), no qual o leitor mais jovem poderá ter uma ideia da imprensa nacionalista antes de 1964 – como previu Sérgio Magalhães, silenciá-la seria um dos principais objetivos do golpe de Estado. Em uma ou outra questão, nos socorreremos usando o texto escrito após o golpe.
2
Há poucos repórteres no mundo que conseguiram recuperar um quase esquecido acontecimento histórico, e, inclusive, dar a ele um nome definitivo.
Edmar Morel foi um desses poucos. Antes de sua reportagem sobre o levante de João Cândido e seus companheiros, a Revolta da Chibata era, na historiografia, tratada como apenas um motim de marinheiros negros, ocorrido no início do governo Hermes da Fonseca – às vezes, até mesmo com simpatia, mas à distância, maior ou menor, mas sempre considerável. Havia, é verdade, algo notável nesse levante: a defesa dos amotinados por parte do mais célebre brasileiro de sua época, Ruy Barbosa.
O livro de Morel, lançado em 1959, mudou esse quadro, inclusive dando um sentido especial a tentativas anteriores de resgatar o levante. Morel rompia com as limitações desses precursores – e dava um nome ao acontecimento, no próprio título do livro: “A Revolta da Chibata”.
Voltaremos, ainda, nesta série, a Edmar Morel, sua obra e sua vida. No momento, estas palavras serão, esperamos, suficientes para apresentar aos mais jovens o autor da reportagem abaixo, originalmente publicada em “O Semanário”, edição de 11 a 17 de julho de 1963, sobre as atividades do IBAD – uma operação da CIA estourada pelo governador Arraes, pelo Congresso e pelo governo Jango, alguns meses antes do golpe de Estado.
Apenas três observações, para tornar o texto mais inteligível nos dias de hoje: O Pimpinela referido por Morel é o humorista Silvino Neto, que encarnava um personagem com esse nome na Rádio Nacional – e elegeu-se vereador pelo PTB, no Rio de Janeiro, sendo o mais votado em 1950. Silvino Neto, pai do também humorista Paulo Silvino, tinha um talento especial: era um incrível imitador de vozes.
2) O organizador do IBAD, Ivan Hasslocher, desde que voltou ao Brasil, em 1951, vindo dos EUA, era dono de uma agência de publicidade, a S.A. Incrementadora de Vendas Promotion. Hasslocher fugiu do país quando estourou o escândalo, reaparecendo cinco meses depois. Em seu depoimento na CPI, nas palavras do relator, deputado Pedro Aleixo, “obstinou-se na recusa de informar o que havia de substancial para que a Comissão alcançasse os fins visados por seus instituidores”. Após o golpe de Estado, desapareceu outra vez. Em 1993, soube-se que, aos 72 anos, Hasslocher dividia seu tempo entre duas residências, uma em Londres e a outra no Texas. Antes, residira na Indonésia e na Suíça, oficialmente como funcionário da ONU. Entrevistado, deu uma declaração sobre a época do IBAD: “ganhei muito dinheiro”. Faleceu no Texas, no ano 2000.
3) Quando Morel escreveu o artigo abaixo, a CPI do IBAD não havia concluído seus trabalhos. Por isso, os dados que apresenta sobre a ação do IBAD são ainda parciais. Mesmo o depoimento de denúncia mais impressionante – o do governador de Pernambuco, Miguel Arraes – ainda não ocorrera. Há, no texto, uma aparente contradição entre considerar que os candidatos nacionalistas foram “massacrados”, e, ao mesmo tempo, que a ação do IBAD foi um fracasso. Realmente, a maioria dos 250 candidatos a deputado federal, 600 candidatos a deputado estadual e oito candidatos ao governo estadual que o dinheiro da CIA bancou em 1962, não foram eleitos. Ao mesmo tempo, houve derrotas nacionalistas importantes – que facilitariam o golpe de Estado. A principal aconteceu, exatamente, em um dos Estados no qual o IBAD mais derramou dinheiro nessas eleições – no Rio Grande do Sul, onde, na sucessão do governador Leonel Brizola, o candidato do PTB, Egydio Michaelsen, foi derrotado por Ildo Meneghetti (com a preciosa ajuda divisionista, numa eleição sem segundo turno, da candidatura de um ex-petebista, Fernando Ferrari, fundador do Movimento Trabalhista Renovador – Meneghetti teve 502.356 votos; Michaelsen, 480.131 e Ferrari, que também se dizia trabalhista, 290.384 votos).
C.L.
EDMAR MOREL
O câncer do IBAD não resistiu a uma simples investigação parlamentar. O tumor maligno estourou, porém, desgraçadamente, já havia contaminado grande parte do organismo nacional, principalmente esta imprensa reconhecidamente safada que vende a sua opinião a quem pagar melhor.
E o IBAD — Instituto Brasileiro de Ação Democrática – na sua obra de corrupção era generoso. O tesoureiro da sociedade, Artur Oscar Junqueira, ex-presidente da Caixa Econômica Federal no tempo do calamitoso Jânio Quadros, depois de dar um desfalque no organismo que tudo fez para asfixiar a imprensa livre do Brasil, confessou, perante a Comissão Parlamentar de Inquérito, que financiou a campanha de 250 deputados nas últimas eleições, sendo gastos mais de cinco bilhões de cruzeiros em favor do que havia de mais reacionário, de mais sórdido, de mais antinacional.
Na Guanabara as despesas montaram em 330 milhões de cruzeiros. Os rádios, e Tvs, receberam 150 milhões.
Artur Junqueira, que também foi candidato suficientemente derrotado, pois não conseguiu 3.000 votos, isto é, um décimo da votação que o Pimpinela obteve em 1950, declarou: “Recebi o dinheiro através de cheques do Banco Real do Canadá”.
A PODRIDÃO
O IBAD representa, em última análise, uma sucursal do Departamento de Estado de Washington, dirigida pelo deputado João Mendes, latifundiário da pior espécie na Bahia e que tudo tem feito para impedir a Reforma Agrária com a Reforma da Constituição.
A princípio funcionou, salvo engano, num edifício da rua 7 de Setembro e cedo foram conhecidos os lacaios dos ianques contra os interesses nacionais.
Ninguém escapou à sanha policialesca desta “gang”. Tudo fizeram para fechar a imprensa nacionalista do país, exercendo todo o seu poderio econômico, com pressões de toda a ordem. A “Última Hora”, por exemplo, mensalmente, através do pasquim “Ação Democrática”, publicação do IBAD, tinha os nomes das firmas anunciantes no pelourinho, sob o título: “As classes produtoras e o financiamento do comunismo”. Outra vítima foi o “Jornal do Brasil”.
Organizações eminentemente nacionais, como Cruzeiro do Sul, Banco Nacional de Minas Gerais, instituições como a Rede Ferroviária Federal, Petrobrás, Companhia Vale do Rio Doce, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Lóide Aéreo Nacional, Departamento Nacional de Estradas de Rodagens foram apontadas pelo pasquinleco “Ação Democrática” como antros de agentes de Moscou, financiando aqueles jornais. Era o boicote organizado. O SEMANÁRIO, que não vive de publicidade, sofreu torpe exploração, apontado como órgão que recebia ordens do Kremlin. Tamanha imbecilidade só poderia partir dos retardados mentais do IBAD.
O fato é que a podridão do IBAD contaminou muita gente. O pasquim [”Ação Democrática”] é impresso na mesma oficina que imprime as Listas Telefônicas da Light. De tão ricos que são, jamais pleitearam o uso do papel de linha d’água, preferindo o acetinado. A distribuição da tal revista é gratuita. Em alguns números apregoam que a tiragem é de 210.000 exemplares. Em outras não dizem nada.
Os nacionalistas que disputaram cargos eletivos foram massacrados pelo poderio econômico do IBAD. Só no Rio dispunha de mais de 170 caminhonetes.
Em Pernambuco, o lugar-tenente Frutuoso Osório Filho, para combater a candidatura popular de Miguel Arraes, derramou 650 milhões de cruzeiros. Mas o povo deu a resposta aos cavalos de aluguéis dos ianques, elegendo Arraes. Diz o sr. Artur Junqueira que o dinheiro foi dado por 70 indústrias paulistas…
Toda esta imprensa que agora grita contra a Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a máquina de corrupção do IBAD, recebeu dinheiro do IBAD para desacreditar a Petrobrás, os nacionalistas, homens do gabarito de Barbosa Lima Sobrinho, Elói Dutra, Sérgio Magalhães e tantos outros colaboradores da primeira linha de O SEMANÁRIO, “Última Hora”, “Jornal do Brasil” etc.
COMO FUNCIONA
Geralmente a “Ação Democrática” sai com 24 páginas, sendo que numa delas [sai] um artigo de Teófilo Andrade, que dispensa apresentação. Outro “habituée” das colunas do pasquinleco é o Padre Calazans, que recebendo documentação forjada na redação da “Ação Democrática”, denunciou que a FAB estava entregue a comunistas.
Nem os sacerdotes escaparam ao espírito policialesco da quadrilha que montou o Q.G. À Avenida Marechal Câmara 271, onde funciona a redação de “Ação Democrática”, cujos diretores são Ivan Hasslocher, fllho do velho e incorrigível galinha-verde Paulo Hasslocher, da Câmara dos 40, e que encerrou a sua carreira diplomática de Embaixador do Brasil na corte de Trujillo; Frutuoso Osório Filho, Diretor Geral; Gabriel Chaves de Melo, Chefe de Redação; Floriano da Silveira Maciel, redator trabalhista; e, como não poderia deixar de acontecer, o nauseabundo Eugênio Gudin, como “consultor da redação” ao lado de Edgard Teixeira Leite.
Nunca teve venda avulsa, embora anuncie que o exemplar custa Cr$ 30,00. Também não tem publicidade, o que é desnecessário, já que os dólares entram a granel, através de canos de 12 polegadas. O único anunciante é o dr. Milton de Almeida, especializado em ouvidos, nariz e garganta.
Mas quem manda mesmo é o deputado João Mendes, homem multo rico, mas que não tem tanto dinheiro assim para gastar com 250 candidatos. Dinheiro mesmo é do americano. Dinheiro fácil, dinheiro que inundou jornais e corrompeu centenas de candidatos a cargos eletivos, no último pleito quase todos derrotados.
Jamais deixou de atacar nas suas colunas os srs. João Goulart, Hermes Lima, Miguel Arraes, Francisco Julião, Leonel Brizola, Osny Duarte Pereira, Prestes, brigadeiro Francisco Teixeira e outros brasileiros que lutam contra o imperialismo.
Os super-homens da corja são Kennedy, Pena Boto (última exumação dos ibadianos), Sílvio Heck, marechal Denys e outros marechais de pijama, mandados para casa, pela vontade do povo.
REDE DE CORRUPÇÃO
A malta do IBAD, sempre sob a batuta do deputado João Mendes, figura por demais inexpressiva do Parlamento Nacional, usa dois processos: calúnia e intimidação.
Calúnia quando cita as firmas comerciais que anunciam em “Última Hora” e aponta outros jornais, como O SEMANÁRIO, como agentes de Moscou.
Intimidação quando promete represálias através de uma pseudo-resistência democrática dos trabalhadores livres e movimento sindical democrata que congrega a escória do sindicalismo, uma espécie de sarjeta que emerge do esgoto social.
Uma das suas vítimas principais é a UNE, com sucessivos pedidos de informação feitos por deputados, cujas candidaturas foram financiadas pelo IBAD.
A imprensa “sadia”, ordinária até à medula, sempre mamou nas tetas do IBAD. E mama alto. Urgia organizar uma rede de estações de rádio, a fim de levar a corrupção aos mais longínquos recantos do país, onde não existe imprensa. Foi criado um programa radiofônico, intitulado “A Semana em Revista” e irradiado pelas seguintes estações, a peso de ouro: Rádio Rio-Mar, de Manaus; Rádio Difusora, de Belém; Rádio Educadora, de Bragança, no Pará; Rádio Difusora, de São Luís; Rádio Clube, de Teresina; Rádio Educadora, de Parnaíba; Radio Iracema, de Fortaleza; Rádio Nordeste, de Natal; Rádio Difusora, de Mossoró; Rádio Caturité, de Campina Grande; Rádio Difusora, de Maceió: Rádio Liberdade, de Aracaju; Rádio Cultura, de Salvador; Rádio Sociedade, de Salvador; Rádio Itatiaia, de Belo Horizonte; Rádio Espírito Santo, de Vitória; Rádio Globo, do Rio; Rádio Vera Cruz, do Rio; Rádio Sul Fluminense, de Barra Mansa; Rádio Record, de São Paulo e mais 42 estações do interior de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, inclusive a Rádio Sociedade Gaúcha, de Porto Alegre, emissoras de Mato Grosso, Goiás e Acre. O programa tinha o patrocínio do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, conforme anúncio da própria “Ação Democrática”.
O PREÇO DA INFÂMIA
É claro que esta tecla de acusar todo mundo de comunista, por não rezar pela cartilha do IBAD, não surte mais efeito. Pena Boto bateu neste teclado, durante longos anos e acabou desmoralizando, por completo, o rendoso negócio. Nisto não há nem originalidade, pois o repugnante espancador de presos Serafim Braga, hoje Delegado de Polícia, sempre fez isto desde que a sua vítima não anunciasse no seu imundo jornaleco “A Situação”.
O Papa João XXIII tivesse vivido no Brasil e teria sido acusado pela quadrilha do IBAD como comunista. Sacerdotes dos mais ilustres tiveram os seus nomes apontados como agentes de Moscou, inclusive o grande Bispo de Santo André, D. Jorge Marcos de Oliveira, miseravelmente acusado pelo alcaguete graduado Válter Domingos Claro, presidente da arapuca em São Paulo. Mas o grande D. Jorge foi fulminante ao declarar: – “Espero receber, dentro de muito breve, um convite da ‘família democrática’ para assistir ao enterro do IBAD e não irei chorando, não. Irei sorrindo, vendo a mais promissora aurora de um Brasil cristão”.
CADEIA PARA A “GANG”
O povo deve depositar a sua confiança na Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a obra de corrupção do IBAD na vida pública do país. Lá estão homens como Elói Dutra e José Aparecido, que embora pertencendo à UDN, o partido que mais recebeu propinas do IBAD, tem tido uma atuação das mais patrióticas, não se submetendo às injuncões do partido da eterna vigilância. Foi eleito pelo povo, para defender os interesses do povo.
