A segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na terça-feira (17), por 3 votos a 2, que o ex-senador Demóstenes Torres, cassado pelo Senado em 2012, poderá se candidatar nas eleições deste ano.
Votaram a favor de passar por cima da lei (nesse caso, de duas leis, de uma Resolução do Senado, e da própria Constituição), os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
Votaram contra os ministros Luís Edson Fachin e Celso de Mello, decano do STF.
O pedido de Demóstenes era para que o STF anulasse a cassação do seu mandato, tendo em vista que o processo criminal contra ele foi anulado, devido a gravações telefônicas obtidas sem autorização da Justiça
Como argumentou o ministro Celso de Mello, as provas utilizadas pelo Senado na decisão de cassar o mandato de Demóstenes são diferentes daquelas do processo criminal: “Esses elementos se fundaram em evidências distintas daquelas da seara penal, como as declarações feitas pelo próprio declarante no Senado, mas sobretudo ao seu desvalor ético”, disse o decano.
Da mesma forma votou o ministro Luís Edson Fachin: “Não vejo elasticidade que leve à conclusão diversa daquela a que chegou o ministro Celso de Mello”.
Demóstenes Torres foi cassado pelo Senado, por 56 votos contra 19, e expulso do Dem, por suas relações promíscuas com o marginal Carlos Cachoeira – explorador de cassinos e caça-níqueis em Goiás, chefe de quadrilha, vendedor de proteção, contrabandista, achacador de contratos públicos, já condenado e preso por peculato, corrupção ativa, violação de sigilo e formação de quadrilha.
Demóstenes recebeu pelo menos R$ 3,1 milhões de Carlos Cachoeira, mais outros vultosos “presentes”. Até a cozinha da casa de Demóstenes fora comprada por Cachoeira. Como disseram os procuradores que o acusaram, ele usava o mandato de senador em prol dos interesses de Cachoeira.
Demóstenes Torres era tão íntimo de Cachoeira que, nas gravações telefônicas realizadas pela polícia, além do tratamento (“mestre”, “professor”), que reserva ao contraventor, existe o seguinte diálogo deste com a mulher do então senador:
FLÁVIA [mulher de Demóstenes Torres]: Tô com a vermelha no bolso, 32.650, pode arrumar cliente aí pra mim. Tô com a vermelhaça no bolso.
CACHOEIRA: Ah, sua carteira [da OAB], né? Parabéns, viu? Você vai usar ela muito e só em causa grande.
FLÁVIA: Eu fui num jantar no Sarney com o Demóstenes, o Demóstenes hoje é um dos influentes que existem no quadro nacional todo, tem trânsito com todo mundo.
CACHOEIRA: É, sei disso. Ele já foi pro PMDB, não?
FLÁVIA: Não, mas o Renan tá todo amor por ele, que tá é assustando.
CACHOEIRA: Ele me falou, você acha que ele vai?
FLÁVIA: Carlinhos, é uma decisão tão difícil, né? Acho que uma das decisões mais difíceis que ele tem que tomar é essa, viu? Muito complicado, eu acho muito complicado.
CACHOEIRA: É, mas ele não tem saída, não. Ele tem que ir para o PMDB. Vai fundir o PSDB com o DEM, aí ele tem que ir pro PMDB, até virar STF, né? Aí você não pode advogar e pronto.
Depois de delinear essa futura nomeação de Demóstenes Torres para o STF, Cachoeira volta a dar parabéns à mulher do então senador, pela carteira da OAB. A esposa de Demóstenes responde: “Obrigado. Essa conquista aí é nossa. Depois vamos tomar um champagne”.
Demóstenes e família gostam muito de champagne. No último dia 24 de fevereiro, o ex-senador foi filmado quando banhava a sua enteada com champagne francesa Veuve Clicquot (a garrafa de 3 litros que Demóstenes empunha no vídeo custa apenas R$ 5 mil…).
Ele era, também, amigo íntimo do ministro Gilmar Mendes – os dois até fizeram um tour por alguns países europeus (v. Tour de Gilmar e Demóstenes pela Europa é mistério a ser explicado).
Na época do escândalo de Demóstenes, Lula, em reunião da qual também participou Nelson Jobim, lembrou a Mendes essa viagem. Porém, depois, Gilmar Mendes esclareceu que não tinha nenhuma relação com o senador Demóstenes Torres, a não ser “relação de conhecimento e trabalho funcional…”.
FORA DA LEI
Foi a inelegibilidade desse indivíduo, em boa hora cassado pelo Senado, que Toffoli, Lewandowski e Mendes anularam na terça-feira.
O que é totalmente ilegal.
A Constituição, em seu artigo 55, inciso II, determina a cassação de parlamentares que tiverem conduta “incompatível com o decoro parlamentar”. A Lei Complementar nº 64/1990 e a Lei Complementar n.º 81/1994 determinam que os senadores, deputados ou vereadores que forem cassados são inelegíveis, para qualquer cargo, “para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subsequentes ao término da legislatura”.
A inelegibilidade é, portanto, uma decorrência obrigatória da cassação do mandato – inclusive, como observou a jurista Silvana Batini, professora da Escola de Direito da FGV e procuradora regional da República, independe da existência de qualquer processo criminal.
Desde que comprovada, pelo próprio parlamento, a conduta incompatível com o decoro, com a consequente cassação do mandato, o ex-parlamentar é inelegível para qualquer cargo.
