Na linha de Aras, a vice-procuradora-geral da República, Lindora Araújo, afirmou que “não há elementos” para investigar o chefe. Ela não ouviu nem o áudio do ministro Milton Ribeiro dizendo que foi Bolsonaro que indicou os pastores propineiros
A vice-procuradora-geral da República, Lindora Araújo, conhecida apoiadora de Jair Bolsonaro, concluiu, na terça-feira (19), como era de se esperar, que não há elementos para investigar o chefe do Executivo Federal no caso das propinas cobradas por pastores indicados por ele no Ministério da Educação (MEC).
Ela foi a responsável pelo parecer deste caso, solicitado pela ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), porque o procurador-geral da República, Augusto Aras, está de férias em Paris, onde foi, inclusive, cobrado por brasileiros sobre o “Bolsolão do MEC”.
VICE-PROCURADORA NÃO VIU NENHUM ELEMENTO
Lindora disse que não viu nenhum elemento incriminador em todo o escândalo. Nem mesmo o áudio, que está nas mãos da polícia, em que o ex-ministro, Milton Ribeiro, aparece dizendo a prefeitos e auxiliares do órgão que a presença dos dois pastores, Gilmar Santos e Arilton Moura, na gestão ilícita das verbas do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE) era um “pedido especial do presidente”.
Os dois pastores, que nem funcionários do MEC eram, foram denunciados por prefeitos por exigirem propina para liberar as verbas do FNDE.
Ouça o áudio no qual Milton Ribeiro responsabiliza Bolsonaro pela indicação dos pastores propineiros
As denúncias dos prefeitos, numa das quais é descrito que o pastor Gilmar Santos, sabendo que o gestor era de uma região de mineração, pediu a propina em barras de ouro, também não foram levadas em conta pelo procuradora.
Em seu parecer, ela afirmou que uma referência não é capaz de tornar alguém investigado. “Se a mera citação de autoridade com foro de prerrogativa por função pelo investigado não é suficiente para atrair a competência do Supremo Tribunal Federal, depreende-se que tal situação tampouco é capaz de imputar àquele a condição de investigado”, diz o parecer.
Lindora disse ainda que, mesmo que o presidente não figure como investigado no inquérito em tramitação no Supremo, caso surjam indícios de participação nos fatos, ele poderá ser alvo de apurações. “Ainda que um dos representados não figure como investigado no INQ 4.896/DF, sabe-se que, naqueles autos, caso surjam indícios de sua participação nos fatos no decorrer das apurações, aquela autoridade poderá eventualmente passar a integrar o polo passivo do procedimento investigatório, o que, até este momento, não ocorreu”, diz a manifestação.
PREFEITOS DENUNCIARAM ESQUEMA DE PROPINA
Os relatos dos prefeitos são ricos em detalhes e revelam que Bolsonaro não tinha nada de passivo neste caso. Ele agiu ativamente para favorecer os dois pastores do esquema da propina e os recebeu dezenas de vezes no Planalto.
Os prefeitos informaram que ficaram surpresos com a certeza da impunidade por parte dos pastores. “Eles pediam a propina sem a menor cerimônia”, relataram. Pelo menos dez prefeitos atestam que os pastores atuaram na intermediação ilegal de recursos ou no acesso direto ao ministro da Educação, Milton Ribeiro. Desse grupo, três fizeram a denúncia formal de que houve pedidos de propina em troca da liberação de verbas federais para escolas.
O relato mais forte de como o esquema era operado no MEC para facilitar a liberação de recursos no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), e que a vice-procuradora não achou nada de mais, foi o do prefeito de Luis Domingues (MA), Gilberto Braga. “Ele disse que tinha que botar (…) Ver a nossa, a nossa demanda, né. Tinha que dar R$ 15 mil para ele só protocolar. E na hora que o dinheiro já estivesse empenhado, era pra dar um tanto x”, afirmou o prefeito. “Para mim, como a minha região é área de mineração, ele pediu 1 quilo de ouro”, completou.
Ouça o relato do prefeito maranhense sobre a cobrança de propina pelos pastores
“Então, o negócio estava tão normal lá que ele não pediu segredo, ele falou no meio de todo mundo. Inclusive tinha outros prefeitos do Pará. Ele disse: ‘Olha, para esse daqui eu já mandei tantos milhões’. Os prefeitos ficavam todos calados, não diziam nem que sim, nem que não’”, continuou Braga. “E assim mesmo eu permaneci calado. Também não aceitei a proposta. Deixamos as demandas na mão dele e ele deu a conta pra gente. Os que transferissem os R$ 15 mil, ele ia protocolar”, concluiu Braga.
QUEM NÃO PAGOU PROPINA FICOU SEM ESCOLA
O prefeito da cidade de Bonfinópolis, Kelton Pinheiro (Cidadania), disse que, apesar de precisar de uma escola nova, se negou a aceitar a proposta de pagamento de propina feita pelo pastor Arilton Moura. O prefeito afirmou que, por intermédio do pastor Gilmar, conseguiu ser recebido pelo ministro da Educação numa reunião com vários prefeitos. Assim como Gilberto Braga, Kelton disse que os prefeitos foram almoçar e que, nesse momento, o pastor Arilton, que também estava no encontro, fez o pedido de propina.