Chegou a hora de arrancar a máscara desta camarilha que fez do combate ao comunismo uma das mais lucrativas indústrias das últimos anos. Esta súcia vai prestar contas com a Justiça. Homens mais poderosos do que os lacaios dos norte-americanos, assalariados de Washington, já caíram nas redes da polícia.
A tal publicação já tem quatro anos, com pouco menos de 50 números. Sempre atacou a Reforma Agrária e a Petrobrás. Continua insultando os brasileiros que não querem o Brasil atrelado como carro de boi aos ianques, financia o MAC (Movimento Anticomunista), reduto de profissionais do anti-comunismo, aprendizes de feiticeiro. É uma publicação nociva aos interesses nacionais.
A Justiça houve por bem fechar a chamada imprensa marrom. E o que é a “Ação Democrática” senão uma imprensa preta contra os interesses do Brasil? A Comissão Parlamentar de Inquérito deve levantar a escrita da suspeita publicação, para ver a sua fonte de renda.
Não basta, evidentemente, apurar a fonte do dinheiro suspeito. A Nação precisa conhecer os nomes dos 250 candidatos que receberam dinheiro da Standard Oil e outros grupos norte-americanos, dinheiro para destruir a Petrobrás e outras instituições nacionais.
Devem ser ouvidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito os gerentes e diretores de publicidade dos jornais que sofreram pressão por parte da matilha, cujo chefe, Ivan Hasslocher, está foragido.
SUPREMA AUDÁCIA
A malta do IBAD atingiu os limites da audácia quando fez instalar, no próprio recinto do Congresso Nacional, um aparelho de gravação clandestino, a fim de obter a voz dos parlamentares nacionalistas para, em seguida, usá-la ao bel-prazer em trechos isolados, quando é sabido que toda oração, utilizada parcialmente, perde o sentido.
Ante a reação popular contra os métodos fascistas do IBAD, derrotando seus candidatos e elegendo parlamentares progressistas, as agências de publicidade norte-americanas, usadas, a princípio, como força de pressão para impedir a expansão dos jornais nacionalistas, chutaram o IBAD, fazendo voltar a programação dos seus anúncios aos jornais que caíram no índex da “gang”. Assim, embora severamente advertidos pelo IBAD, aquelas organizações norte-americanas resolveram não dar murro em ponta de faca.
Ninguém desconhece que as agências de publicidade estrangeiras são fatores de corrupção, já que algumas exercem o controle da orientação política de jornais. Basta lembrar o triste e vergonhoso episódio de “A Noite”, que em troca de 2 milhões de cruzeiros por mês, permitia à agência Promotion, do IBAD, controlar todas as suas páginas.
De qualquer maneira, os ianques da Coca-Cola, Shell, Sidney Ross, Willys Overland, da Parker, Frigoríficos Wilson, International Business Machine, Esso, Grupos Light, Wemag, Verolme, Dunlop, Fiat Lux, Frigorífico Anglo, Alitalia, Mercedes Benz e outros, saíram da canoa furada do IBAD, agora, às voltas com a Justiça.
3
A reportagem de Edmar Morel seria amplamente confirmada pelos acontecimentos posteriores. Em 1977 – portanto, 13 anos depois – o embaixador dos EUA durante a conspiração e execução do golpe, Lincoln Gordon, declarou que a CIA bancou a oposição ao presidente Goulart porque “isso era mais ou menos um hábito, naquele período. (…) A CIA estava acostumada a ter fundos políticos. Tudo começou na Itália, em 1948, quando dinheiro americano ajudou o fortalecimento da democracia cristã”.
Logo, foi tudo uma questão de hábitos e costumes… Inclusive um golpe de Estado encoberto, como a Operação Gládio na Itália – e em outros países europeus – logo após a II Guerra Mundial.
Mas é interessante (porque essa é a parte verdadeira) que Gordon compare a ação da CIA, através do IBAD, à Operação Gládio, engendrada nos EUA para instalar no poder – onde ficou por mais de 40 anos – uma cafua de antigos fascistas, mafiosos e outros ladrões, contra o povo italiano.
Posteriormente, em 2001, Gordon seria até mais explícito, em seu livro “Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World”, uma tentativa inútil de maquiar o juízo histórico, àquela altura já definitivo, sobre o seu papel na instalação da ditadura no Brasil: “… fui favorável à proposta de dar, através da Agência Central de Inteligência (CIA), alguma assistência financeira aos candidatos ao Congresso que tinham uma atitude amigável com relação aos Estados Unidos. (…) estávamos preocupados com o movimento no Congresso, liderado pelo ‘grupo compacto’ do PTB, no sentido de acrescentar cláusulas ao projeto de lei sobre a remessa de lucros, proibindo as companhias estrangeiras de acrescentar à sua base de capital os lucros retidos. (…) Essa preocupação me levou a endossar a sugestão da CIA de que se fornecesse dinheiro a candidatos amigáveis, seguindo o precedente da Itália logo após a guerra, que, segundo se acreditava amplamente, tinha impedido uma vitória eleitoral dos comunistas naquele país”.
Quanto à magnitude dessa “assistência financeira”, diz Gordon, na entrevista de 1977: “Certamente foi muito mais de 1 milhão de dólares, e eu não ficaria surpreso se tivesse chegado a 5 milhões de dólares. Mas não era uma importância enorme, não eram dezenas de milhões de dólares” (entrevista a Roberto Garcia, Veja, 09/03/1977, grifo nosso).
Gordon, um sujeito difícil de classificar, mesmo considerando as aberrações que o imperialismo norte-americano frequentemente oferece ao mundo, joga com números ao longo do tempo, porque sabe que a maioria das pessoas não conseguirá conceber o que isso significava naquela época. Mas, US$ 5 milhões equivaliam a 0,03% do PIB brasileiro de 1962, gasto numa única eleição. Como parcela do PIB brasileiro de 2013, equivaleria a US$ 672 milhões.
[Esta forma de atualizar o “valor” do dólar, por seu “poder econômico” (economic power) – isto é, enquanto parcela do PIB – é abordada pelo professor norte-americano Samuel H. Williamson em “Seven Ways to Compute the Relative Value of a U.S. Dollar Amount, 1774 to present”, MeasuringWorth, 2014. Williamson, que leciona história econômica, dedica-se à cliometria (econometria histórica). No caso do IBAD, é inadequada a atualização do dispêndio de dólares pelo Consumer Price Index (CPI), pois os candidatos entreguistas não eram objetos de consumo encontráveis nos supermercados dos EUA. Por isso, usamos uma das sugestões de Williamson, apenas substituindo o PIB dos EUA pelo do Brasil, porque, obviamente, o dinheiro foi gasto aqui – e não lá.]
Note-se que a resposta de Gordon que reproduzimos acima foi logo após afirmar que “se formos discutir as eleições de 1962, não vou querer negar a presença de dinheiro de origem americana. Quanto a 1964, não vou dizer que não tenha havido 1 ou 2 dólares americanos. Mas não me lembro de nada substancial e certamente isso seria improvável”.
Apesar da quantia mencionada por Gordon (US$ 5 milhões) não ser pequena, poderíamos esperar qualquer coisa dele, menos que falasse a verdade.
Assim é que Philip Agee, na época em ascensão dentro da CIA e amigo pessoal do chefe do “Ramo Brasil da Divisão para o Hemisfério Ocidental” (”Brazil Branch in Western Hemisphere Division”), em seu famoso livro, anota, em sete de outubro de 1962:
“… as eleições brasileiras que estão ocorrendo hoje são o clímax de uma das maiores operações de ação política já realizadas pela Divisão para o Hemisfério Ocidental (…) a estação do Rio de Janeiro e suas muitas bases nos consulados através do país têm estado envolvidas, a maior parte do ano, numa campanha multimilionária de dólares” (cf. Philip Agee, “Inside the Company: CIA Diary”, Bantam Books, 1976).
Mais adiante, no dia 10 de fevereiro de 1964, Agee encontrou-se, em Washington, com James Beatty Noland, chefe de operações da CIA no Brasil, e tem com ele uma longa conversa noite adentro. Noland diz a Agee que “o Brasil é o mais sério problema para nós na América Latina – mais sério, na verdade, que Cuba, desde a crise dos mísseis” (cf. idem).
Em seguida:
“… uma das principais operações de ação política da estação do Rio, o IBAD e uma organização relacionada, a Adep, gastaram, durante a campanha eleitoral de 1962, pelo menos o equivalente a algo como 12 milhões de dólares (…), possivelmente chegando a 20 milhões de dólares” (idem).
Vinte milhões de 1962 seriam, seguindo o professor Williamson, um “poder econômico” equivalente a US$ 2,2 bilhões (US$ 2.239.895.470) no Brasil de 2013 – mais de meio século depois. Parece mais real, considerando a importância que a submissão do Brasil tinha para a CIA e para os monopólios norte-americanos – e que foram bancados 250 candidatos a deputado federal, 600 candidatos a deputado estadual e 8 aos governos estaduais. Além disso, a julgar pelo enriquecimento de Hasslocher, o manda-chuva do IBAD, e outros enriquecimentos, nem todo o dinheiro foi gasto em campanhas eleitorais.
O IBAD, como declarou Lincoln Gordon, era uma tentativa de repetir no Brasil a Operação Gládio, realizada pelos EUA na Itália – um golpe de Estado encoberto para aboletar no poder uma camarilha subserviente aos interesses monopolistas e financeiros norte-americanos.
Porém, a Itália tinha, como ainda tem, um regime parlamentarista. O que também é verdade para o Brasil na época da operação IBAD. A volta ao presidencialismo somente ocorreu em janeiro de 1963.
Por isso, o IBAD tinha como um dos seus objetivos a “manutenção sob qualquer preço, inicialmente, do parlamentarismo” (cf. CPI DO IBAD, p. 9944). Nos documentos já conhecidos do Departamento de Estado e da CIA, considera-se um “golpe” do presidente o plebiscito que acabou com o parlamentarismo e restituiu a Jango as prerrogativas presidenciais que a Constituição de 1946 lhe garantia.
Evidentemente, o Ato Adicional que instalara o parlamentarismo – depois da renúncia de Jânio Quadros e da junta que quis impedir a posse do vice-presidente João Goulart – era já um golpe na Constituição aprovada em 1946, contra o país e o povo. Tanto assim que 82% dos eleitores, quando, finalmente, foram consultados, no plebiscito de 6 de janeiro de 1963, votaram pelo presidencialismo (9.457.488 votos por este, contra 2.073.582 recebidos pelo parlamentarismo). Evidentemente, nem todos que votaram pelo presidencialismo eram eleitores de Jango. Era, de forma insofismável, a rejeição, por maioria esmagadora, do último vestígio institucional da tentativa de golpe de 1961.
No entanto, o governo dos EUA – um governo mais do que presidencialista, um governo imperial – achava que acabar com o parlamentarismo golpista era um “golpe” de Jango. O resultado é que seus serviçais internos foram esmagados pela votação plebiscitária.
Era a terceira derrota após a renúncia de Jânio – a primeira fora a própria posse de Jango na Presidência.
A segunda derrota fora o fracasso da operação IBAD em 1962, apesar de cerca de 150 dos candidatos a deputado federal amamentados pela CIA terem sido eleitos (numa Câmara de Deputados com 409 cadeiras) e – segundo Agee ouviu do chefe da CIA no Brasil – dois governadores em Estados decisivos: Ildo Meneghetti, no Rio Grande do Sul, e Adhemar de Barros, em São Paulo (”os resultados das eleições foram misturados, com candidatos apoiados pela estação [da CIA] sendo eleitos governadores em São Paulo e no Rio Grande, ambos Estados-chave, mas um apoiador esquerdista de Goulart foi eleito governador no crítico Estado nordestino de Pernambuco”.
[No original de Agee: “Results of the elections were mixed, with station-supported candidates elected governors in São Paulo and Rio Grande, both key states, but a leftist supporter of Goulart was elected governor in the critical north-east state of Pernambuco”.]
Dos Estados em que o IBAD concentrou sua corrupção, seus candidatos ao governo foram derrotados, além de Pernambuco, também no Amazonas, Sergipe e no antigo Estado do Rio de Janeiro, sediado em Niterói. No Ceará, Bahia e Piauí venceram udenistas – mas não se pode dizer que fossem tremendos oposicionistas ao governo Jango.
Quanto a São Paulo, a eleição foi polarizada pelo ex-governador Adhemar de Barros e pelo ex-presidente Jânio Quadros. Em termos de alianças, foi a eleição mais complicada do país: Adhemar, que teve 39,8% dos votos, concorreu pela coligação PSP-PSD-PRP; Jânio, com 35,9% foi apoiado pela coligação PTN-MTR; o PTB uniu-se à UDN, ao PDC e ao PR, em torno do candidato José Bonifácio (21,8% dos votos) e Cid Franco, do PSB, obteve 1,1% dos votos” (v. Regina Sampaio, “Adhemar de Barros e o PSP”, São Paulo, Global, 1982).
Portanto, a derrota principal dos nacionalistas foi no Rio Grande do Sul – o Estado natal do presidente da República e do líder da resistência legalista de 1961, Leonel Brizola, que, nessa eleição, concorrendo pelo Estado da Guanabara, seria o deputado federal mais votado da História da República.
Porém, a CIA não conseguiu travar o aumento da votação no PTB, partido do presidente Jango. E, também, ao contrário da Itália, sua operação foi estourada quase em seguida.
Vejamos, primeiro, os resultados.
Em 1962, na última eleição antes da ditadura, pela primeira vez, desde que o quadro partidário fora definido, em 1945, o PTB conquistou mais votos para a Câmara dos Deputados do que a UDN, partido de Carlos Lacerda e outros golpistas.
Um rápido balanço:
O PSD, maior partido político do país desde 1945, teve uma queda de 303.902 votos em relação à eleição de quatro anos antes. Passou de 3.861.068 (33,5% dos votos para deputado federal) em 1958 para 3.557.166 (29,3%) em 1962.
A UDN aumentou sua votação em 304.779 votos: foi de 2.389.211 (20,7%) em 1958 para 2.693.990 (22,2%) em 1962.
O PTB teve um aumento de 729.206 votos para a Câmara dos Deputados. Passou de 2.316.058 (20,1%) em 1958 para 3.045.264 (25,1%) em 1962.
