
O governo de Romeu Zema (Novo) aprovou um empreendimento da Cervejaria Heineken na Grande Belo Horizonte, em Minas Gerais, que coloca em risco um dos principais sítios arqueológicos do continente: a região do complexo de grutas e cavernas onde foi encontrado o fóssil humano mais antigo das Américas, a Luzia.
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) embargou a área onde a Heineken, segunda maior cervejaria do país, anunciou que instalaria uma fábrica, em Pedro Leopoldo. A decisão do órgão levou em conta o risco de soterramento do complexo de grutas e cavernas, onde já ocorreram descobertas pertinentes para a ciência.
Segundo o ICMBio, a caverna Lapa Vermelha IV, onde foi encontrado o crânio de Luzia, pode ser afetada pela fábrica, que obteve licença ambiental do governo de Zema. Além disso, o plano da Heineken prevê bombear 150 metros cúbicos de água por hora de dois poços na região, o que causaria forte impacto nos lençóis freáticos e nas cavernas do Fedo, Cipó e Nei, segundo o ICMBio.
Os fiscais do ICMBio, contudo, entenderam que a “dinamicidade” apregoada pelo governo implicou em estudos de impacto ambiental. “Os impactos [à Área de Proteção Ambiental Carste Lagoa Santa, vizinho à construção da fábrica] são desconhecidos e imprevisíveis”, afirmam os fiscais do ICMBio, pois os estudos apresentados pela Heineken e aprovados pelo governo mineiro são falhos.
A caverna Lapa Vermelha IV, onde foi encontrado o crânio de Luzia, pode ser “fatalmente afetada” com a futura fábrica, continuam os fiscais. O órgão classifica a concessão da licença ambiental do governo mineiro como “uma grave falha”.
O ICMBio afirma que não foram apresentados estudos que possibilitem saber como a construção da fábrica afetará a dinâmica da drenagem da água. Uma das fontes de captação para produzir a cerveja é o subsolo, com um volume de 310m³ por hora, o que seria suficiente para abastecer uma cidade de 37 mil habitantes. “A retirada de água do subsolo poderá implicar em consequências danosas ao meio ambiente”, afirma a nota do ICMBio.
Para o bioantropólogo Walter Neves, conhecido como “pai de Luzia”. “Qualquer coisa que mexa na dinâmica de água subterrânea do carste [relevo caracterizado pela corrosão das rochas] é um desastre”, afirma Neves, que é professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Além de ter batizado Luzia — uma homenagem à Lucy, o fóssil de Australopithecus afarensis de 3,5 milhões de anos achado na Etiópia em1974 –, Neves é o principal nome da teoria que defende que as Américas foram colonizadas por duas levas de Homo Sapiens vindas da Ásia.
Em dezembro do ano passado, a Heineken anunciou a construção da fábrica em Pedro Leopoldo, a primeira da cervejaria no Estado. A fábrica teria capacidade de produção de 760 milhões de litros por ano. Na época, Zema anunciou a obra com euforia. “Minas cresce! Anunciamos mais um megaempreendimento para o estado: o grupo Heineken vai construir uma nova fábrica no Estado”, disse ele na oportunidade.
Em nota, a Heineken informou que deu entrada na Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Minas Gerais (Semad) com o pedido de licença ambiental para construção da cervejaria em abril deste ano.
De acordo com a empresa, todos os documentos, dados e estudos técnicos para obtenção da licença, concedida pela Semad e depois referendada pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), foram entregues.
No dia 10 de setembro, a Heineken informou ter recebido a equipe do ICMBio no terreno de sua futura cervejaria em Pedro Leopoldo. “Nessa ocasião, a equipe expôs seu ponto de vista acerca da licença concedida em 24 de agosto de 2021 pela autoridade ambiental do Estado de Minas Gerais e a necessidade de paralisação do trabalho de terraplanagem”, informou a empresa, em nota.
Um dos mais importantes sítios arqueológicos das Américas
O sítio arqueológico é considerado por Neves como “um dos mais importantes das Américas”. A área é reconhecida por sua relevância desde a primeira metade do século XIX, quando o dinamarquês Peter Lund explorou centenas de grutas em busca dos vestígios dos imensos mamíferos, como tigres-dente-de-sabre e preguiças gigantes. Lund também encontrou fósseis de povos remotos que ocuparam a região.
Em 1970, a arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire encontrou na gruta Lapa Vermelha IV restos de esqueletos, incluindo um crânio, que vinte anos depois seria batizado por Walter Neves como Luzia. Com idade estimada em torno de 13 mil anos, Luzia modificou o entendimento sobre a origem do povoamento das Américas.
“A Luzia é o esqueleto mais antigo das Américas. Por si só é um ícone da pré-história”, afirma o arqueólogo Walter Neves. Além disso, o professor da USP entende que ainda há muito a ser escavado nas cavernas da Lapa Vermelha. Ele considera improvável que ainda seja encontrado um esqueleto lá, mas não impossível.
Em setembro de 2018, o crânio de Luzia foi atingido pelo incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, sendo que 80% dos fragmentos foram encontrados nos destroços.