“Nossas putarias têm que continuar”, escreveu o corrupto em mensagem a um comparsa, antes de ser preso
O ex-secretário de Saúde do Rio, Sérgio Côrtes, que Gilmar Mendes mandou soltar na quinta-feira (em dezembro, já mandara soltar os comparsas de Côrtes, também presos na Operação Fratura Exposta, Miguel Iskin e Gustavo Estellita), é notório pelo cinismo, evidenciado por um e-mail, enviado a Iskin, em que diz:
“Meu chapa, você pode tentar negociar uma coisa ligada a campanhas. Pode salvar seu negócio. Podemos passar pouco tempo na cadeia. Mas nossas putarias têm que continuar.”
Côrtes falava de verbas da Saúde – ou seja, de roubar dinheiro destinado ao atendimento da população, inclusive a casos que decidem entre a vida e a morte dos pacientes.
A Operação Fratura Exposta surgiu como consequência das Operações Calicute e Eficiência, que evidenciaram um roubo de US$ 100.000.000 (cem milhões de dólares) por parte da quadrilha de Sérgio Cabral, da qual Côrtes era membro eminente.
A investigação da Polícia Federal revelou que a quadrilha “instituiu percentual de propina de 5% de todos os contratos administrativos celebrados com o Estado, desviando verbas públicas de origem federal e estadual (e) as remetendo em parte para o exterior”.
No caso da Secretaria de Saúde era pior:
“… dos valores contratados. 10% seriam para o esquema CABRAL (1% para o colaborador [César Romero]. 2% para SÉRGIO CÔRTES. 5% CABRAL. 1% para alguém do TCE e 1% para alimentar o esquema);
“… como havia fraude no pagamento dos tributos na importação dos equipamentos, além dos 10% pagos ao ‘esquema CABRAL’, cerca de 40% do total eram rateados entre MIGUEL ISKIN e SÉRGIO CÔRTES; esses 40% são os valores que deveriam ser pagos de tributos”.
TRAUMATOLOGIA
O inquérito policial demonstrou que a carreira de crimes de Sérgio Côrtes começou em 2002, quando assumiu a direção-geral do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO) e nomeou um sequaz, César Romero, para chefe da Assessoria Jurídica do instituto.
Côrtes e Romero passaram a estabelecer supostos “critérios técnicos” para afastar empresas nas compras do INTO e beneficiar somente às que pertenciam a Miguel Iskin e Gustavo Estellita.
Quando outras empresas preencheram os “critérios” de Côrtes e Romero no INTO, a quadrilha mudou a tática: passou a promover um “pregão internacional” para a compra de equipamentos, com publicidade dirigida e com empresas estrangeiras trazidas ao Brasil pelo próprio Miguel Iskin, organizadas em cartel. Abaixo, um trecho da confissão de César Romero:
“… as empresas que participavam de tal licitação eram todas trazidas ao Brasil por Miguel Iskin;
“… a publicidade do pregão internacional era realizada apenas no Diário Oficial do Brasil, sem nenhuma divulgação internacional;
“… por vezes, as empresas nacionais também participavam da licitação;
“… tais empresas se arranjavam entre si para uma dar ‘cobertura’ a outra, fraudando a licitação e privilegiando a vitória de determinada empresa;
“… havia um rodízio entre as empresas para que cada uma ganhasse na sua vez;
“… as empresas que participavam desse ‘clube do pregão internacional’ eram as seguintes: Rizzi, M.D. Internacional, Aka Trade, Indumed, Per Prima, Comercial Médica, Philips Medical Systems Nederland B.V., Dbs3 Comercial Científica, Drager, Helo Med, Maquet, Dixtal, New Service, Ultra Imagem, M&M Lopes, Stryker, Macromed, Multimedic, Aga Med, Siemens;
“… a existência desse arranjo entre as empresas foi comunicado ao colaborador por Sérgio Côrtes e Miguel Iskin;
“… antes de sair a cotação de preço, armada por Miguel Iskin, o INTO já sabia quanto cada uma das empresas iria cobrar por determinado produto no pregão internacional…”.
SEM LIMITE
Em seguida, a partir de 2007, quando Sérgio Cabral nomeou Côrtes para a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, o esquema foi ampliado para todo o Estado, com a nomeação, também, de César Romero como Subsecretário Executivo.