O PTB, portanto, aumentara sua votação para a Câmara em +31,4%, enquanto o aumento de votos da UDN fora de apenas +12,8%. Com isso, o PTB deslocara a UDN e passara a ser o segundo maior partido político do país, em termos de votação para a Câmara dos Deputados (cf. Jairo Nicolau, “Partidos na República de 1946: Velhas Teses, Novos Dados”, trabalho apresentado no XXVII Encontro Anual da Anpocs, out. 2003).
Refletindo a votação, as cadeiras da Câmara ficaram assim distribuídas, em comparação com a eleição anterior: o PSD caiu de 36,5% dos deputados (1958) para 29,8% (1962) – embora, como o número total de vagas da Câmara aumentou (de um total de 326 para um total de 409 deputados), sua bancada passou de 119 para 122 deputados.
O PTB, que em 1958 conquistara 19,3% das cadeiras (63 deputados) aumentou sua parcela, em 1962, para 26,25% (107 deputados). Ganhou, portanto, 44 cadeiras.
A UDN, que tinha 21,5% (70 deputados) foi para 23,7% (97 deputados). Ganhou 27 deputados.
Havia outros 10 partidos, mas esses resultados, dos três maiores, são suficientes para mostrar a tendência predominante, pois os três partidos maiores receberam 76,6% dos votos para a Câmara dos Deputados, conquistando 79,8% das cadeiras.
Apenas mencionaremos que o Partido Social Progressista (PSP), do governador de São Paulo, Adhemar de Barros, perdeu três cadeiras: de 25 deputados (7,7%) em 1958, foi para 22 deputados (5,4%) em 1962. Ao mesmo tempo, o Partido Democrata Cristão passou de 7 deputados (2,1%) para 19 (4,6%).
Não entraremos, aqui, pois já o fizemos anteriormente, nas questões econômicas de fundo – maior penetração dos monopólios multinacionais dentro do país, entre elas – que, naquela época, conduziram o país à crise.
Mais importante, aqui, é que os resultados acima mostram que o povo – e o eleitorado, o que naquela época não era a mesma coisa: a proibição do voto aos analfabetos era uma exclusão política real de uma parte importante da população, visto que a taxa de analfabetismo, verificada no Censo de 1960, era de 39,7% – estava optando crescentemente pela alternativa representada pelo presidente Goulart.
Existe, numa certa historiografia, a argumentação de que esse era um quadro basicamente estagnado porque, em 1962, os “blocos ideológicos” – basicamente três: “direita” (PRP, PR e UDN), “centro” (PL, PSD e PDC) e “esquerda” (PTB, PSB, PCB mais pequenos partidos trabalhistas) – receberam uma votação semelhante à de 1958.
O problema é que essa construção de “blocos” é artificial, não corresponde à realidade da época. Aliás, se faltasse alguma prova, bastaria a atitude da CIA e dos monopólios multinacionais antes, durante e depois dessas eleições para nos assegurar que a situação estava em rápida mudança – e não era no sentido propício ao entreguismo ou à manutenção da dependência que nos asfixiava.
A própria UDN, o partido em que se concentravam os entreguistas e advogados dos interesses monopolistas norte-americanos, estava em crise – como ficou claro na CPI do IBAD.
Certamente, aqui reside uma forte objeção à nossa avaliação geral, de que a operação IBAD foi um fracasso da CIA. Realmente, é possível perguntar: se o PTB e as forças anti-imperialistas estavam crescendo, imagine-se o que elas não teriam alcançado se a CIA não despejasse milhões de dólares no processo eleitoral. Neste sentido, pode-se dizer, a CIA conseguiu adiar uma definição no Brasil até que fosse possível dar o golpe.
Seria verdade, se a CIA tivesse o poder de predizer em 1962 o que aconteceria dois anos depois. Mas ela não teve, como não tem, esse poder. Pelo contrário, a operação IBAD deixou seus promotores e participantes em situação crítica, logo a seguir.
4
O que eram os “ibadianos” – os que foram bancados pela CIA e pelas multinacionais – ficará claro para os leitores mais jovens, se reproduzirmos alguns materiais da época.
Por exemplo, eis um trecho de uma carta – encontrada nos arquivos do SNI pelo historiador Álvaro Larangeira – do governador Ildo Meneghetti, do Rio Grande do Sul, a Castelo Branco, com data de 18 de abril de 1964, três dias após Castelo entrar no Planalto e 17 dias depois do golpe de Estado. Diz Meneghetti:
“A Constituição do Estado, como também os estatutos de organização do funcionalismo, e em particular, da Polícia, tem impedido as operações de limpeza que se fazem imperiosamente necessárias. A situação apresenta-se, desta forma, sumamente grave, não pelo presente – que é tranquilo – mas pelo futuro que poderá manifestar-se conturbado. Daí a necessidade de medidas excepcionais, que o meu Governo, de comum acordo com o comando militar, sugere através da presente, seja a decretação do Estado de sítio para esta região, seja a delegação de poderes ao governo e às autoridades federais daqui para a elaboração de um Ato Institucional Estadual que possa dar, às forças locais da revolução democrática, o instrumento saneador que se faz indispensável para nossa ação.
“Finalmente, pondero a Vossa Excelência sobre a necessidade de que os mandatos dos parlamentares e prefeitos comprometidos – e ainda atuando sob a proteção de imunidades, cuja relação segue pelos portadores, sejam imediatamente cassados.“ (v. fotocópia em Juremir Machado da Silva, “O golpismo gaúcho em 1964”, Correio do Povo, 23/09/2013).
Porém, isso foi após o golpe. Encerradas as eleições de 1962, esse chiqueiro fascista, que era o regime ideal dos “ibadianos” e de seus mentores norte-americanos, era ainda um desejo pervertido – e não uma realidade.
Logo em seguida, o escândalo estourou.
O requerimento para a CPI do IBAD foi apresentado pelo deputado Paulo de Tarso (PDC-SP) no dia 19 de abril de 1963. Assinavam-no 145 deputados.
Havia, naquele momento, 29 CPIs funcionando na Câmara. A do IBAD seria (e foi) a trigésima. Na época não havia o atual limite de cinco para o número de CPIs que podem funcionar ao mesmo tempo.
Também ao contrário de hoje, as CPIs não tinham “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, o que impediu a quebra de sigilo nas contas-correntes do IBAD, Adep, Promotion e outras marcas usadas pela CIA. As contas eram em filiais de bancos externos: no Royal Bank of Canada, Bank of Boston e National City Bank of New York.
A possibilidade de que a investigação gorasse era grande – e ficou maior quando a CPI foi instalada, em 30 de maio, porque a maioria de seus membros era de deputados que receberam dinheiro da CIA na campanha eleitoral. Entre eles, o relator, Laerte Vieira (UDN-SC), e o presidente da Comissão, Peracchi Barcelos (PSD-RS) – que Brizola derrotara nas eleições de 1958 ao governo gaúcho, e que, depois, sob a ditadura, seria ministro do Trabalho e, finalmente, governador biônico do Rio Grande do Sul.
Dos nove membros titulares da CPI, os que queriam investigar a fundo as atividades do IBAD eram apenas três: Eloy Dutra (PTB-GB), também vice-governador do Estado da Guanabara; Rubens Paiva (PTB-SP), vice-presidente da Comissão; e José Aparecido, que, apesar de pertencer à UDN de Minas, teve uma participação brilhante desde o início (”O IBAD é a trama mais sinistra de nossa história republicana, uma conspiração contra a soberania do país”, declarou Aparecido em entrevista à “Última Hora”, no dia 17 de agosto de 1963).
Entre os suplentes, estavam os deputados Benedito Cerqueira (PTB-GB) e João Dória (PDC-BA), que passaria a ser titular quando o deputado Armando Rollemberg (PDC-SE) foi nomeado para o Tribunal Federal de Recursos, o antecessor do STJ.
Em setembro, na véspera do depoimento de Ivan Hasslocher – o obscuro chefe do IBAD -, os “ibadianos” aprovaram a suspensão da CPI, sob o pretexto de que o presidente da República atropelara o Congresso, ao proibir as atividades do IBAD/Adep antes do fim dos trabalhos da Comissão.
Com apoio do líder da UDN, deputado Adauto Lúcio Cardoso – um dos candidatos udenistas que Hasslocher proibira explicitamente que o IBAD/Adep oferecesse “ajuda” – o Congresso escolheu novos membros para a Comissão: Ulysses Guimarães (PSD-SP) passou a presidi-la, no lugar de Peracchi Barcelos; Pedro Aleixo (UDN-MG) substituiu Laerte Vieira como relator; e também entraram para a Comissão: Bocayuva Cunha (PTB-RJ), José Maria Alckmin (PSD-MG), Getúlio Moura (PSD-RJ), Temperani Pereira (PTB-RS), Adauto Lúcio Cardoso (UDN-GB), Bento Gonçalves (PSP-MG), Franco Montoro (PDC-SP), Lenoir Vargas (PSD-SC), Affonso Celso (PTB-RJ), Manuel Taveira (UDN-MG), Cantídio Sampaio (PSP-SP) e Geremias Fontes (PDC-RJ).
Conta Eloy Dutra:
“O Congresso mostrou que ainda não se tornara um órgão castrado. A atuação que teve, naquele momento crítico do caso IBAD, não deixa margem a dúvidas quanto à vitalidade de alguns dos seus membros. Tão logo os ibadianos, que predominavam na CPI do IBAD, resolveram suspender as atividades da Comissão, à véspera do depoimento do chefete ibadiano Ivan Hasslocher, muitos observadores chegaram a pensar que a batalha pendia para o lado das siglas e dos indivíduos a soldo do IBAD. Entretanto, registrou-se apenas um momento de suspense. A alegação ibadiana de que os trabalhos da CPI deveriam ser interrompidos em face do decreto presidencial que mandou fechar a ADEP e o IBAD, “esvaziando e desrespeitando o Congresso em sua missão de apurar a verdade”, correspondeu a atitude firme da Câmara, que renovou em alto nível todos os membros da CPI, por iniciativa dos próprios líderes de partidos, bem como a enfatização das medidas tomadas na área do Executivo. Ao Executivo, ainda, coube a enérgica atitude de firmar sua disposição de não permitir o surgimento de metástases do câncer ibadiano – sob pena de ação judicial para coibir as fraudes às determinações do decreto que cerrou as portas do IBAD e da ADEP. É que certos setores afirmaram que iriam fundar novos movimentos para prosseguir ‘em defesa da democracia’, mantendo no ar os programas de rádio do IBAD e, mais ainda, editando sua revista…“ (Eloy Dutra, “IBAD, Sigla da Corrupção”, Civilização Brasileira, Rio, 1963, p. 44).
Com isso, os “ibadianos” deixaram de ser maioria na CPI. Porém, a maior parte do trabalho foi realizada ainda quando eles estavam com a maioria. Deve-se àqueles cinco deputados (Rubens Paiva, Eloy Dutra, José Aparecido, Benedito Cerqueira e João Dória) não permitirem que a CPI morresse, quando outros, como disse o deputado Dória, se comportavam como advogados do IBAD. O mais notável, na primeira fase da CPI, é como aqueles deputados conseguiram acuar os “ibadianos”.
Quando o “Correio da Manhã”, em 19 de julho, publicou uma lista de 111 deputados que receberam dinheiro do IBAD, as reações foram da histeria ao ridículo, frequentemente acumulando os dois. Por exemplo, declarou o deputado mineiro Abel Rafael, do partido fascista PRP (Partido de Representação Popular, dirigido por Plínio Salgado): “Pertencer àquela lista é uma honra, porque a fina flor desta Casa lá está. (…) Não acho absolutamente crime uma pessoa receber auxílio de terceiros, todo mundo aqui recebe” (cit. Jason Tércio, “Rubens Paiva”, Perfis Parlamentares nº 67, Edições Câmara, Brasília, 2013, p. 81).
Os “terceiros” do deputado integralista eram a CIA e uma série de multinacionais: Texaco, Shell, General Electric, IBM, Coca-Cola, Pfizer, Ciba, Shering, Bayer, Standard Brands, British Tobacco, Remington Rand, Belgo-Mineira, Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft (AEG) – e mais 138 outras, como seria comprovado em seguida.
A lista incluía cinco membros da CPI, os deputados Laerte Vieira, Arnaldo Cerdeira, Anísio Rocha, Régis Pacheco, Benedito Vaz e Peracchi Barcelos – que, aliás, confessou o crime como se fosse uma rara virtude. Além disso, incluía o deputado Armando Falcão – depois, talvez, o mais notório ministro da Justiça da ditadura -, o deputado Aliomar Baleeiro, ilustre prócer da UDN, e o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, que também era, depois da renúncia de Jânio, o vice-presidente de facto da República.
Réu confesso, o presidente do lacerdista “clube da lanterna”, Amaral Neto (UDN-GB), proferiu uma peça oratória apaixonada em defesa do IBAD, que ficou conhecida como “O Discurso da Mala” (por razões diferentes daquelas que fizeram um famoso assassinato ser chamado de “o crime da mala”…).
Amaral Neto era tão puxa-saco de Lacerda que era chamado de “vice-corvo” por Samuel Wainer, do “Última Hora”. Corvo era o apelido de Lacerda, desde que, em maio de 1954, com aquele inevitável ar de fariseu, comparecera, trajando preto dos pés à cabeça, ao enterro de um repórter do jornal “A Noite”, Nestor Moreira, espancado brutalmente dentro de uma delegacia.
Como o objetivo nosso é, principalmente, expor fatos que os mais jovens não conhecem ou não têm meios ou a oportunidade de conhecer, façamos aqui um breve parênteses, pois é impossível separar certas escolhas políticas do próprio caráter de quem faz essas escolhas.
Alguns de nós, certamente, ainda lembram da época em que Amaral Neto era o titular de um dos principais programas da Globo, uma infecta e ridícula bajulação da ditadura denominada “Amaral Neto Repórter”.
Porém, mesmo aqueles que têm uma memória dita elefantina, provavelmente não lembram de como surgiu o apelido pelo qual esse elemento ficou conhecido. A maioria, se perguntada sobre esse palpitante tema, provavelmente dirá que ele surgiu no “Pasquim”, um pouco antes da prisão de quase toda a sua redação, em 1970. Nós assim acreditávamos. Porém, não é verdade.
O apelido surgiu no “Correio da Manhã” – um jornal moderado, muitas vezes conservador, que apoiara o golpe de 1º de abril, mas passou rapidamente para a oposição à ditadura.
