O governador do Estado de Washington, Jay Inslee, repudiou o endosso do presidente Donald Trump aos atos pró-contágio e afirmou que o “temerário incitamento a ‘libertar’ os Estados” da quarentena “põe vidas em risco”.
A ameaça foi confirmada na terça-feira (21) pelo diretor dos Centros de Combate às Doenças dos EUA, Robert Redfield, que em depoimento ao Congresso advertiu sobre o risco de uma “segunda onda” da pandemia de Covid-19, que provavelmente coincidiria com o começo da estação de gripe e poderia levar o sistema de saúde do país ao colapso.
Desde sexta-feira, quando Trump oficializou seu plano antiquarentena, trumpistas foram às ruas, passando por cima do distanciamento social, e conclamando ao “abre já”. Ao que o presidente bilionário respondeu, convocando pelo Twitter a “libertar Michigan”, “libertar Minnesota”, “libertar Virginia” e ainda andou falando que nesses estados a quarentena era “dura demais”.
Ou seja, deu sua benção à sabotagem aberta do distanciamento entre as pessoas, principal ferramenta no momento de contenção do coronavírus, contra o qual não há vacina, nem tratamento. Isso, quando na semana passada os novos casos diários aumentaram à razão de 25 mil por dia.
Os EUA são tristemente os recordistas absolutos no mundo em total de contagiados, 780 mil, e de mortos – estes, com mais de 41 mil e se aproximando velozmente dos 50 mil norte-americanos mortos na Guerra do Vietnã.
Mas, como o coronavírus estraçalhou o slogan da reeleição “Mantenha a América Grande de Novo”, já remendado para “Reabra a América de Novo”, e não há notícia de presidente que tenha sido reeleito nos EUA sob recessão [“é a economia, estúpido”], como comentou uma colunista do Washington Post, nessa altura do campeonato Trump “tem pouco a perder”.
“SÓ UM POWERPOINT”
Quanto ao ‘plano’ de Trump do ponto de vista epidemiológico, como observou o ex-czar do combate ao Ebola, Ron Klain, não é um plano, quando muito, um “powerpoint”.
Segundo Trump, pelo menos a metade dos estados poderia reabrir “antes do 1º de maio”.
O governador Inslee, em cujo estado se verificaram as primeiras mortes pela Covid-19, contidas sob rigorosas medidas de quarentena, indignou-se com o apoio de Trump aos violadores do distanciamento social, o que classificou de “perigoso” e equivalente a encorajar “insubordinação” às leis do estado.
“Ter um presidente que encoraja gente a violar a lei. Não posso me lembrar de qualquer tempo na minha vida em que vimos na América algo assim”, ele afirmou à ABC news no domingo.
Por sua vez, a presidente da Câmara de deputados, a democrata Nancy Pelosi, denunciou que o endosso do presidente Donald Trump aos atos pró-contágio e contra as medidas de distanciamento social eram simplesmente para desviar a atenção do fato de que ele “não testa da forma apropriada, não trata, não rastreia os contagiados nem coloca em quarentena” – em suma, deixa a pandemia de Covid-19 correr solta.
SEITA DE CULTO À MORTE
Como disse o pessoal do “Common Dreams”, sob Trump o Partido Republicano está se tornando uma seita de culto à morte. No final de semana, bandos de fanáticos foram às ruas em vários estados para exigir que a quarentena seja revogada imediatamente e que na “terra dos livres” o direito ao contágio passe a imperar – além da reabertura das muito essenciais lojas de venda de armas.
Uma versão muito norte-americana do “vem pra rua morrer”. A fantochada fora iniciada com aquele convescote em frente ao palácio de governo do Michigan, em que não faltaram sequer bandeiras confederadas, suásticas e exibição de armas pesadas.
No final de semana, os vomitórios se repetiram em Maryland, Ohio, Texas, Arizona, Colorado, Montana e Washington, em geral carreatas. Alguns débeis mentais hostilizaram o pessoal médico.
Nos protestos, toda aquela fauna do universo trumpista. Cabos eleitorais de bonezinho MAGA, fanáticos do Tea Party, brutamontes da Associação Nacional do Rifle, Kukluxmen à paisana e suas senhoras, mais alguns desavisados realmente desesperados pela seca desencadeada pela pandemia. Na segunda-feira, a pândega alcançou a Pensilvânia.
Alguns governadores republicanos já anunciaram que vão reabrir, gerando mais contestação de epidemiologistas e de pessoas de bom senso. Prefeitos da Geórgia, cujo governado republicano proclamou fim da quarentena, chamaram a população a não se submeter. O Tennessee já liberou o funcionamento de salões de cabeleireiro e oficinas de tatuagem e quer na próxima semana reabrir cinemas e restaurantes. Ohio, Texas e Flórida também disseram ter planos para reabrir parte de suas economias. A Carolina do Sul reabriu as praias e algumas lojas.
“TESTE, TESTE, TESTE”
Como, para ninguém poder dizer simplesmente que Trump revogou a quarentena – se tiver um repique, uma segunda onda, ele vai culpar os governadores e prefeitos -, o chefe da Casa Branca admitiu a inclusão de três clausulas como preliminares ao levantamento do distanciamento social: a realização de testes, novos contágios em queda por 14 dias e proteção das equipes hospitalares.