Depois das Operações Calicute e Eficiência, no início de 2017, a Polícia Federal e o Ministério Público chegaram até César Romero, que decidiu negociar a sua colaboração.
A 3 de março de 2017, por mensagem de Whatsapp, Miguel Iskin foi avisado de que César Romero estaria colaborando com a PF e o MPF (cf. perícia no Iphone de Miguel Iskin, Relatório n° 720/2017-NUCRIM/SETEC/SR/PF/RJ)
A quadrilha, então, tentou cercar Romero, para combinar o conteúdo da confissão.
A um outro membro da quadrilha, Sérgio Vianna Júnior (cunhado de Côrtes e primo de Romero), disse, então, Côrtes: “Junior, o ideal é que pelo menos a gente tenha alguma coisa parecida. Por que se ele [Romero] falar de A, B, C, D e eu falar de C, D, F e G, fodeu”.
Côrtes queria combinar uma “delação premiada” com os outros membros da quadrilha: “a mesma coisa, as mesmas histórias, as mesmas coisas. Que é o que a gente vai combinar, entendeu? ah, não vamos dizer o que a gente recebeu. Se não fodeu”.
César Romero entregou ao Ministério Público a gravação de uma conversa sua com Sérgio Côrtes:
SÉRGIO CÔRTES: Essas duas semanas aí, o próprio Marco Antônio [filho de Sérgio Cabral falou]: “César tá delatando… você tá sabendo disso, né? Eu falei: “Tô, tá todo mundo já falou… Cesar tá delatando…”.
CÉSAR ROMERO: Eu não tô delatando…
SÉRGIO CÔRTES: Não, tô te falando, César tá delatando, não sei o que, parará… tá bom… vou fazer o que… eu já tinha decidido fazer, né? Fiz essa decisão quando soube da história do Carlos [Miranda, um dos operadores do esquema]. Agora, não tem jeito. Vou fazer. E você já estava fazendo...
CÉSAR ROMERO: Mas eu não tô fazendo delação…
SÉRGIO CÔRTES: Peraí, César… você já estava fazendo, aí foi quando eu falei pro Júnior: “Júnior, o ideal é que pelo menos a gente tenha alguma coisa parecida… porque se ele falar de A, B, C, D e eu falar de C, D, F, G, fudeu, porque A e B eu não falei e F e G ele não falou”…
(…)
CÉSAR ROMERO: … eu acho que uma delação tem que jogar a merda toda no ventilador, porque se você ficar selecionando como o Júnior me disse, que você ia…
SÉRGIO CÔRTES: Não, eu pretendo colocar mais coisas…
CÉSAR ROMERO: Quatro fatos. Oi… não sei o quê…
SÉRGIO CÔRTES: Ok, tudo bem, botar no INTO o Cláudio [irmão de César] vai te pagar…
CÉSAR ROMERO: Meu filho, não tem como… você acha que os procuradores vão achar que você fez o que fez na Secretaria e não fez nada no INTO… você não pode ser infantil, Sérgio…
SÉRGIO CÔRTES: Eu sei, mas o INTO, cara, é o pós secretaria, porque antes da secretaria, eu tinha uma coisa muito limitada no INTO.
CÉSAR ROMERO: Então tem que entregar essa coisa muito limitada, que que era, só uma mesada? Era só uma mesada. Mas tem que ter alguma coisa. Os caras querem uma história verossímil. Não adianta eu contar a história da carochinha pros caras que os caras não acreditam…
SÉRGIO CÔRTES: Sabia que só tem uma notícia boa nessa aí… notícia boa porque eu acho, né? O Júnior me falou que o Cláudio falou: “porra cês tinham que estar com mesmo advogado que não sei o que, parará, parará… ” eu tinha entendido quando tive com ele que tava tentando levar o Miguel [Iskin] para fazer a colaboração… Miguel não quer fazer, disse que não vai fazer, ele se nega, não sei o que parará, parará… não sei que lá…ele falou: “Não posso fazer pra você e pro Miguel, não tem como, não sei o que”, mas ele falou, que como nós dois somos delatores, é pra nós dois fazermos juntos, ele disse…
CÉSAR ROMERO: Sinceramente, não sei se isso é factível ou não…
SÉRGIO CÔRTES: Não, ele já falou…
CÉSAR ROMERO: Quem falou?