Segundo o prefeito, o pastor disse: “‘Papo reto aqui. Eu tenho recurso para conseguir com você lá no ministério, mas eu preciso que você coloque na minha conta hoje R$ 15 mil. É hoje. E porque você está com o pastor Gilmar aqui, senão, pros outros, foi até mais’. Achei muito estranho, não tinha interesse”, contou Kelton. Quem não pagou propina aos pastores indicados por Bolsonaro não recebeu as verbas a que tinham direito, mas a vice-procuradora achou tudo isso normal. Não viu nenhum “elemento”.
“Olha, eu precisava muito da construção de uma escola nova. Tem uma escola lá que é de placas de muro, escola antiga, que a gente precisava substituir lá no município. Então ele disse: ‘Olha, tudo bem, eu consigo isso para você, mas eu quero que você me dê hoje R$ 15 mil aqui na minha mão. Hoje, uma transferência, que você faça isso hoje’”, relatou Kelton.
Kelton Pinheiro contou ainda ao jornal Estadão que Arilton Moura também pediu propina, mas na forma de “contribuição” para a igreja. “Se você quiser contribuir com a minha igreja, que eu estou construindo, faz uma oferta para mim, uma oferta para a igreja. Você vai comprar mil bíblias, no valor de R$ 50, e você vai distribuir essas bíblias lá na sua cidade. Esse recurso eu quero usar para a construção da igreja”, disse o pastor, segundo o prefeito. “Fazendo isso, você vai me ajudar também a conseguir um recurso para você no Ministério.”
PASTOR FOI DIRETO AO PONTO: PAGOU LEVOU
Kelton prosseguiu: “ele sentou do meu lado, em um dos lados da mesa e falou: ‘olha prefeito, eu vou ser direto com você. Tem lá um recurso para liberar com ministro, mas eu preciso de R$15 mil hoje’”, afirmou Arilton Moura, segundo o prefeito. “O discurso dele que ainda me deixou mais chateado foi: ‘eu preciso desse pagamento hoje, porque vocês políticos não têm palavra, vocês não cumprem com o que prometem. Depois eu coloco o recurso para você lá e você nem me paga’.”
O prefeito de Boa Esperança, José Manoel de Souza (PP-SP), conta que o pastor disse que, se ele quisesse, poderia ter a escola na hora. “Ele disse: Eu falo lá, já faz um ofício, mas você tem que fazer um depósito de R$ 40 mil para ajudar a igreja”. Souza afirma que se levantou e disse que não faria esse tipo de negócio. A cidade de Boa Esperança, segundo ele, não teve qualquer ajuda do MEC em seus projetos.
O próprio presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Marcelo Lopes da Ponte, que administra uma verba de R$ 68 bilhões, afirmou, em depoimento no Senado, que “terceiros” usaram o nome dele e do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro para “se gabaritar ou para fazer lobby sem a nossa devida autorização”. Esses “terceiros” eram os pastores que Bolsonaro apadrinhou e que a PGR acha que não fizeram nada de ilegal.
O presidente do FNDE só não explicou de onde vinha todo o poder que tinham os dois pastores indicados por Bolsonaro para definir a liberação ou não de verbas de acordo com o pagamento ou não da propina. Todos os prefeitos que se recusaram a pagar um quilo de ouro (R$ 300 mil) ou comprar 50 mil bíblias (R$ 50 mil) ou depositar direto na conta de igrejas, não receberam as verbas do fundo.
BOLSONARO MONTOU GABINETE PARALELO NO MEC
Os pastores propineiros operaram o “gabinete paralelo” do MEC durante a gestão do ex-ministro Milton Ribeiro e estiveram dezenas de vezes no Palácio do Planalto durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL). Os registros da segurança do Palácio contam 35 acessos do pastor Arilton Moura e outros 10 de Gilmar Santos, da Assembleia de Deus Cristo para Todos. Numa primeira investida da imprensa, o governo tentou esconder as visitas decretando sigilo de 100 anos sobre elas. Não deu certo. A decisão não tinha base legal.
Ao mandar a Procuradoria se manifestar sobre a situação de Bolsonaro, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo, afirmou que, diante da gravidade dos fatos, é imprescindível a investigação de todos os envolvidos, não só do ministro. “Assim, pela gravidade dos fatos subjacentes ao que expresso pelo Ministro de Estado e que levaram o Procurador-Geral da República a pedir a esse Supremo Tribunal Federal abertura de inquérito para averiguar a veracidade, os contornos fáticos das práticas e suas consequências jurídicas, tem-se por imprescindível a investigação conjunta de todos os envolvidos e não somente do Ministro de Estado da Educação”, afirmou Cármen Lúcia.
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