
Meta foi exposta em 2006 pelo então executivo-chefe, Didier Lombard: “vamos fazer os cortes de uma forma ou de outra, através da porta ou através da janela”. Só agora o caso chegou à Justiça, que o trata como “assédio moral”
Um julgamento chama a atenção da França: o do odiento sistema de perseguição e humilhação institucionalizado na então recém privatizada France Télécom, hoje Orange, para forçar a demissão de 22 mil funcionários considerados “excedentes”, que provocou uma onda de suicídios, e cuja meta foi exposta pelo então executivo-chefe, Didier Lombard: “vamos fazer os cortes de uma forma ou de outra, através da porta ou através da janela”.
Oficialmente, 39 pessoas foram reconhecidas como vítimas pela Justiça no caso em julgamento: 19 cometeram suicídio, 12 tentaram suicídio e oito sofreram depressão grave. Os sindicatos afirmam que o número foi maior. 13 suicídios de funcionários da France Télécom em 2008; 19 em 2009 e 27 em 2010; mais dezenas tentaram o suicídio e o número de casos de depressão grave e burn out [distúrbio de caráter depressivo, precedido de esgotamento físico e mental intenso] subiu ao teto.
O massacre ocorreu entre 2007 e 2010, e só agora sete executivos estão prestando contas sentados no banco dos réus: Lombard, seu número dois, Louis-Pierre Wenes, o ex-diretor de Recursos Humanos, Olivier Barberot, e mais quatro cúmplices.
A previsão é de que o julgamento vá durar dois meses. Depois de esperarem por mais de dez anos, ex-funcionários, familiares das vítimas e sindicalistas se concentraram nas portas da corte na segunda-feira (6). A CGT, Solidaires e outras centrais são parte da ação contra a Télécom.
Entre os mortos listados pelo Le Monde, há André Amelot, 54, que se enforcou; Camille Bodivit, 48, que pulou de uma ponte; Anne-Sophie Cassou, 42 anos, que ingeriu um coquetel de remédios e álcool; Corinne Cleuziou, 45, que também se enforcou; e Rémy Louvradoux, 56 anos, que se imolou no estacionamento da sede da France Telecon em Mérignac, periferia de Bordeaux, onde trabalhara por 33 anos.
Nicolas Grenoville, 28, se enforcou em sua casa em Besaçon usando um cabo France Telecom. “Meu trabalho me faz sofrer”, ele disse na mensagem que deixou. “Eu não suporto este trabalho e a France Télécom não se importa”.
As manifestações em 2009 contra a perseguição institucionalizada levaram um ano depois a inspeção do trabalho a constatar a brutalidade da Télécom contra os funcionários, o que foi seguido pela abertura de uma investigação do Ministério Público de Paris por “assédio moral e ameaça à vida de terceiros”.
INFERNO PARA DEMITIR EM MASSA
Conforme as investigações dos promotores, a direção da empresa privatizada decidiu eliminar 22 mil postos de trabalho, mas como os funcionários tinham estabilidade, resolveu promover uma campanha de perseguição em massa, tornando em um inferno a vida desses funcionários, para desestabilizá-los, gerar angústia e depressão, e forçar as demissões.
A ordem era levar os funcionários ao desespero, humilhando-os de todas as formas possíveis, estabelecendo metas inatingíveis de desempenho ou os transferindo de lá para cá, para locais distantes, longe dos filhos ou da família. Funcionários eram deixados até sem cadeira e sem mesa por semanas.
Para ampliar o número de cúmplices na virtual tortura, os chefes de setor que conseguiam mais demissões eram recompensados com bônus. Gerentes foram treinados para identificarem funcionários que cuidavam de crianças ou parentes idosos ou doentes, para transferi-los para longe e gerar sentimento de culpa, até que pedissem para sair.
De acordo com os autos, essa política ignóbil “implicou ou acentuou” em um bom número de empregados da empresa privatizada “um sofrimento cujas manifestações assumiram diferentes formas, sendo a mais dramática a passagem ao ato suicida”. É de Lombard também declaração minimizando a onda de suicídios: “uma moda passageira”.
Só em 2012 a situação na France Télécom normalizaria – o termo é do jornal Libération -, após o escândalo que levou ao afastamento de Lombard e sua equipe e das formas mais extremadas de “reengenharia” – a cínica forma como os neoliberais se referiam à brutal política de cortes e intensificação do trabalho para aumento dos lucros e do repasse aos acionistas.
A coisa tinha ido tão longe que um dos primeiros atos do substituto de Lombard, Stéphane Richard, foi forçado a reconhecer o suicídio de um funcionário no ano anterior, em Marselha, como “acidente de trabalho”. Ele deixara uma carta em que denunciava a “sobrecarga de trabalho” e uma gestão “baseada no terror”.
“MAIS ALGUÉM OU PIOR”
Ao tribunal, Lombard asseverou que não tinha qualquer responsabilidade nas mortes dos funcionários e atribuiu “aos jornais’ a quebra do moral dos funcionários, por estamparem que a empresa era horrível. Mas se negou a responder a um promotor se havia se arrependido de alguma de suas ações à frente da Télécom.
Nem precisava. Disse à corte que “se não estivesse lá, alguém mais teria feito o mesmo ou pior”, acrescentando que “transformações sociais” – se referiu assim ao desmonte dos direitos, desrespeito generalizado e corte de empregos – “não são agradáveis”. A alegação de que, se não fosse ele, “seria mais alguém ou pior”, parece coisa dos anais de Nuremberg.