No dia 13 de maio de 1964, na página 2, aquele jornal carioca publicou um texto intitulado “Retrato falado de um amoral”. Reproduziremos aqui a sua íntegra, pois, talvez, seja um dos textos mais memoráveis – e, no entanto, de mais apagada memória – da imprensa brasileira:
“Um leitor de São Paulo escreveu-nos denunciando algumas torpes calúnias, proferidas por um lumpen da política carioca, num programa de televisão paulista, contra o CORREIO DA MANHÃ.
“Procuramos então conhecer a ficha desse criminoso comum, hoje acobertado por imunidades parlamentares. E colhemos as seguintes informações: “Seu verbete começa na Marinha Mercante, por onde andou, aí nos anos 40. Alcaguete, traficante de tóxicos (atravessador), chantagista e mistificador, costumava ainda dar o ‘golpe’ do marido ultrajado, forjando simulacros de flagrante de adultério. Era ligado a três delinquentes juvenis, um dos quais de nome Alfredo, que foi, depois, funcionário do IAPM. Certa feita chegou a promover uma farsa de ectoplasma, em que ele próprio se fez fotografar coberto de uma túnica branca e transparente, como estando a encarnar – hélas! – o espírito de Vitor Hugo.
“Após o término da Segunda Guerra Mundial, ingressou na política pela porta dos fundos, como informante de uma embaixada estrangeira. Posto na ilegalidade o Partido Comunista, começou ele sua militância de anticomunista profissional. Daí saltou para o jornalismo marrom, editando uma revista de escândalos, que se sustentava com o produto da chantagem.
“Em 1955, foi o principal acusado no inquérito encaminhado pelo DOPS à 23ª Vara Criminal, por haver cometido crime de tentativa de subversão da ordem pública, de mistura com extorsões praticadas por meio de insistentes ameaças. Nessa ocasião, confessou ao delegado Olavo Rangel que conspirava para impedir a posse dos eleitos no pleito de 3 de outubro daquele ano.
“Prosseguindo em suas aventuras, conseguiu nada menos que um mandato de vereador e, em seguida, de deputado, de que se tem utilizado como uma gazua de ouro. Assim é que, na Assembleia Legislativa da Guanabara, envolveu-se na negociata dos impostos sonegados por exportadores de café, advogando e conseguindo anistia para uma dívida de 6 bilhões de cruzeiros, em prejuízo dos cofres públicos. Logo após quis demonstrar a inocência do governo Carlos Lacerda, de que era líder, na negociata do ‘ferro velho’, acabando por confirmar que carros novos foram vendidos a cinco cruzeiros o quilo, como se fossem sucata.
“Documento assinado pelos então vereadores Jair Martins, José Romero, Ubaldo de Oliveira e Mourão Filho, exibido na televisão em 22 de novembro de 1960, acusava-o de ter oferecido, entre outras coisas, 300 nomeações para os quadros do funcionalismo da Assembleia em troca de apoio parlamentar ao chefe do governo, de quem era sócio e servidor. Para servir ao mesmo senhor, esteve envolvido no rumoroso caso da permuta de terreno da Avenida Chile com o prédio de um vespertino da Rua do Lavradio.
“Em 1958, num acesso oratório, afirmou publicamente que o sr. Lacerda se havia ‘vendido’, ao candidatar-se a deputado, abandonando a ideia do golpe de Estado, enquanto que ele – conforme se tem visto – deu o ‘golpe’ parlamentar para melhor se vender.
“Educado na escola da chantagem, sua língua não poupa sequer o mais alto tribunal do País. Referindo-se à liminar concedida pelo ministro Ary Franco, do STF, à antiga Câmara de Vereadores, sobre a inconstitucionalidade do Ato Institucional nº 1, declarou então: ‘Esta sentença pode e deve ser desrespeitada, porque foi dada entre copos de uísque e champanha, nos bares de Brasília’. Essa agressão brutal e absurda bem revela o estofo moral desse indivíduo, que hoje é bastante conhecido em certos círculos por este feliz trocadilho: amoral nato”.
Esse era, na época, o principal parlamentar lacerdista, conhecido, depois do golpe de Estado, como “alter ego do sr. Carlos Lacerda, candidato das forças moralistas ao Governo do Estado da Guanabara, e porta-voz, na Câmara Federal, do movimento de 1º de abril” (Maia Neto, “Brasil – Guerra Quente na América Latina”, Civilização Brasileira, 1965).
5
O principal depoimento da CPI do IBAD foi prestado pelo governador de Pernambuco, Miguel Arraes, nos dias 22 e 23 de agosto de 1963. Os presentes – inclusive o repórter Edmar Morel – descreveram como “impressionante” o testemunho de Arraes, pela abundância de fatos e documentos incontestáveis que basearam a sua candente denúncia. No que reproduzimos nesta página, os cortes foram pequenos, e apenas por razões de espaço.
“Sou democrata e nacionalista. Por isso, venho depor nesta Comissão Parlamentar de Inquérito na esperança de que sejam tomadas medidas efetivas para coibir a interferência do poder do dinheiro no processo eleitoral”, iniciou Arraes.
“Entendo que democracia é o governo do povo e não de grupo ou de parcelas da população. Sendo assim, as eleições já seriam falhas, porque delas não participam milhões de brasileiros analfabetos. Numa cidade de um milhão de habitantes, como o Recife, votam apenas 20% – e do processo de escolha deixa de participar exatamente a população mais necessitada. Em municípios onde domina o latifúndio canavieiro, votam pequena parcela dos habitantes da cidade e poucos trabalhadores do campo. Não chega a 10% o número de eleitores nos engenhos.
“Essa distorção do processo democrático em decorrência da estrutura legal do país, se não é aceitável, tem que ser, pelo menos, compreendida. Isso decorre, porém, da esperança de que os próprios dirigentes reconheçam a necessidade das mudanças e as realizem, usando as próprias condições que a Constituição estabelece para tanto.
“Há os que assim pensam e não dispõem dos meios para fazer. Há também os que pensam exatamente o contrário, isto é, os que pretendem conservar os privilégios, a qualquer preço e de qualquer forma. Como dispõem de meios, passaram a se organizar e a utilizar todos os recursos para deformar o nosso já precário sistema eleitoral, através de organizações, como o IBAD.
“Foi, agora, iniciado um processo para apurar a retenção de títulos eleitorais na zona pobre do Recife, onde se acaba de derramar dinheiro, cobertores e sandálias, visando a distorcer o pleito municipal.
“Esse tipo de influência visa, sem dúvida, às camadas semialfabetizadas, não esclarecidas, que a extrema necessidade tornou imediatista. A mãe de família tem que resolver naquele dia ou já devia ter resolvido muito antes problemas que angustiam sua família: a falta de roupa para os filhos, o aluguel do mocambo que atrasou alguns meses e toda a série de aflições que não permitem uma prolongada espera pelas reformas de base, pela liquidação do desemprego e pela estabilização do custo de vida.
“Os democratas insistem em pregar ao povo a necessidade de reformas que possam resolver a situação do país, como único caminho válido para o desenvolvimento em benefício de todos. Enquanto isso, os grupos mais retrógrados procuram, a troco de dinheiro, confundir e mistificar e, sobretudo, controlar e dominar os meios de divulgação, alguns dos quais se conseguem se manter independentes gracas a condições especiais. Além disso, como ocorreu no Recite e está sendo apurado pelo TRE, procuram influir nas camadas mais pobres, acenando com o imediato, que nada resolve, mas aparece com a força de um pão diante de um faminto.
“Essa distorção dos fatos se comprova através do que se tem dito de Pernambuco nos últimos tempos. Fala-se em intranquilidade, em agitação e chovem as acusações ao Governo de pretender promovê-la, quando nos esforçamos exatamente em promover a pacificação. A maior prova disso é o entendimento, jamais feito entre usineiros e trabalhadores do campo, que acaba de ser realizado.
‘Se tudo continuar dessa forma, teremos cada vez menos condições de falar e a democracia se afogará na comoção. Isso é exatamente o que pretendem os golpistas que sempre lutaram contra ela.
“A documentação de que dispomos é incontestável. Estribados no sigilo bancário, os responsáveis procuram esconder a origem do dinheiro, os gastos imoderados e suas finalidades. Aqui estão, entretanto, as provas.
“Nunca, em qualquer tempo, se mobilizaram em Pernambuco recursos financeiros tão compactos como na campanha eleitoral de 62, visando a eleger um representante do poder econômico para o Governo do Estado. A batalha que ganhamos contra o sr. João Cleofas foi a mais áspera e renhida de quantas já se travaram em Pernambuco.
“Do lado do representante do poder econômico, todos os recursos foram utilizados: da intriga à calúnia; da tentativa de calar a nossa voz à compra desbragada de consciências. Armou-se, em Pernambuco, nos meses que antecederam a outubro de 1962, a mais brutalmente dispendiosa máquina publicitária de que se tem notícia no Estado.
“Para se ter uma ideia do que se passou, basta lembrar um fato, ainda dos dias iniciais da campanha.
“Quando o então governador Cid Sampaio preferiu o nome de um de seus secretários, o sr. Paulo Maciel, ao do sr. João Cleofas, afastou-se este, num recuo estratégico, para uma de suas fazendas, na cidade de Vitória de Santo Antão. Durante quinze dias a fio, o Recife foi coberto de dísticos, cartazes, faixas, com um único slogan: “O povo gosta de Cleofas” Durante quinze dias a fio, em todas as estações de rádio, sem exceção, de manhã, de tarde, de noite, de madrugada, transmitiu-se, de cinco em cinco minutos, o slogan invariável: “O povo gosta de Cleofas”. Era quase a propaganda subliminar… Mas o povo terminou mesmo não o elegendo.
“Já então se tinha mobilizado, e atuava desenvoltamente, com todos os largos recursos de que pôde dispor, para atirar-se contra mim e eleger, fosse de que modo fosse, o meu adversário, essa monstruosa máquina de corrupção eleitoral que se tornou conhecida pela sigla tristemente famosa de IBAD: o chamado Instituto Brasileiro de Ação Democrática.
“Dinheiro em larga escala; veículos do último tipo, equipados com alto-falantes; contratos fabulosos com jornais, estações de TV e emissoras de rádio; ofertas generosas em dinheiro e vasto material de propaganda a quantos candidatos à deputação federal ou estadual formassem ao seu lado, tudo foi utilizado com prodigiosa liberalidade. Nada se poupou. Não se poupou sequer o padre Vanderlei Simões, meu atual secretário da Agricultura. Panfletos mentirosos, acusando-o de desobedecer ao arcebispo, foram espalhados à larga.
“Depois do pleito, conseguimos reunir alguma documentação esparsa, fragmentária, da ação do IBAD em Pernambuco. Tudo isso forma um compacto dossiê, reunido em dois volumes, que ora vos trago para que o examineis, confrontando com o que já conseguistes.
“O superintendente, em Pernambuco, do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, era o sr. Frutuoso Osório Filho, que lá permaneceu durante toda a campanha. Com procuração ampla, para atuar em Pernambuco, dos srs. Ivan Hasslocher, Carlos Lavínio Reis e Barthelmy Beer, diretores da S.A Incrementadora de Vendas Promotion, com sede na rua Marechal Câmara, 271, 8.° andar, grupo 801, o sr. Frutuoso Osório Filho movimentou, em Pernambuco, entre 30 de maio de 62 a 1º de outubro do mesmo ano, nada menos de Cr$ 308.057.100,00 e possivelmente mais Cr$ 107.000.000,00, de que temos algumas referências.
“O coordenador-geral da “Promotion” em Pernambuco, coronel reformado Astrogildo Correia, movimentou só no Banco Mineiro da Produção, exatamente Cr$ 63 353 247,60. Canhoto de 46 cheques encontram-se na documentação reunida.
“Uma figura secundária, como o sr. Adeildo Coutinho Beltrão, movimentou, só no Banco Mineiro da Produção, Cr$ 26.720.000,00. O sr. Adeildo informou que também movimentou recursos financeiros de vulto no Banco Nacional do Norte.
“Estas são algumas das figuras que controlavam os recursos financeiros do IBAD, da “Promotion” e da Adep em Pernambuco.
“A Adep, subsidiária do IBAD, deu ajuda financeira e cobertura publicitária através da imprensa, rádio e TV, e ainda por meio de faixas e cartazes, a sete candidatos a deputado federal e a trinta e um candidatos a deputado estadual.
“Elegeram-se, com a ajuda do IBAD, os deputados federais Costa Cavalcanti, Augusto Novais, Aldo Sampaio, Arruda Câmara, José Meira c Aurino Valois. Não se reelegeu, apesar da ajuda, o ex-deputado federal José Lopes de Siqueira Santos.
“Elegeram-se para a Assembleia Legislativa, com ajuda do IBAD, quatorze deputados estaduais: Antônio Correia, Felipe Coelho, Suetone Alencar, Olímpio Ferraz, Francisco Sampaio Filho, Antônio Luís Filho, Draiton Nejaim, Olímpio Mendonça, Antônio Barreto Sampaio, Elias Libânio, Adauto José de Melo, Antônio Farias e Audomar Ferraz. Não se elegeram, apesar da ajuda do IBAD, os candidatos Aderval Torres, Agripino Almeida, Luís Oliveira, Álvaro Costa Lima, Clodomir Moreira, Arnaldo P. Oliveira, José Emídio Lima, Justino Alves Bezerra, Clóvis Correia, Antônio Pinto Ramalho, Francisco de Assis Barros, Jurandir Barros, Dídimo Guerra, Constâncio Maranhão e Francisco Falcão.
“Para se ter ideia da largueza de recursos que o IBAD ostentava, bastará dizer que o sr. Lael Sampaio, irmão do governador Cid Sampaio, recebeu, de uma só vez, através do cheque n.° 78.43.93, contra o Banco Mineiro da Produção, a importância de cinco milhões de cruzeiros. Cheque emitido a 30 de julho de 62.
“Até o candidato João Cleofas, pessoalmente, sacou do IBAD: dois milhões. Cheque ref. 35, série XXVIII, n.° 64.74.02. Emitido a 4 de setembro de 1962.
“As verbas utilizadas na imprensa, no rádio e na TV foram amplas.
“Para fazer o jogo do sr. Cleofas, o sr. Rui Cabral, produtor do programa semanal “Cadeira de Engraxate”, na TV Canal 2 (Rádio Jornal do Comércio), recebeu do IBAD um milhão de cruzeiros. Na documentação apreendida, o seu programa, ao lado de outros três, figura com a classificação de “negociável”.