SÉRGIO CÔRTES: O Mirza [Flávio Mirza]. Ele falou: “Eu posso advogar pra vocês dois porque vocês não vão contar histórias díspares… entendeu, então… vocês vão delatar a mesma coisa, as mesmas histórias, as mesmas coisas, que é o que a gente vai combinar, entendeu… de grana, não vamos dizer o que a gente recebeu… se não fudeu… porque é o que a gente tem que devolver… ele até falou: [inaudível]
CÉSAR ROMERO: Vocês estão na fase de negociar benefícios, essas coisas?
SÉRGIO CÔRTES: Que isso, cara… A primeira vez, a primeira reunião foi hoje…. Eu não fui, foi ele com o procurador… e eu falei que pode dizer pra ele que eu tive contato com o César…
CÉSAR ROMERO: Dizer pra quem?
SÉRGIO CÔRTES: Pro procurador… “acho besteira você não ir”…
(…)
CÉSAR ROMERO: Eu acho que tem que falar tudo… tudo… porque, pelo seguinte…
SÉRGIO CÔRTES: Como é que eu vou falar de não sei que … César, a gente não sabe… como é que prova? Isso não é prova.
CÉSAR ROMERO: Tá, aí tem crime, crime da evasão… você, eu, … mas quem se fode sou eu porque eu era o gestor, né… em tese, eu que era o operador… foi feita uma licitação, a empresa pra participar da licitação… empresa nacional vinha e botava 1 milhão e 100…
SÉRGIO CÔRTES: Aham
CÉSAR ROMERO: Aí a empresa internacional vinha e cotava 1 milhão porque ela tinha que pegar o preço dela que custava 500 e agregar aos impostos… pra participar da licitação… ela ganhou com preço de… 1 milhão… tá….quem importou foi a Secretaria de Estado...
SÉRGIO CORTES: Aham
CÉSAR ROMERO: E a secretaria de Estado tinha que pagar a ela sem os impostos e pagou com os impostos… ou pagava ela com os impostos e ela trazia os equipamentos, na entrada do equipamento no país, recolhia os impostos… aqui tem crime fiscal… eu vou dizer que eu não sabia… que eu via, que passava…
SÉRGIO CÔRTES: Não, não. Você vai dizer, você vai falar sobre isso?
CÉSAR ROMERO: Não. Mas você não acha que os caras não vão perguntar?
SÉRGIO CÔRTES: Não vão. Como, César?! César, me explica como é que eles vão saber quais são os processos que o Miguel participou se ele não tava… acho que a gente tinha que pegar os processos sobre os caras que “participou”…
CÉSAR ROMERO: Ele nunca participou na secretaria…
SÉRGIO CÔRTES: Então. Por isso que tô entregando o Miguel [Iskin] na UPA, não sei o que, parará parará… mas como é que foi feito?… foi feito assim, assim, assado.
Esses criminosos achavam muito normal ganhar dinheiro em cima de próteses e outros produtos de necessidade da população mais carente – e dos cofres públicos, inclusive, do fisco:
“… a importação dos equipamentos e próteses médicas se dava da seguinte forma: as empresas internacionais tinham, por força de lei (artigo 42, § 4°, da Lei 8. 666/93), obrigação, ao participar do pregão, de acrescer ao custo do seu produto o valor dos tributos incidentes ao similar nacional, de forma a competir em condições de igualdade com a empresa brasileira;
“… as empresas internacionais sempre apresentavam preço total menor que o das empresas nacionais, vencendo, assim, as licitações;
“… o INTO e a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro não pediam, de forma deliberada, para a empresa discriminar seu preço excluindo os impostos brasileiros incidentes;
“… o valor pago era, então, feito pelo valor total arrematado, que equivalia ao preço do produto mais os impostos;
“… tais impostos nunca foram recolhidos, uma vez que a importação ocorria em nome das instituições públicas (INTO/SESDEC) que são imunes ao pagamento de tributos;
“… o estratagema acima descrito permitia que o valor referente aos impostos, que não eram recolhidos aos cofres públicos, pudesse ser revertido em favor de empresas de Miguel Iskin, por meio de pagamentos realizados no exterior pelas empresas vencedoras das licitações”.