Ao tribunal, o delegado sindical Patrick Ackermann, que em 2009 foi o primeiro a assinar a denúncia apresentada ao ministério público – “métodos gerenciais de extraordinária brutalidade para causar e acelerar a saída de um grande número de funcionários”-, disse que, na época, o comentário irônico entre os trabalhadores da Télécom, numa referência à série de TV Invaders, era de que “estamos sendo dirigidos por alienígenas”. Dirigindo-se aos réus no banco, ele bradou: “vocês são alienígeras, messieurs”.
Realmente, é difícil ver qualquer traço de humanidade nesse tipo de feitor moderno.
PLANO NEXT
O plano de Lombard (Next, assim, com acrônimo em inglês) era a preparação da Télécom para “se tornar um provedor global de internet”, após a privatização sob um governo socialista. O corte de 22 mil funcionários – 20% do total – era o elo essencial da meta de “aumentar em 15% a produtividade em três anos”.
A ‘inovação’ do celerado no comando da Télécom foi transformar os 22 mil alvos em cobaias de um experimento de desestabilização, pensado para se desenvolver em seis etapas, que iam da “incompreensão” à beira do suicídio, passando pela “revolta”, “desespero” e “depressão”.
Plano debatido detalhadamente, segundo o jornal Le Parisien, numa reunião em outubro de 2006, encabeçada por Lombard. “Temos de sair dessa posição de galinha mãe”, disse então o executivo, acrescentando que ia ser “um bocado mais autoritário do que no passado”, mas era a “única chance” de se livrarem dos 22 mil.
O sumário do plano foi acrescentado aos autos – apesar da ordem dada para destruir qualquer vestígio, uma secretária guardou uma cópia em casa.
JUSTIÇA?
A CGT pediu que a justiça seja feita “em primeiro lugar aos funcionários que perderam suas vidas por causa de seu trabalho”, mas também àqueles que ainda vivem sob as consequências morais de “uma organização desumanizada do trabalho ao extremo” – desde 2012 mais de 12 mil postos de trabalho foram cortados.
A justiça parece longe. Apesar de ser a primeira vez que esse tipo de política é levada à apreciação de um tribunal, a única acusação contra Lombard e seus capatazes é de “assédio moral” – extremamente leve para quem levou dezenas de pessoas por desespero à morte, ou quase, e como se tratasse do destempero ou insídia de um chefe em particular contra algum subalterno.
O ex-executivo no máximo ficará um ano na prisão e a multa é de 15 mil euros. É que os promotores descartaram a acusação de “homicídio culposo” [quando não há intenção de matar] ou de “pôr em perigo a vida de outrem”, o que teria estabelecido uma linha de causalidade entre as decisões da direção da empresa e a onda de suicídios.
No entendimento dos promotores, não cabe o julgamento dos planos de reestruturação lançados por Lombard e seus cúmplices, mas apenas do “método” da reestruturação, que foi caracterizado como “assédio moral”, nos termos do código penal francês.
“ELES SABIAM QUE PODERIAM MATAR”
A decisão dos promotores não satisfaz os familiares das vítimas, para quem a acusação deveria ser de homicídio culposo, e não meramente assédio moral.
Um dos filhos de Louvradoux – aquele que se imolou no estacionamento da Télécom – disse ao Le Parisien que “a resposta da Justiça, em adição a seu passo lento, não é proporcional ao horror e gravidade dos atos”.
Para ele, tal resposta “conforta com a impunidade os responsáveis pelo que aconteceu”. “O plano deles visava empurrar gente em massa até o limite. Eles sabiam que poderiam matar”.
A viúva de Louvradoux disse que quanto mais ele se sentia oprimido pelos problemas no trabalho, menos a família sabia o que fazer. “Ele se matou para pôr fim a um ciclo infernal em que ele foi pego e do qual não via qualquer saída – mas também para denunciar as práticas da companhia pela qual ele tinha dado sua vida”.
Depoimento semelhante do irmão de Grenoville: “cada dia tinha se tornado um inferno ele ir trabalhar. Quando se está sozinho, quando ninguém ajuda você, quando a hierarquia ri de você…”. Ele acrescentou que não esperava do julgamento justiça para com seu irmão. “Essa gente que é intocável, que foi à universidade com os líderes deste país, vão levar uma multa e impetrar apelação …. já meu irmão, ele nunca voltará”.
PRECEDENTE ABERTO
Mesmo com todas as suas limitações, a originalidade do caso é que um sistema – ainda que somente ‘o método’ – esteja sendo julgado e não atos perpetrados por uma pessoa contra outra, como é usual em casos de assédio moral.
O especialista em direito da saúde no Trabalho do Centro Nacional de Pesquisa Científica, Loic Lerouge, afirmou que o julgamento pode abrir um precedente sobre a questão dos planos de reestruturação das empresas, a praga da ‘reengenharia’.
“Se você reconhecer o assédio criminoso institucionalizado, as grandes empresas, como parte de seus planos de reestruturação e reorganização, vão ter de integrar este parâmetro”, afirmou. Senão, previu que planos de reestruturação possam continuar “sem integrar a saúde mental dos empregados na sua realização”.
Como Lerouge explicou, não existe ainda base legal na França contra o assédio moral institucionalizado e organizado, e os casos levados a julgamento envolvem pessoas “com nomes e sobrenomes” e não empresas e suas políticas.
“Na França, não reconhecemos um sistema organizado de assédio, mas estamos no campo das relações individuais e interpessoais. Se os juízes reconhecerem esse tipo de assédio, isso mudará tudo.”
Também a CGT defende que seja reconhecida a existência de assédio moral organizado e institucionalizado desde cima. Para a CGT, o julgamento não deveria se limitar aos indivíduos que dirigiram a France Télécom durante este período – “também deveria ser possível esclarecer e condenar escolhas de gestão puramente financeiras, pelo terror, cujo objetivo é sempre remunerar os acionistas às expensas dos trabalhadores”.
ANTONIO PIMENTA