“O produtor de TV Fernando Castelão (”Você faz o Show” – Canal 2) recebeu do IBAD Cr$ 200.000,00 somente para declarar que ia votar no sr. Cleofas.
“O sr. Severino Barbosa, do “Dramas da Cidade”, transmitido pela Rádio Clube de Pernambuco, recebeu do IBAD, somente no mês de agosto de 62, a quantia de Cr$ 670.000,00.
“E até no Interior do Estado a ação corruptora do IBAD se fez sentir. No programa de aniversário da Rádio Difusora de Caruaru, Geraldo Liberal e Florisa Rossi receberam Cr$ 30.000,00 para declararem, pura e simplesmente, que iam votar no sr. Cleofas.
“Quero ressalvar que os nomes citados são de pessoas (a lista total é ampla) que receberam dinheiro irregularmente. Alguns jornalistas e radialistas prestaram serviços profissionais no “bureau” eleitoral do candidato, e não podem ser incriminados.
“Eis, em síntese, o que foi a ação do IBAD em Pernambuco. Os detalhes, alguns até aparentemente insignificantes e miúdos, encontram-se no vasto “dossier” que reunimos em Pernambuco: planejamento publicitário, movimentação bancária, fotos, compromissos assumidos de próprio punho pelos candidatos a postos eletivos, declarações, impressos, esquemas, fac-símile de vários documentos, relação das viaturas (todas do último tipo) postos à disposição da campanha eleitoral, cartas, bilhetes, recibos, notas fiscais, balancetes — tudo está reunido no “dossier” que vos trouxe.
“É bem verdade que nos faltam alguns documentos importantes. O que conseguimos reunir são peças isoladas de um ‘puzzle’, de um jogo de armar. Faltam muitas peças. Mas o que foi possível reunir aí está. Dá uma ideia de como se exercitou a ação corruptora do IBAD. Da tremenda pressão que se exerceu sobre o eleitorado Dos recursos que se mobilizaram para derrotar as forças populares e democráticas de Pernambuco.
“Valeu tudo contra nós: a calúnia, a injúria e, sobretudo, o dinheiro.
“Quero, por fim, chamar a atenção desta CPI para a relação de firmas contribuintes do IBAD. São 152 ao todo, segundo a relação apreendida.
“Figuram no documentário empresas de petróleo, como a Texaco e a Shell, grande parte da indústria farmacêutica estrangeira (Pfizer, Ciba, Gross, Shering, Enila, Bayer), a General Electric, IBM, Coca-Cola, Tecidos Lundgren, Standard Brands, Companhia de Cigarros Sousa Cruz, Remington Rand, Siderúrgica Belgo-Mineira, Companhia AEG de Eletricidade, Herm Stoltz, Lojas Americanas, empresa de perfumes Coty, Federação do Comércio do Recife e três estabelecimentos bancários (Novo Mundo, Irmãos Guimarães e Nacional do Norte). Os nomes dos representantes dessas empresas também figuram no documentário apreendido.
“As forças do IBAD estão tentando, agora, à vista das denúncias, das provas e documentos que a cada dia se avolumam, forjar uma estranha teoria, segundo a qual:
“1) é legitimo que grupos econômicos, para defender seus interesses, se organizem com instrumentos como o IBAD, IPÊS etc.;
“2) é legitimo que os grupos econômicos, através desses instrumentos, financiem candidaturas de vereadores, deputados, senadores, prefeitos e governadores, comprometendo-se estes, em troca, a defender os interesses dos grupos econômicos, apresentados como princípios democráticos, que cumpre defender e preservar;
“3) é legítimo aos candidatos receber dinheiro para financiamento de suas candidaturas, pois é cada dia mais caro o preço de uma eleição no Brasil.
“Ora, o preço de uma eleição é cada dia mais caro no Brasil, precisamente porque o preço da corrupção e do suborno não têm limites. Essa estranha teoria da legitimidade da influência do poder econômico no processo político, especialmente no processo eleitoral – estribada na qual muitos políticos e homens públicos estão confessando haver recebido dinheiro do IBAD – essa estranha teoria é uma prova de que em matéria de corrupção, de suborno, de traição aos legítimos interesses do povo brasileiro, já atingimos o limite extremo do cinismo, da desfaçatez, incompatível com a dignidade de todo aquele que recebe um mandato popular.
“Os forjadores dessa teoria, a quem a corrupção deixou sem brios, sem sensibilidade moral, já não podem nem mesmo perceber que, se os grupos econômicos financiam e compram candidatos é para deles exigir, uma vez eleitos, privilégios e favores vergonhosos, favores e privilégios que lhes devolvem, com lucros fabulosos e quase inacreditáveis o dinheiro empregado nas campanhas eleitorais. E fingem esquecer que é em consequência dessas negociatas que nosso povo a cada dia paga mais caro o pão com que se alimenta, a casa em que mora. A roupa que veste.
“E o que é mais grave: ávidos de dinheiro e mais dinheiro, insensíveis aos problemas do seu povo e à soberania de sua pátria, os forjadores e os aproveitadores desses instrumentos e dessa teoria já pouco se importam de vender seus votos e suas consciências – e com isso nossa independência e nossa soberania – a grupos econômicos internacionais que outros não são, nem poderiam ser, os financiadores do IBAD, os promotores da corrupção.
“Os grupos econômicos autenticamente nacionais, esses nem estão interessados em financiar o IBAD nem teriam os rios de dinheiro que têm, e acintosamente ostentam, os grupos internacionais. Seu dinheiro provém de financiamentos do Banco do Brasil e de outras agências governamentais de crédito, seu interesse deve ser o de desenvolver nossas possibilidades de produção e de riquezas, e nossa vergonha nas bolsas internacionais da corrupção e do suborno.
“Por tudo isso é que é necessário e é urgente, em nome de nossa honra nacional, que esta Comissão de Inquérito diga, com todas as letras, que é crime de alta traição:
“1) a organização, no território nacional, de agências internacionais de pressão econômica sobre nosso processo político e administrativo, tais como o IBAD, IPÊS etc.;
“2) que é crime de alta traição deixar-se subornar, sob qualquer pretexto, por essas agências. E suborno, no caso, é a tradução do eufemismo ‘financiamento’, a cuja sombra os traidores querem passar por bons moços inteligentes”.
E Arraes, aplaudido intensamente, encerrou seu depoimento na CPI do IBAD.
6
Além do depoimento do governador Arraes, houve mais dois, entre os 34 depoimentos na CPI do IBAD, que foram decisivos.
Um deles foi o de Arthur Oscar Junqueira, ex-secretário geral da Adep – o braço do IBAD para a compra de candidatos – que rompera com Hasslocher depois, segundo afirmou, de algumas tentativas frustradas de descobrir a origem dos recursos distribuídos na campanha eleitoral (a versão de Hasslocher foi a de que Junqueira teria cometido um desfalque; não encontramos prova, porém, é verdade, por outro lado, que Junqueira destruiu os documentos do IBAD, inclusive prestações de contas, que estavam em seu poder, impedindo uma investigação mais precisa pela CPI).
Junqueira forneceu a sua avaliação das quantias, manipuladas pelo IBAD/Adep, à CPI:
DEPUTADO RUBENS PAIVA: Tive conhecimento, através de conversas com outras pessoas, de que o senhor teria declarado que está convencido de que o IBAD havia empregado cerca de 5 bilhões de cruzeiros em programas de televisão. Naturalmente, não estou lhe pedindo que me mostre como foram aplicados 5 bilhões. Quero saber a sua impressão pessoal.
ARTHUR JUNQUEIRA: Quando a gente faz uma estimativa, pode fazê-la aproximadamente. Quanto à referência a 5 bilhões, se levantássemos a existência do IBAD da data de sua fundação até o presente momento, talvez ultrapassássemos essa cifra (grifo nosso).
Em seu livro sobre Rubens Paiva, de onde extraímos esse trecho do interrogatório de Junqueira, Jason Tércio faz uma observação importante: “um apartamento de luxo em Ipanema, com três quartos e duas salas, custava em média 12 milhões de cruzeiros em 1963”.
Hoje temos a prova de que, além das multinacionais, uma parte não pequena do dinheiro vinha diretamente da CIA, pois, “documentos liberados em 2004 comprovaram que, durante a campanha eleitoral de 1962, no Brasil, Gordon se reuniu na Casa Branca com o presidente John Kennedy e o subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos, Richard Goodwin (…). Foi autorizada a liberação de US$ 8 milhões para a CIA distribuir a candidatos e organizações de oposição. Cf. The Presidential Recordings: John F. Kennedy. Charlottesville, VA: Miller Center of Public Affairs, Univ. Virginia” (Jason Tércio, op. cit., p. 81, nota).
Somente por isso, é possível perceber como as declarações posteriores de Lincoln Gordon eram mentirosas, mesmo quando ele não podia negar determinados fatos.
Arthur Oscar Junqueira fora um dos organizadores do “Movimento Popular Jânio Quadros” – e aqui parece residir o erro da CIA, ao recrutar políticos para a estrutura do IBAD. Tudo indica que os agentes da CIA não perceberam que Jânio Quadros, exatamente por suas características, fora apoiado, em sua campanha à Presidência, não apenas pelos entreguistas da UDN, mas até por nacionalistas – o que, aliás, possibilitou também a existência do “Movimento Jan-Jan” (Jânio para presidente e Jango para vice-presidente – na época, a eleição do vice-presidente era independente da eleição do presidente), lançado por Dante Pellacani em São Paulo.
Assim, o outro depoimento mais importante da CPI foi o do jurista Carlos Castilho Cabral – ex-deputado, ex-presidente da anti-getulista “CPI da Última Hora” e ex-presidente do “Movimento Popular Jânio Quadros”. Aparentemente – do ponto de vista da CIA – alguém com credenciais impecáveis. Mas…
Relata Edmar Morel:
“Coube ao autor deste livro o privilégio de entrevistar, em primeira mão, o jurisconsulto Castilho Cabral, durante longas horas, quando o antigo presidente do ‘Movimento Popular Jânio Quadros’ fez estarrecedora denúncia, narrando, detalhe por detalhe, a visita que recebeu do sr. Ivan Hasslocher, o inspirador do IBAD, e que se fazia acompanhar do sr. John Foster Dulles Júnior. Nessa ocasião, os dois prometeram um bilhão de cruzeiros ao sr. Castilho Cabral em troca de ele escolher a dedo candidatos ao Senado Federal e à Câmara dos Deputados que jurassem não hostilizar o imperialismo norte-americano.
“É bom lembrar que o sr. John Foster Dulles Júnior é o presidente da Hanna, tendo o sr. Lucas Lopes como cavalo de aluguel. O IBAD dispunha de espantosa quantia em dinheiro, proveniente do Fundo do Trigo (40%), importância manipulada pelo embaixador Lincoln Gordon, o mentor dos Srs. Ivan Hasslocher e Foster Dulles” (Edmar Morel, “O Golpe Começou em Washington”, Civ. Bras., 1965).
A Hanna Mining Corporation era um gigantesco monopólio norte-americano de mineração que açambarcava boa parte do minério de ferro do Brasil – e a quem o notório Roberto Campos, segundo testemunho de um amigo (dele), pretendia vender a Vale do Rio Doce.
O “fundo do trigo”, à disposição da embaixada norte-americana, era dinheiro para, supostamente, financiar importações de trigo norte-americano pelo Brasil.
Quanto a “John Foster Dulles Júnior” – aliás, John Foster Dulles II -, era o neto do secretário de Estado do governo Eisenhower, articulador e executor da “Guerra Fria” (e, não por acaso, advogado dos Rockefellers e “chairman” da Fundação Rockefeller durante 17 anos). Dulles II era, também, sobrinho-neto do organizador da CIA, Allen Dulles.
Castilho Cabral recusou a proposta de Dulles e Hasslocher. Eles haviam avaliado de modo desastroso o objeto de seu assédio, como se pôde ver na CPI do IBAD:
DEPUTADO RUBENS PAIVA: V.Exa., em seu depoimento brilhante desta manhã, nos dizia que ao examinar o problema do IBAD, Adep, etc., encontrou como uma das imposições sérias o fato de essas entidades resolverem incluir em seu programa a defesa do capital estrangeiro e interferir na linha da política externa do país. Entendia V.Exa. Que não cabia a entidades dessa natureza tais assuntos. Indago de V.Exa.: terá isto que ver com alguma eventual simpatia para efeito da obtenção de fundos a ser conquistada entre as agências do capital estrangeiro em nosso país?
CASTILHO CABRAL: Seria julgamento objetivo muito difícil de produzir neste momento. O que declarei e que consta da exposição inicial, como de várias passagens desta inquirição, é que constando do programa publicado pela revista Ação Democrática como sendo da Ação Democrática Parlamentar – e que o grupo Hasslocher desejava entrasse com o programa-manifesto da Ação Democrática Popular –, constando desse folheto um item relativo ao apoio ao capital estrangeiro, eu não concordava com isto, porque acho que nenhum partido político brasileiro deveria colocar no seu conjunto programático um item desse tipo, porque tolheria mais tarde a liberdade dos membros desse partido de se pronunciarem no Parlamento ou fora dele por qualquer restrição ao capital estrangeiro em nosso país (…). Por isso mesmo constituiu isto uma das razões de minha recusa em dirigir a nova organização.
Desde o princípio, a luta, na CPI, centrou-se na origem dos recursos dispendidos pelo IBAD/Adepe. Quando os deputados ibadianos levantaram que os recursos eram “nacionais” e vinham da indústria – portanto, segundo eles, não haveria problemas em recebê-los -, replicou o deputado Rubens Paiva:
“… cerca de metade da indústria dita brasileira na realidade é indústria estrangeira. Acho inteiramente espúrio se criar neste país, à sombra de grande poder econômico, sobretudo das indústrias estrangeiras, agências econômicas de grandes monopólios estrangeiros, essas siglas todas que constituem o próspero parque industrial da indústria anticomunista que, ao que estamos vendo, é talvez daquelas mais rendosas, que dispõem de maiores recursos” (cf. Jason Tércio, “Rubens Paiva”, Perfis Parlamentares nº 67, Edições Câmara, Brasília, 2013, p. 69).