MAIS CRIMES
Existem, ainda, alguns aspectos não totalmente elucidados no caso, que mostram, além do que já foi dito, porque era necessário manter Côrtes na cadeia:
1) os pagamentos eram feitos no exterior, no Bank of America; mas ainda é necessário elucidar o destino de todo o dinheiro roubado;
2) César Romero relata que “quando da busca e apreensão em sua residência (10 de novembro de 2010), foi avisado, na noite da véspera, por SÉRGIO CÔRTES, que haveria a diligência de busca e apreensão e que, portanto, era para se desfazer dos documentos eventualmente comprometedores”;
3) “… nesta ocasião [César Romero] acabou eliminando o documento contendo tais informações referentes a tal conta [no Bank of America];
4) “… parte dos valores provinham de um repasse do Ministério da Saúde para a Secretaria Estadual, denominado MAC (Média e Alta Complexidade), que mensalmente era aportado na SES”.
Como o Ministério da Saúde não notou que o dinheiro sumia?
“PUTARIAS”
No dia 1º de abril de 2017 (que dia!), Sérgio Côrtes dirigiu a Miguel Iskin o famoso e-mail:
“Depois de 4 semanas de folga, volto ao assunto com você. E volto após a informação de uma possível emperrada na delação do CR. É sua chance. Porra, Miranda e Hudson irão te entregar. Cabral está começando a dele e irá também. César já é certo que estava fazendo e inclusive já encaminhou anexos Co terá você é contra mim. Arthur vai pro caralho e já falou que fará. Meu chapa, você pode tentar negociar um coisa ligada à campanhas. Pode salvar seu negócio. Podemos passar pouco tempo na cadeia. (…) Desculpe-me voltar ao assunto. Mas nossas putarias têm que continuar.”
A resposta do comparsa, Miguel Iskin, foi a seguinte:
“Podemos conversar a hora q vc quiser. Apesar da minha total convicção com relação à delação em si, ao meu horror em participar desse festival de escrotidão q assola o país. Vou fazer outras considerações. No momento em que a sua delação assim como a do cr estão emperradas, não vejo como a minha, q seria muito menos expressiva, iria caminhar Ao contrário, cada dia tenho mais certeza que o melhor a fazer seria negar tudo. Eu e você. Claro q vc tem uma dimensão muito maior q a minha. Mas diante da magnitude dos atuais envolvidos vc tb fica menor. E o fato de não terem aceitado até agora sua delação mostra o qto eles estão envolvidos em coisas maiores Provar algo vai exigir um foco, é um tempo q esses caras não têm.”
Sérgio Côrtes tentou, então, destruir provas, momentos antes de sua prisão.
Pode parecer incrível, mas ele foi agarrado pelo próprio sistema de câmaras que mandara instalar em sua casa, para pegar ladrões que invadissem a sua residência…
Escreveu o delegado Antonio Carlos Beaubrun Junior, da Polícia Federal:
“… trata-se de análise de imagens de câmeras de sua residência, circuito interno, verificando-se claramente que, por volta das 05:40 h, na data da deflagração, o mesmo recebe telefonema ou mensagem via aplicativo de celular, tendo se dirigido ao escritório, momento em que separa de forma impetuosa material e uma mochila e o retira do local, estando ainda mesmo sem suas vestimentas, o que demonstra a pressa na sua forma de proceder, podendo se inferir, que pode ter havido subtração de dados, devido ao mesmo ter sido avisado da operação policial.”
É esse o sujeito que Gilmar Mendes soltou.
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Vai ser difícil prender. Delegacias de Policia também instituem percentual de propina para documentação de veículos.
Devemos convir que, comparados ao Sérgio Côrtes – e a seu protetor, Gilmar Mendes – esse pessoal é uma legião de anjos. Que, bem entendido, também merece cadeia.
O judiciário sempre esteve envolvido no esquema de corrupção juntamente com delegacias de polícia, dificilmente um corregedor conseguirá prender um corrupto do governo, delegacia ou judiciário. Quando o corregedor anuncia a sua visita, tudo é transformado na cidade
Mas já tem uma porção de corruptos presos. Lá em Curitiba. Mas também no Rio e em Brasília. Nem o Gilmar Mendes consegue soltar todos. E não se trata de pequenos corruptos.