A verdade é que não há estados que cumpram as três pré-condições no momento. Trump passou então a culpar os estados por não testarem, dizendo que anda sobrando testes, e os governadores é que são incompetentes.
“Agora eles gritam … teste, teste, teste’, novamente jogando um jogo político muito perigoso”, tuitou Trump, acrescentando que “os estados, não o governo federal, deveriam estar fazendo os testes”.
O que forçou o governador de Maryland, e que também preside a Associação Nacional de Governadores, o republicano Larry Hogan, a responder que “é absolutamente falso que os governadores têm muitos testes e que deveriam começar a trabalhar nos testes, e que de alguma forma não estamos fazendo o nosso trabalho”.
Quando Trump ensaiou, duas semanas antes da Páscoa, atropelar a quarentena para reabrir tudo, foi Hogan que disse, em nome da Associação Nacional de Governadores, que estes continuariam a se pautar pela “ciência e dados”. Também foi ele que, no domingo, disse à CNN que testar foi “provavelmente o problema número 1 na América, e tem sido desde o começo desta crise”.
“DELIRANTES”
O governador democrata Ralph Northam, da Virgínia, chamou de “delirantes” as afirmações de Trump e do vice-presidente, Mike Pence, sobre estados possuírem muitos testes.
O governador de Maryland só conseguiu 500 mil testes, porque importou da Coreia do Sul, país que teve o primeiro morto no mesmo dia que os EUA (29 de fevereiro), com a diferença de que o governo cumpriu seu papel imediatamente, impôs o isolamento social e testou em massa e agora tem quase 200 vezes menos mortos que os EUA e 80 vezes menos contágios.
Como declarou a governadora do Kansas, Laura Kelly, a ação do governo federal “não é boa o bastante, e realmente não é boa o bastante para sermos capazes de começar a abrir nossa economia. Não podemos fazer isso com segurança sem testes a postos”.
Hogan acrescentou que os alegados equipamentos de laboratório sem uso, como acusou Trump, são aqueles que parados em órgãos federais, aos quais os estados não têm acesso.
“CAIA MORTA, NOVA IORQUE”
O prefeito Bill de Blasio reagiu à pressão de Trump para acabar com a quarentena até o dia 1º de maio na marra, dizendo que o que o presidente bilionário estava propondo é “caia morta, Nova Iorque”.
O governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, que estendeu a ordem de ficar em casa até 15 de maio, pediu aos moradores que respeitem o isolamento social.
“Ainda temos de garantir que a fera seja mantida sob controle”, disse Cuomo, acrescentando que “todos nós que estamos muito ansiosos para prosseguir a vida e ir em frente”. Mas – acrescentou – “isto é apenas metade do tempo nesta situação toda”.
Em Nova Iorque, as hospitalizações declinaram de um pico de 18.000 casos diários para 16 mil, enquanto o número de pacientes graves mantidos vivos por ventiladores também caiu.
De mais de 700 mortes por dia, as mortes caíram para 478 novas mortes no domingo – o número mais baixo em duas semanas, mas patamar ainda tragicamente elevado.
Note-se que na contagem oficial não estão incluídos 3.700 presumidos mortos por Covid19 na cidade de Nova Iorque, por não terem sido testados para o vírus.
“NO MEIO DO AUGE AGORA”
Em várias partes do país, o vírus continua a se espalhar rapidamente. Massachusetts agora tem a terceiro maior número confirmado de contágios, com mais de 38 mil, e o quarto maior de óbitos, com mais de 1.700. “Nós estamos exatamente no meio do auge agora”, disse o governador republicano Charlie Baker.
Outro foco da pandemia são as prisões, com Ohio tendo 1.828 detentos e 103 guardas contagiados.
A região de Maryland, Virgínia e Washington D.C. está observando aumento no número de casos. Boston e Chicago também testemunharam aumentos recentes no total de casos e mortes.
Há focos de infecção em locais de trabalho ainda em Iowa, Kansas, Minnesota, North Dakota, South Dakota, Tennessee e outros estados, segundo o New York Times.
BUMERANGUE
O risco de uma “segunda onda” da pandemia, caso o afrouxamento da quarentena se dê apressadamente tem sido assinalado várias vezes pela OMS e ao qual se referiu o Dr. Redfield no Congresso, continua sendo uma grande preocupação para o principal infectologista norte-americano, o Dr. Anthony Fauci.
A OMS acabou de advertir que não se deve confundir o eventual afrouxamento de medidas de quarentena com “fim da pandemia”.
Sobre a fuzarca nas ruas pela abertura indiscriminada e imediata, o Dr. Fauci – cuja cabeça foi pedida nos atos pelos trumpistas -, advertiu que poderá “sair pela culatra” e aí não vai ter jeito senão retornar à quarentena.
À rede de TV ABC, o Dr. Fauci disse ainda que os EUA precisam, pelo menos, realizar “de duas a três vezes mais” testes do que estão fazendo atualmente, para ter segurança sobre a pandemia. Atualmente, por semana, são testadas 1,5 a 2 milhões de pessoas por semana, em uma população de 330 milhões.
Estudo da Universidade de Harvard apontou que, para uma saída com segurança da quarentena em vigor no EUA, seriam necessários entre “500 mil e 700 mil testes diários”.
A.P.