A questão, aqui, como destacou, no relatório final, o deputado Pedro Aleixo (UDN-MG), residia no seguinte:
“Incontestavelmente, tem para nós a maior importância a indagação sobre a origem das contribuições ou auxílio pecuniário. É que na lei nº 1.164, de 24/07/1950 [o antigo Código Eleitoral, que antecedeu o atual], está inscrito: ‘É vedado aos partidos políticos: I – Receber, direta ou indiretamente, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro de procedência estrangeira’“ (cf. Parecer do relator, Diário do Congresso Nacional, Ano XVIII, Nº 108, Seção I, 14/12/1963, p. 9943).
É verdade que, como também nota o relator, “se, como está expresso nos dispositivos legais transcritos, não se apurar qual é a procedência das contribuições ou dos auxílios pecuniários, se não forem individuados os contribuintes, temos que forçosamente concluir que são ilícitos os recursos financeiros, porque a origem deles não está mencionada” (idem).
No entanto, a questão da origem estrangeira (isto é, norte-americana) do dinheiro derramado pelo IBAD nas eleições de 1962, continuava a ser o centro da questão – e da luta –, até porque não haveria necessidade de investigar se o dinheiro fosse de origem lícya. Na verdade, era um daqueles casos, algo paradoxais, em que é necessário provar uma ilicitude evidente por si mesma.
O resultado é que isso abriu espaço – afinal, o relator era um dos bacharéis da UDN – para um relatório paulificante. É preciso muita paciência para suportar, logo de início, uma quase interminável e abstrata dissertação sobre as CPIs na legislação, na doutrina jurídica e na jurisprudência ao redor do mundo e ao longo da história. Esse introito, felizmente, pode ser ignorado, ou seja, “pulado”. O mesmo, desgraçadamente, não se pode fazer com outros trechos que repelem o leitor por seu estilo fastidioso…
Apesar disso, o relatório apontava uma série de irregularidades e delitos – e, em vários aspectos, era bastante detalhado. Por exemplo, hoje, por sua leitura, é forçoso concluir que não era apenas entre os parlamentares que a CIA estava atuando através do dinheiro do IBAD. É óbvia a conclusão de que se estava tentando penetrar no meio militar não somente através da ação pessoal de Vernon Walters, o futuro diretor da CIA (nessa época, adido militar dos EUA no Brasil e conselheiro de Castelo Branco), mas também através do IBAD.
Sobre isso, são muito esclarecedores os depoimentos dos generais reformados Victor Moreira Maia e João Barbato. O primeiro deles fora, inclusive, assessor do marechal Lott na campanha à Presidência.
Por suas qualidades, o relatório do deputado Pedro Aleixo foi aprovado pela CPI, por unanimidade, em dezembro de 1963. No entanto, permaneciam os defeitos, especialmente a questão da origem estrangeira do dinheiro, que seria confirmada pelos próprios norte-americanos mais de uma década depois, e outra – o peso real da interferência do IBAD nas eleições –, que, no relatório, eram, ambas, muito subestimadas.
Em razão disso, o deputado Temperani Pereira (PTB-RS) apresentou declaração de voto – também subscrita pelo deputado Affonso Celso (PTB-RJ):
“Se bem não haja a confissão expressa de nenhum dos responsáveis pela máquina corruptora de que a procedência dos recursos utilizados fosse estrangeira, e inexistindo igualmente uma comprovação documentada desses recursos (que no inquérito ficaram, no atual estágio de investigação, genericamente como desconhecidos e ocultos), entretanto, os elementos circunstanciais e indiciários levam-nos a uma fundada suspeita de que tais recursos eram estrangeiros”.
Depois de citar alguns depoimentos colhidos pela CPI, prossegue o parlamentar gaúcho:
“Arrolemos, a seguir, alguns elementos relativos à formação psicológica, ideológica e comercial do pró-homem do IBAD, sr. Ivã Hasslocher, elementos que valem no conjunto circunstancial:
“a) vol. 10, fls. 2 096 e seg., declarações do sr. Ivã Hasslocher: até pouco antes de fundar a “Promotion”, viveu, estudou e trabalhou no exterior (EUA e Europa). Isto é, fundou a “Promotion” (e depois o IBAD) com título estrangeiro, partindo da vivência e convivência exclusivamente estrangeira, pois não residira desde menino no Brasil, aqui não estudara, não trabalhara nem fizera ambiente;
“b) declarações do mesmo sr. Ivã Hasslocher, vol. 10 folhas 2.108, em que confessa ter levado, para uma entrevista, o sr. John Foster Dulles Jr, diretor da Hanna Co., ao senhor Castilho Cabral, então apontado futuro ministro das Relações Exteriores do presidente Jânio Quadros, já eleito; a apresentação se fez através do declarante porque, segundo confessou, mantinha relações, cordiais com o dirigente da empresa estrangeira, ‘feitas um ano antes da apresentação ao sr. Castilho Cabral’;
“c) o fato estranho de, segundo o depoimento do sr. Ivã Haslocher e o do sr. Castilho Cabral, ter o primeiro proposto ao segundo ‘fizesse os trabalhos eleitorais da ADEP’ (I. Hasslocher), podendo para tanto dispor ‘de somas superiores a 1 bilhão de cruzeiros, que poderiam até ser elevadas às vésperas das eleições (C. Cabral), e, segundo o sr. Ivã Hasslocher, o que não foi concretizado ‘porque não teve boa impressão do sr. Castilho Cabral’, tendo este, por seu turno, afirmado ter recusado o lugar por não haver ficado satisfeito com o sigilo mantido pelo sr. Ivã Hasslocher acerca da origem de tão astronômica quantia, e também porque não concordou com determinados itens do programa da ADEP, principalmente os relativos à política externa do Pais e à participação do capital estrangeiro na economia nacional, intransigentemente defendida pelo sr. Ivã Hasslocher (ver depoimento do sr. Castilho Cabral, vol. 10, fls. 1810 e seguintes).
“Assim, entendemos que a inquinação de que o órgão corruptor tinha financiamento estrangeiro encontrou no inquérito elementos básicos para informar um libelo perfeitamente apto a que se prossiga, no Poder Judiciário, a averiguação devida do fato” (cf. Declaração de voto, Diário do Congresso Nacional, ed. cit., p. 9962-9963).
Além disso, sobre a importância da atividade do IBAD na distorção ou desrespeito – através da corrupção – à verdade eleitoral:
“… embora os resultados perseguidos pelo IBAD não tenham sido alcançados satisfatoriamente, isso se deveu a causas estranhas à intenção do órgão financiador e dos que foram financiados. (…) Se foi mínima ou nula a influência do IBAD, como assinala o relator, pela conclusão de que a maioria dos financiados não conseguiu eleger-se, este é um fato que deve ser saudado e tributado ao esclarecimento popular. Graças à politização do povo e à desclassificação do órgão subvencionador, já percebida pelo eleitorado, foi relativamente pequeno, admitimos, o número dos que se elegeram por força exclusiva do IBAD. Mas não se pode, em termos do bom senso e da experiência política, afirmar que uma propaganda de milhões de cruzeiros, com faixas, cartazes, vistosos cartazes, viaturas com alto-falantes, propaganda de rádio e televisão, fosse inoperante naqueles núcleos eleitorais mais influenciáveis pelos meios publicitários. Não temos dúvida em afirmar a existência de deputados federais que certamente se elegeram graças ao IBAD.
“Aqui fica positivamente clara a nossa posição. Não inquinamos de fraudulenta a eleição de todos os candidatos que tiveram financiamento do IBAD. Achamos mesmo que a maioria deles foi mero instrumento da cavilosa organização, sem ciência e consciência do papel que estava representando. Foram os ‘inocentes úteis’ que, devidamente esclarecidos, talvez houvessem repudiado aquele financiamento aviltante, como alguns o fizeram da tribuna da Câmara, posteriormente.
(…)
“Não nos parece possa ser qualificada de ‘simbólica’ a ajuda que o IBAD prestou a candidatos a postos eletivos; tal conclusão resulta de um raciocínio abstrato e por exclusão, que se nos afigura ao arrepio das confissões e das evidências” (cf. idem).
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Alguns leitores podem indagar por que estamos expondo, com algum detalhe, os acontecimentos que desembocaram na CPI do IBAD.
Um dos motivos está em nosso título – que é uma citação de Julius Fucik, na sua impressionante “Reportagem sob a forca”, um dos maiores livros (certamente não pelo número de páginas) da História da humanidade.
Torturado barbaramente pela Gestapo e esperando a morte, Fucik escreveu:
“Só peço uma coisa: aos que sobreviverem a esta época, que não esqueçam. Não esqueçam nem aos bons, nem aos maus. Reúnam com paciência os testemunhos dos que tombaram por si e por vocês. Um dia, o hoje pertencerá ao passado e se falará de uma grande época e dos heróis anônimos que fizeram história. Quisera que todo mundo soubesse que não houve heróis anônimos. Eram pessoas com nome, com rosto, com desejos e com esperanças – e a dor do último dos últimos não foi menor do que a do primeiro, cujo nome perdura. Quisera que todos eles estivessem em torno de vocês, como membros da sua família, como vocês mesmos.
“Os nazistas exterminaram famílias inteiras de heróis. Amem pelo menos a alguns deles, como se fossem um filho ou uma filha, e sintam-se orgulhosos dele como de um grande homem que viveu para o futuro. Cada um dos que serviram fielmente ao futuro e tombaram para fazê-lo mais belo, é uma figura esculpida em pedra. E cada um daqueles que, com o pó do passado, quiseram construir um dique para deter a revolução, não são mais que figurinhas de madeira, ainda que tenham os braços carregados de galões dourados.
“Mas é necessário ver também as figurinhas, vivendo em sua infâmia, em sua imbecilidade, em sua crueldade e em seu ridículo, porque é um material que nos servirá para o futuro.
“Eu posso dar a vocês somente o material que corresponde à declaração de uma testemunha. É limitado e sem o transcurso no tempo, tal e como pude vê-lo no pequeno setor em que atuei. Mas contém traços de uma verdadeira imagem da vida: os traços dos grandes e dos pequenos, das figuras e das figurinhas” (ext. de Julius Fucik, “Reportaje al pie de la horca”, trad. Esp. Libuse Prokopova, Akal, Madrid, 1985).
Outro motivo para nosso detalhamento – bem longe de exaustivo – pode ser percebido pelas datas.
De dezembro de 1963, quando foi aprovado o relatório da CPI do IBAD, foram apenas três meses até o golpe de Estado, a 1º de abril de 1964.
Em 6 janeiro de 1963 ocorrera o plebiscito que devolveu os poderes constitucionais ao presidente Jango. Portanto, o presidente teve pouco mais de um ano para governar plenamente.
Depois de quatro derrotas (na tentativa de golpe de 1961, nas eleições de 1962, no plebiscito de 1963 e no estouro do IBAD), o imperialismo norte-americano jogou, como se diz em xadrez, uma “combinação desesperada” – que poderia, perfeitamente, terminar em desastre do ponto de vista de seus interesses financeiros e monopolistas.
Como sabem os jogadores de xadrez, uma “desesperada” é uma tentativa tática de reverter uma desvantagem, geralmente estratégica (”posicional”, como se diz na teoria enxadrística). Não é à toa que esse recurso tático tem o desespero no próprio nome.
Parece estranho, visto seu poderio militar e econômico, chamar de “desesperada” a tática do imperialismo norte-americano. Mas não resta dúvida de que a possibilidade do Brasil se libertar, como disse o chefe operacional da CIA no Brasil a Philip Agee, deixava longe os então recentes acontecimentos em Cuba. Além de manter e ampliar os interesses norte-americanos já estabelecidos dentro do Brasil, os EUA não queriam, como observou Celso Furtado em “A Fantasia Desfeita” – seu livro de memórias do período 1958-1964 – um concorrente econômico e político dentro do que considerava sua área de influência.
É verdade que não era inevitável o desfecho de 1º de abril. Toda a discussão que se seguiu ao golpe, sob o caráter do erro cometido, mostra que já naquela época havia uma consciência sobre essa questão.
Hoje, é risível a história de que a “esquerda” deveria ter seguido San Tiago Dantas para evitar o golpe. A tese parece ser a de que não haveria golpe se todos se submetessem à política norte-americana…
Mas não é verdade. O golpe seria o mesmo, do ponto de vista que interessa: a opressão e pilhagem sobre a Nação, sobre o povo. Apenas, o lado que poderia resistir estaria silencioso…
Como isso era – e é – impossível, resta observar que a submissão, exceto em aspectos secundários, à política norte-americana era a característica do que San Tiago chamava de “esquerda positiva”, tão positiva que não incluía nem Barbosa Lima Sobrinho ou o marechal Osvino Ferreira Alves. No frigir dos ovos, a “esquerda positiva” de San Tiago resumia-se a ele mesmo. Quanto à “esquerda negativa”, não era apenas, como já se disse, Brizola e a ala mais nacionalista do PTB – para San Tiago, ela incluía qualquer um que se opusesse à sua política, que, qualitativamente, pouco se distinguia do receituário do FMI.
[Celso Furtado, no livro que mencionamos, acredita que San Tiago Dantas quisesse colocar alguma “racionalidade” na política brasileira. No mesmo capítulo, relata um telefonema em que David Rockefeller “espinafrou” (sic) San Tiago Dantas, ministro da Fazenda do Brasil, por conta de um projeto de lei, de iniciativa parlamentar, sobre a nacionalização dos bancos. Que San Tiago se deixasse “espinafrar” por um magnata norte-americano – e que este sentisse espaço para essa “espinafração” – é, precisamente, o problema de San Tiago Dantas. O que ele achava “racional” sempre era a manutenção do statu quo, no máximo com alguns adornos. Dificilmente as posições do próprio Furtado nessa época, sobre as “reformas de base”, sintetizadas em documento entregue a Jango, deveriam parecer sensatas a San Tiago – apesar de Furtado, certamente, não constituir, longe disso, a ala esquerda do governo. Mas é verdade que San Tiago apoiou o “Plano Trienal”, de Furtado. Certamente, deve ter achado muito “racionais” as concessões ao FMI que seu próprio autor, muitos anos depois, reconheceria (ainda que como manobra política para calar os “técnicos” do Fundo; como ele mesmo aponta, o problema com o FMI nunca foi “técnico”).]
Aqui, apenas acrescentaremos algo já mencionado por vários autores: no dia 1º de abril, a opção do presidente de evitar um banho de sangue infrutífero, foi tomada após saber que uma esquadra dos EUA se aproximava da costa brasileira.
Jango, depois, relataria ao procurador-geral da República de seu governo, Waldir Pires, que, três dias antes do golpe de Estado, San Tiago Dantas foi ao Palácio das Laranjeiras e disse: “presidente, eu quis muito conversar com o senhor, vim aqui porque quero que o senhor não permita que isso aconteça. Os Estados Unidos estão preparados para a guerra civil do Brasil. Tenho muita certeza de que a esquadra americana do Atlântico Sul se deslocou para perto do Brasil e, se houver uma guerra, os Estados Unidos fazem a intervenção”.
Como San Tiago Dantas soube disso três dias antes do golpe, quando a “Operação Brother Sam”, apesar de planejada, não fora ainda deflagrada – o que só aconteceria às 13:50 h do dia 31 de março?
Porém, pode ser um lapso. Segundo Hélio Silva, a visita de San Tiago Dantas ao Palácio das Laranjeiras foi no final da manhã de 1º de abril. O significado é idêntico ao relatado por Waldir Pires, mas o tom é até mais sinistro:
“Numa reunião para exame da situação no Palácio das Laranjeiras, o presidente João Goulart estudava com alguns assessores nomes que poderiam ser indicados para a intervenção federal em Minas. Foi nesse instante que o professor Clementino San Tiago Dantas interveio: ‘Não devemos nos deixar perturbar pelas emoções. É hora de nos mantermos com a cabeça fria. Não podemos nos dar ao luxo de sermos mais imprudentes. Como o senhor deve saber, presidente, o Departamento de Estado norte-americano hoje não sofre mais a influência da política de Kennedy, sofre outras influências, bem diversas. Não é impossível que esse movimento de Minas venha a ser apoiado pelo Departamento de Estado. Não é impossível que ele tenha se deflagrado com o conhecimento e a concordância do Departamento de Estado. Não é impossível que o Departamento de Estado venha a reconhecer a existência de um outro governo em território livre do Brasil’. O presidente quis saber se o professor estava só especulando. ‘Não’, respondeu o professor” (Hélio Silva, “1964: Golpe ou Contragolpe?”, 4ª ed., Porto Alegre, L&PM, 2014).
Atualmente, existe uma alentada bibliografia sobre San Tiago Dantas – a maior parte, fantasiosa e muito ignorante.
San Tiago Dantas era profissionalmente um advogado de empresas norte-americanas, autor de um “parecer jurídico” contra a posse de Getúlio em 1950 – respaldando a posição de Lacerda, e outros golpistas, completamente ao arrepio da Constituição de 1946 – e ligado aos testas-de-ferro dos Rockefellers. Foi também um dos redatores do relatório Abbink, da Comissão Abbink-Gouveia de Bulhões (o nome oficial era “Comissão Brasileiro-Americana de Estudos Econômicos”), que recomendava ao governo Dutra, entre outras coisas, a privatização das estatais.
Devido à tremenda confusão que ainda permanece, somos obrigados a nos estender mais do que pretendíamos sobre essa questão. Mas vale a pena.
Expressões usadas por Dantas, do tipo “nacionalismo democrático”, não são conceitos, seja lá de que terreno for do conhecimento. Pelo contrário, são chavões, vazios de significado, exceto o de, tendenciosamente, alcunhar de não-democráticos os nacionalistas, isto é, os que compreendiam a dominação imperialista como o principal obstáculo tanto ao desenvolvimento nacional quanto à democracia no Brasil. Se alguma utilidade teve a ditadura instalada em 1964 foi a de não deixar dúvidas, por oposição, sobre o vínculo inseparável, nos países dependentes, entre nacionalismo e democracia – afinal, não foram os nacionalistas que perpetraram o golpe nem instalaram a ditadura. Até porque, não precisavam: muito mais lhes servia a democracia. Exatamente por isso, o imperialismo e seus serviçais entreguistas a liquidaram.
É uma anomalia – mais ideológica que histórica – a atribuição a Dantas de uma suposta “política externa independente”, embora seja esse o nome de seu mais conhecido livro, onde, logo em sua introdução podemos encontrar a postulação de que “[a coexistência pacífica] é uma coexistência essencialmente competitiva (…). Foi o mundo socialista, e não ocidental, que pretendeu evitar esse contato competitivo através da instituição do isolamento sistemático, ou seja, da ‘cortina de ferro’. A política de aproximação com o Ocidente, hoje aceita e encorajada pelos dirigentes soviéticos, vem ao encontro de uma atitude que o mundo nunca repeliu” (San Tiago Dantas, “Política Externa Independente”, edição atualizada, Fundação Alexandre Gusmão, Brasília, 2011, p. 12).
Não precisamos transcrever mais, nem demonstrar que essa posição da “política externa independente” de San Tiago Dantas era, precisamente, a posição do establishment norte-americano, em especial do ideólogo do Departamento de Estado, George F. Kennan.
Outras afirmações de Dantas não ficariam deslocadas na boca – ou nos textos – de Roberto Campos ou Eugênio Gudin et caterva.
Por exemplo:
“O maior incremento da iniciativa pública, num país como o nosso, não tem significado um aumento efetivo de produtividade, mas uma elevação dos custos internos”; ou:
“a empresa estatal surge como um aparelho de destruição do desenvolvimento econômico, sob a aparência de promovê-lo”; ou:
“o incipiente processo de absorção das atividades econômicas pelo Estado a que estamos sendo arrastados (…) é por isso uma etapa de transição para o totalitarismo”.
Basta a Petrobrás para expor a inanidade subserviente dessa ideologia – de resto, com endereço certo: os ouvidos dos monopolistas financeiros norte-americanos e seus representantes políticos. Assim, há também apelos para que estes sejam mais compreensivos. Por exemplo: “a sobrevivência dos EUA e do estilo democrático de vida não é possível num mundo onde coexistam níveis exageradamente diversos de bem-estar social e riqueza”.
Hoje, com a Constituição dos EUA rasgada publicamente pelos “atos antipatrióticos”, não há ninguém inteligente que associe a “sobrevivência” dos EUA – tal como agora são – e a “sobrevivência” da democracia. Mas, alto lá: o professor San Tiago Dantas evitou a palavra “democracia”; ao invés, falou de “estilo democrático de vida”. O que quer dizer absolutamente nada. Apenas, ele considera que o “american way of life”, estribado na exploração, miséria e fome da maior parte da Humanidade, é o estilo de vida ideal para as elites servis dos países periféricos – e chama isso de “estilo democrático”.
Ou, talvez, tal “estilo” seja a expressão de seu sábio ensinamento de que “o direito é a disciplina do equilíbrio social e sua excelência se mede pela exatidão com que modera e contrasta as forças em trabalho pela desagregação da sociedade”.
O curioso, aqui, não é a abstração que ele faz da palavra “sociedade”, como se não existissem sociedades antissociais, isto é, decadentes, que demandam ser reformadas ou revolucionadas. O curioso é como, mesmo numa sociedade nesse patamar, o professor San Tiago Dantas prega o “equilíbrio social” pela “moderação” e “contraste” com as forças que trabalham pela mudança. Uma posição rara, pelo reacionarismo, até mesmo entre aqueles que nunca passaram fome e outras dificuldades – ou nunca foram violentados em seus direitos.
Dantas, por sinal, após sua entrada no PTB, não negou (talvez porque fosse inútil) as façanhas anteriores – apenas dizia que “reformulara” suas opiniões. Assim, chegou a ministro das Relações Exteriores e da Fazenda, e até a candidato (derrotado) ao cargo de primeiro-ministro.
Mas os petebistas que, sobretudo a partir de 1958, denunciaram que Dantas era o mesmo de sempre, estavam, essencialmente, com a razão – e não é um acaso que seu elogio fúnebre, em setembro de 1964, tenha vindo de Afonso Arinos, tedioso udenista que estivera na primeira linha do golpismo.
Talvez o melhor retrato psicológico de San Tiago Dantas seja, involuntariamente (porque pretendia ser um elogio), aquele que lhe fez Clarice Lispector em “A Descoberta do Mundo”. Apenas um pequeno trecho: “… Não posso dizer quantas rosas ele comprou para mim. Sei que eu andava pelas ruas sem poder carregar tantas, e à medida que eu andava as rosas caiam pelo chão. Se jamais fui bonita foi naquele amanhecer de Paris com rosas caindo de meus braços plenos”.
Não era apenas em relação a mulheres que, muito injustamente, achavam-se feias que ele exercia sedução. Há pelo menos um relato de como alguns membros da direção do PCB, na época, ficaram entusiasmados com Dantas, quando o Brasil, com ele no Ministério das Relações Exteriores, reconheceu a URSS. Por mais importante que tenha sido – e foi, realmente, importante – tratava-se, para San Tiago, do equivalente político das flores de Clarice, dirigidas à esquerda. A ponto de quase ser esquecido, por longos anos, o primeiro-ministro que decidiu a questão – Tancredo Neves – até que ele mesmo o lembrou, na campanha para a Presidência que derrubou a ditadura.
Essa superficialidade era, em San Tiago Dantas, uma segunda (talvez primeira) natureza. Como se a vida pudesse ser levada sem conflitos, pela submissão das pessoas à algumas aparências. Assim, depois de ser um expoente do integralismo, não teve dificuldades em sair da “Câmara dos 40” (o órgão máximo da Ação Integralista) quando as coisas se tornaram perigosas. Nem de passar de jurisconsulto anti-getulista, e de arauto do entreguismo, a vice-líder do PTB na Câmara e ministro petebista das Relações Exteriores e da Fazenda – sem que nada mudasse, substancialmente, exceto alguma coisa na retórica.
Somente em 1955, quando o presidente Juscelino quis nomeá-lo para o Ministério da Agricultura, San Tiago Dantas filiou-se ao PTB – pelo acordo com o PSD, o titular da Agricultura seria indicado pelo partido de Jango, que, aliás, vetou o nome de seu neo-filiado para o Ministério.
Mas ele somente chamou a atenção dos nacionalistas quando se candidatou a deputado federal por Minas Gerais e passou a inflacionar os custos da campanha eleitoral. Na verdade, sua chance de obter a candidatura e se eleger pelo lugar onde sempre atuara (o Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro) eram muito poucas. Daí a opção por Minas.
Porém, em 1958, o nacionalismo já ganhara terreno em todos os partidos. Por exemplo, um dos principais nomes da Frente Parlamentar Nacionalista era o deputado Gabriel Passos, da UDN de Minas.
Depois de uma conferência de Passos (futuro ministro das Minas e Energia de Jango) em Divinópolis, o prefeito da cidade, Luiz Fernandes de Souza, também da UDN, pediu ao respeitado jornalista Plínio de Abreu Ramos, ligado ao PTB, que fizesse uma intervenção. Um trecho:
“Os eleitores nacionalistas da UDN já têm um candidato em quem devem votar: é o conferencista que hoje vos falou, o deputado Gabriel Passos.
“Os nacionalistas do PTB e do PR se defrontam, em seus partidos, com maior sobrecarga de responsabilidades. Refiro-me à inclusão do Sr. Walter Moreira Sales na legenda republicana e do Sr. San Tiago Dantas na legenda trabalhista. O primeiro, além de representante de cerca de 35 empresas e organizações bancárias norte-americanas no Brasil, todas elas integradas do Grupo Rockefeller, é criminoso impune e poderoso, incurso em dois graves atentados cometidos recentemente contra a economia e a segurança do país: na refinaria de sua propriedade, a Capuava, ultrapassou a cota legal de produção autorizada pela lei 2.004, com o objetivo irrecusável de prejudicar as atividades da Petrobrás. Em seguida, é apontado e denunciado como especulador do café na Bolsa de Nova Iorque, como um dos beneficiários da manobra baixista contra a estabilização dos preços do nosso principal produto de exportação.
“E o Sr. San Tiago Dantas?
“É um profissional esperto e velhaco da advocacia administrativa contratado por Walter Moreira Sales e, ainda por influência de Walter, diretor do ‘Jornal do Comércio’ e vice-presidente da Capuava” (O Semanário, 22 a 29 de maio de 1958).
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Para o leitor com alguma idade, que passou o dia 1º de abril de 1964, por assim dizer, com o ouvido colado na rádio Mayrink Veiga – o principal órgão de comunicação dos nacionalistas nesse dia – a menção de Hélio Silva à chegada de San Tiago Dantas no Palácio das Laranjeiras ao final da manhã, insistindo que os EUA iam intervir, tem uma ressonância específica: durante toda essa manhã, a expectativa era de esmagamento rápido da tentativa de golpe.
Ainda que seja necessário não se ater apenas às aparências – daí o cunho relativo do que vem a seguir – o clima político na manhã daquele dia não pode ser atribuído a notícias falsas. Seria impossível tal falsificação do ânimo.
Pois era verdade que o general Ladário Pereira Teles chegara a Porto Alegre, assumira o comando do 3º Exército, a tropa decisiva que impedira o golpe em 1961, e lançara a ordem do dia:
“… acabo de assumir o comando do 3º Exército. Julgo-me perfeitamente conhecido não só pelos camaradas do 3º Exército como também pelos demais companheiros do Exército brasileiro. Sempre fui intransigente defensor da lei e da ordem e amante dos princípios democráticos. Aqui me encontro para cumprir rigorosamente as ordens das autoridades superiores. Todos os sacrifícios faremos para que a lei e a ordem sejam restauradas em todo o território nacional. Ninguém arrebatará das mãos do preclaro presidente João Goulart a bandeira da legalidade. O seu mandato é intocável porque é a expressão da soberania nacional. A força satânica dos privilégios não arrancará, do povo brasileiro, a bandeira das reformas. Por elas lutaremos, Exército e povo, sempre unidos, sempre uníssonos nos sentimentos, como temos sido em todo o decorrer da nossa história. Companheiros do 3º Exército, seus patrícios do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná, brava gente brasileira, como representante do excelentíssimo senhor presidente da República, senhor João Goulart, e sob as ordens do eminente ministro da Guerra, general de Exército Jair Dantas Ribeiro, conclamamos todos nós a cerrar fileiras na defesa da ordem, da lei e das instituições. Estou seguro e confiante de que a nossa causa é santa e que ninguém nos arrebatará essa vitória que já é nossa” (v. íntegra em Hélio Silva, “1964: Golpe ou Contragolpe?“ 4ª edição, L&PM Editores, 2014).
O governador golpista do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, fugira da capital. A 5ª Zona Aérea (Sul) da FAB, comandada pelo brigadeiro Othelo Ferraz, declarara-se pela legalidade. No Rio, a Vila Militar, comandada pelo general Oromar Osório (um dos militares que impediram o golpe em 1961), estava com a Constituição, assim como o comandante do 1º Exército, general Moraes Âncora, e seu correspondente na FAB, o comandante da 3ª Zona Aérea (Rio), brigadeiro Francisco Teixeira. O Regimento Sampaio, a unidade de infantaria mais famosa do Exército, partira em direção à divisa com Minas. Ao sul, as notícias eram de que o general Chrysantho de Miranda Figueiredo chegara a Curitiba para assumir o comando da Região Militar – essa, entre todas, foi a única notícia que não era verdadeira, pois o general Chrysantho, legalista que sempre honrou a sua farda, não conseguira assumir o comando no Paraná.
Mas, antes de tudo, o comandante do 2º Exército, Amaury Kruel, apesar de um manifesto à meia-noite, parecia aguardar que a situação se definisse, não fosse ele, até então, amigo pessoal de Jango – e um inimigo pessoal, desde a campanha da Itália, de Castelo Branco.
A divisão de Kruel é bastante evidente no relato do ministro da Agricultura, deputado Oswaldo Lima Filho (PTB-PE): o avião que o transportava, assim como a outros ministros e políticos, em direção a Brasília, fez uma escala para abastecimento em São Paulo. Os passageiros foram presos, por ordem do governador Ademar de Barros. Mas, depois que Oswaldo Lima Filho recorreu a Kruel, argumentando que “a Constituição ainda está em vigor”, foram todos liberados, com um pedido de desculpas – através do sobrinho do comandante, o então major Vinícius Kruel – e puderam prosseguir até a capital federal.
[cf. Sérgio Augusto Silveira, “Oswaldo Lima Filho – Ação política na trincheira nacionalista”, AL/PE, Recife, 2001, p. 30. No entanto, há uma imprecisão, nesse livro, que não diminui seus outros méritos: a escala em São Paulo não foi entre o Rio e Brasília, mas na volta de Porto Alegre para Brasília; e o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, não estava nesse avião, pois fora preso ainda no Rio. V. o relato do próprio Oswaldo Lima Filho na Câmara, “Diário do Congresso Nacional”, 04/04/1964, p. 2047; o relato da prisão de Jurema está em seu livro “Sexta-feira, 13”, ed. O Cruzeiro, 1964).]
Também esperando – e até hipotecando solidariedade a Jango – mantinha-se o comandante do 4º Exército, Justino Alves Bastos, que, em maio de 1958, fora o candidato nacionalista à presidência do Clube Militar, derrotando nada menos do que Castelo Branco – e reelegendo-se, em 1960, contra outro conhecido oficial, Peri Bevilacqua, neto de Benjamin Constant (o que mostra quanto o entreguismo estava em defensiva dentro das Forças Armadas por essa época – ou como a posição nacionalista avançara entre uma e outra eleição para o Clube Militar: o general Peri Bevilacqua, comparado a Castelo, era um gigante do nacionalismo e da democracia – como, aliás, mostrou durante a ditadura).
Anotemos, de passagem, que a traição de Kruel e Bastos foi justamente recompensada: dois anos depois, em 1966, estavam publicamente na vergonha e no ostracismo.
Kruel teve dificuldades para arrastar seus subordinados a romper com a legalidade: além do general Euryale de Jesus Zerbini, comandante da Infantaria Divisionária de Caçapava, os generais Aluísio de Miranda Mendes, comandante da 2ª Divisão de Infantaria, e Armando Bandeira de Morais, comandante da 2ª Região Militar, não concordaram com o golpe. Pressionados, os dois últimos aderiram sem grande entusiasmo. Zerbini manteve sua posição até o fim. Aliás, até a morte, 18 anos depois.
No dia 2 de abril, em Porto Alegre, o general Ladário disse ao presidente que ainda havia condições para resistir. Oswaldo Lima Filho, que estava nessa reunião – assim como o ministro do Trabalho, senador Amaury Silva (PTB-PR), o ministro da Saúde, deputado Wilson Fadul (PTB-MT), e o deputado Paulo Mincarone (PTB-RS) – relatou que “Jango disse não estar disposto a garantir seu mandato às custas de uma guerra sangrenta” (op. cit.).
Provavelmente, Jango estava certo. No mesmo dia, depois de ouvir pelo rádio que o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade (PSD-SP), havia declarado vaga a Presidência da República e empossado nela o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli (PSD-SP), Oswaldo Lima Filho foi para Brasília.
No dia seguinte, uma sexta-feira, reassumiu o seu mandato e subiu à tribuna da Câmara dos Deputados como líder em exercício do PTB. O que vem a seguir tem como fonte o “Diário do Congresso Nacional” de 4 de abril de 1964 (Seção I, páginas 2057 e 2058), de acordo com as notas taquigráficas.
OSWALDO LIMA FILHO (PTB-PE): Volto à tribuna, sem dúvida a mais alta do País, com a triste e desoladora impressão de quem voltasse a um templo conspurcado, degradado pelos próprios sacerdotes incumbidos de sua guarda. A posição do presidente do Congresso Nacional, do Exmo. Sr. presidente efetivo desta Casa, srs. Ranieri Mazzilli e Auro Moura Andrade, representa uma afronta aos mais legítimos ideais democráticos e, sobretudo, uma afronta à dignidade dos seus pares. O que se praticou aqui foi uma página de infâmia que degrada o Parlamento brasileiro e que, por muito tempo, permanecerá à face da Nação como uma mancha irremovível.
(…) o que se fez agora foi qualquer coisa de inominável. A Mesa do Congresso, pelo seu presidente, o ilustre aristocrata de Andradina, e o senhor presidente perpétuo, Ranieri Mazzilli, mancomunados pelo ódio, pela vingança, pelas suas ligações à estrutura latifundiária de que é um exemplar e um modelo…
Bocayuva Cunha (PTB-RJ): Herdeiro.
OSWALDO LIMA FILHO: … e herdeiro, diz bem V. Exª, e o outro pelo gozo e uso do poder...
Paulo Mincarone (PTB-RS): Pela ambição.
OSWALDO LIMA FILHO: … ambição, diz o nobre deputado Paulo Mincarone – meu companheiro na prisão e que já comunicou à Casa essa democracia singular que se instituiu à sombra dos tanques do general Olímpio Mourão -, mas esses homens comparecem à face do Congresso e, sem ouvir os seus pares, sem lhes pedir opinião, sem lhes pedir votos, anunciam a vacância do cargo, como que estivesse o presidente no estrangeiro.
Doutel de Andrade (PTB-SC): Permita-me. Foi, realmente, nobre deputado Oswaldo Lima Filho, uma decisão que não honra este Congresso Nacional…
OSWALDO LIMA FILHO: Seguramente o desonra.
Doutel de Andrade: … que o deslustra, diz bem V. Exª. Nessa Mesa (…) sentou-se realmente o senador Auro de Moura Andrade e em três minutos espezinhou a vontade dos brasileiros livremente revelada nas urnas nas últimas eleições, em três minutos apenas, sem dar a quem quer que fosse o direito de um protesto, o direito de ao menos exigir, reclamar e reivindicar que as leis fossem obedecidas. Foi, como disse V. Exª, uma decisão violenta, uma decisão brutal, agressiva, que ficará permanentemente como uma nódoa neste Congresso.
OSWALDO LIMA FILHO: Àquela altura, sr. presidente, membros do Governo deposto por esse golpe militar, anunciado com antecedência singular pelo “Washington Post” de há três dias, que o indicava como solução para a crise brasileira, solução modelar, definitiva, um golpe de Estado, no velho estilo latino-americano…
Doutel de Andrade: À velha maneira. É textual.
OSWALDO LIMA FILHO: … à velha maneira, diz bem o nobre deputado Doutel de Andrade – a essa hora, o sr. presidente da República, o dr. João Goulart, na Casa de Comando do III Exército, reunido com o general Ladário Pereira Teles, comandante daquele Exército, e o seu Estado Maior, com a presença dos ministros Wilson Fadul, Amaury Silva e do orador, examinava a forma de reagir contra a sublevação armada no País. E a essa mesma hora, nessa comédia que se praticava contra a Nação, a interpretação do presidente do Congresso Nacional dava como fora de cargo, fora do País, abandonando as suas funções, o presidente da República.
Doutel de Andrade: Permita V. Exª, nobre colega. E com um agravante: à mesa chegara, no mesmo instante, ofício da Casa Civil da Presidência da República…
Milton Dutra (PTB-RS): … que foi lido à força.
Doutel de Andrade: … que, diz V. Exª muito bem, foi lido à força aqui, comunicando que se encontrava em território nacional, o Presidente constitucional do Brasil. Ainda mais, nobre deputado: este Presidente ainda permanece em território nacional.
Milton Dutra: Não se afastou dele um minuto sequer.
Doutel de Andrade: Perfeitamente. Sua Exª não se afastou um minuto sequer do território nacional. Temos, portanto, uma situação esdrúxula neste país: o Presidente eleito, na plenitude de todas as suas prerrogativas, se encontra em território nacional, e um Sr. Senador da República, mancomunado com outros parlamentares, entende, a seu bel-prazer, em nome de seus interesses, das suas paixões, das suas vaidades ou da sua herança, de torná-lo assim ilegítimo e apeá-lo do poder. Esta a situação exata porque está passando, hoje, a nação brasileira.
OSWALDO LIMA FILHO: Agradeço o aparte do nobre deputado Doutel de Andrade.
Mas, sr. Presidente, de tal maneira está peiado, destituído de seus poderes o Congresso Nacional, de tal forma as garantias institucionais estão ausentes deste País, que é com evidente melancolia que me dirijo à ilustre Casa a que me honro de pertencer. Mas estas palavras ultrapassarão, creio eu, apesar da censura que se abate sobre os órgãos de divulgação, as paredes desta Casa para chegar ao povo que lá fora, violentado, espezinhado, vendo aprisionados os seus melhores filhos, que contempla com revolta, com indignação, impotente, essa traição…
Por sua importância, voltaremos ao discurso do deputado Oswaldo Lima Filho. Por agora, reproduziremos as palavras do ex-deputado, ex-ministro e empresário pernambucano Armando Monteiro Filho:
“Viver, todos nós vivemos, dar à vida a dimensão maior e ter por objetivo servir a humanidade é um privilégio de grandes homens. Oswaldo Lima Filho foi um grande homem e terá sempre o respeito e a admiração dos seus contemporâneos e, creio, que das gerações futuras que estudarem a história de Pernambuco e do Brasil” (prefácio para “Oswaldo Lima Filho – Ação política na trincheira nacionalista”).
Todos os que conheceram Oswaldo Lima Filho, sem dúvida, concordariam – e concordam.
Quando, em 11 de abril de 1964, o Ato Complementar nº 3 passou para a reserva os primeiros 122 oficiais (77 do Exército, 31 da FAB e 14 da Marinha), o país estava perdendo alguns dos mais brilhantes e patrióticos soldados que jamais estiveram nas fileiras das nossas Forças Armadas.
A melhor síntese, seria do general Ladário Pereira Teles, primeiro da lista no “ato nº 3”:
“Como em todas as arengas ‘golpistas’, o tema era o combate ao comunismo, em que, se afirmava, o país ia ser lançado. Aqui devo deixar consignado o meu testemunho a esse respeito. Sendo um dos generais da confiança do presidente João Goulart, tendo participado de várias reuniões com sua excelência, cabe-me afirmar, peremptoriamente, em solene declaração para a História, que jamais me foi insinuado por sua excelência qualquer movimento ou tendência para ferir a legalidade ou as instituições. Sempre ouvi do preclaro presidente as afirmações mais categóricas de que seria intransigente defensor da legalidade, das instituições vigentes e da democracia. Soldado do glorioso Exército de Caxias e Osório, fui, obstinada e intransigentemente, por convicção e até por temperamento, defensor da lei e das nossas instituições. Assim decorreram os meus hoje 45 anos de serviço ao Exército e à pátria. Nunca tive vocação para traidor. Filho de abastado estancieiro no Rio Grande do Sul, formei-me soldado em contato com o povo, sentindo suas agruras e as suas justas reivindicações sociais. Educado dentro dos princípios democráticos, formei o meu espírito e os meus sentimentos nesse ambiente. Sempre fui medularmente democrata. Jamais poderia defender um governo comprometido com o comunismo. Tenho hoje a perfeita certeza de que a invocação do combate ao comunismo, e a miserável campanha movida nesse sentido, é obra de alguns inconscientes, de muitos fanáticos e de uma malta de farsantes a serviço de políticos ‘sem votos’ e dos interesses de pessoas e grupos ligados à espoliação do povo brasileiro pelos interesses estrangeiros”.
Oito meses após o golpe, o general Ladário, resistindo às ameaças e perseguições, faleceu no Rio de Janeiro. Declarou sua esposa, dona Celina Teles, que Ladário “recebera um telefonema informando-o da prisão do sr. Leocádio Antunes, ex-presidente do BNDE e seu grande amigo. O interlocutor admitia a prisão iminente, também, do general e do engenheiro Hélio de Almeida, ex-ministro da Viação. Depois do telefonema o oficial ficou bastante emocionado, não revelou à família o nome do interlocutor e disse que ele, general, só morto sairia de sua casa, que não seria preso pelo DOPS. Adoeceu e [dois dias depois] teve o enfarte” (Correio da Manhã, 06/12/1964).
Compareceram às homenagens fúnebres, 11 generais da ativa – inclusive o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, Peri Bevilácqua, e um representante do chefe do Estado Maior do Exército, general Décio Palmeiro de Escobar – e figuras exponenciais, como o marechal Osvino Ferreira Alves, ex-comandante do 1º Exército, ex-presidente da Petrobrás, e, provavelmente, o mais popular dos oficiais-generais, logo após o marechal Lott; o enérgico general Ênio da Cunha Garcia, comandante da 2ª Divisão de Cavalaria no 3º Exército, durante a campanha contra a tentativa de golpe de 1961; e o almirante Hercolino Cascardo, primo de Ladário e famoso líder do levante no encouraçado São Paulo, durante a Revolução de 1924.
Não houve discursos. Todos os oficiais, com exceção do representante do general Escobar, estavam à paisana. A família não recusou honras militares. Mas é verdade que não as pediu.
Seis dias depois, a Candelária ficou repleta de militares e civis, durante a missa em homenagem ao general que tanto dignificara o Exército de Caxias.
(continua)