Toffoli, Lewandowski e Mendes anularam a inelegibilidade de Demóstenes, sem anular a cassação do seu mandato.
Como é possível – se a proibição a se candidatar é decorrente da cassação – anular a primeira, sem anular a segunda?
É óbvio que isso não é possível pelas regras do Direito – ou dentro daquilo que alguns chamam “Estado Democrático de Direito”.
Trata-se de um atentado às leis e à democracia, um aborto jurídico, perpetrado para beneficiar um réprobo, banido do Senado pela vontade (e pela vergonha) de seus pares.
Lewandowski já cometera ilegalidade semelhante durante o processo de impeachment, para beneficiar Dilma Rousseff, passando por cima da Constituição. Então presidente do STF – portanto, presidente do processo de impeachment – ele separou a perda de mandato da inelegibilidade, que decorre dessa perda, quando o artigo 52 da Constituição é absolutamente claro: a pena para quem comete crimes de responsabilidade em uma função pública é a “perda do mandato com inabilitação ao exercício de função pública por oito anos”.
Parece que, para o ministro, o benefício a seus correligionários – políticos ou ideológicos – está acima das leis. Tanto assim que ele as transgride com razoável tranquilidade.
Há poucos dias, Dias Toffoli tinha anulado, em caráter liminar (ou seja, sem nem mesmo julgar o mérito da questão e sem que houvesse qualquer urgência para a decisão), a inelegibilidade de Demóstenes (v. Toffoli solta Picciani e cede liminar para ficha-suja concorrer).
Agora, seus colegas Lewandowski e Gilmar Mendes aprovaram, na segunda turma do STF, esse atropelo da lei.
O objetivo é claro: se até um representante do crime organizado, pego em flagrante, como Demóstenes, pode se candidatar, por que não poderão os representantes da corrupção organizada – Lula, Cunha, Geddel e o escambau? O fato de estarem na cadeia, até dizem alguns, não seria um obstáculo…
São interessantes, a propósito, as observações da jurista Silvana Batini:
“A lei da Ficha Limpa pretendeu criar fatores minimamente objetivos de inelegibilidade, frutos de ampla discussão na sociedade e no Congresso. A cassação de mandato por decisão política é uma destas causas. Se a cassação se consolidou, seus efeitos devem operar. Ao decidir o caso Demóstenes, o Supremo [isto é, na prática, Lewandowski, Toffoli e Mendes] troca essa objetividade da lei pela subjetividade dos ministros do tribunal. Fragiliza a autoridade da lei, a soberania de um outro Poder e a segurança jurídica. Em benefício do quê?” (cf. Silvana Batini, Caso Demóstenes: STF troca objetividade da lei pela subjetividade dos ministros, 18/04/2018).
Em benefício, podemos dizer, de uma casta de corruptos – do PT, PMBD, PSDB e outros partidos que se tornaram organizações criminosas, cuja principal atividade é assaltar a propriedade do povo.
INCONGRUÊNCIAS
Com certeza, a Lei da Ficha Limpa e a impunidade dos corruptos são os principais alvos da imunização de Demóstenes contra a lei.
A procuradora Batini demonstra como se passou por cima, não somente da lei, mas da lógica mais comezinha, para livrar o senador de Cachoeira da condenação a que fez jus (os grifos são nossos):
“O ex-senador estava inelegível por duas causas derivadas de um mesmo conjunto de fatos: uma condenação criminal colegiada e uma cassação política no Senado. Ambas em decorrência de suspeitas de seu envolvimento com os negócios escusos do bicheiro Carlinhos Cachoeira.
“As duas hipóteses estão expressas na Lei da Ficha Limpa e operam de forma independente: basta que uma delas ocorra para que a pessoa se torne inelegível. Ou seja, a condenação criminal torna alguém inelegível mesmo que não tenha sido cassado. E a cassação torna alguém inelegível, mesmo que não tenha sido condenado. No caso de Demóstenes, as duas ocorreram.
“A condenação criminal não chegou a transitar em julgado e, no decorrer de um dos recursos interpostos pela defesa, foi anulada por vício em algumas provas. A cassação política no Senado ocorreu em 2012 e não foi contestada na Justiça. Agora, o Supremo decidiu que o reconhecimento da nulidade das provas criminais feita na Justiça pode desconstituir parcialmente a decisão política do Senado.
(…)
“Há poucos meses, o Supremo deliberou que não poderia afastar cautelarmente o senador Aécio Neves, pois era o Senado soberano para deliberar sobre afastamento de seus membros. Em respeito ao princípio da separação dos poderes, renunciou ao seu próprio poder de cautela, mesmo em se tratando de processo penal que tramitava no Tribunal.
“Já no caso de Demóstenes, decidiu simplesmente anular um dos efeitos de uma decisão soberana do Senado, tomada há quase seis anos, em processo transcorrido inteiramente na casa legislativa.
(…)
“Ao atribuir esse poder a si mesmo, o Supremo [isto é, o trio formado por Lewandowski, Toffoli e Mendes] impôs os critérios de aferição da legalidade da prova criminal a uma decisão política tomada não sobre a prática de um crime, mas sobre uma infração de natureza política – a quebra de decoro parlamentar.
“Embora o fato da vida seja o mesmo – o suposto envolvimento do ex-senador com o notório bicheiro, sua repercussão jurídico penal é totalmente diversa do seu enquadramento político como quebra de decoro. Não são apenas instâncias diversas e independentes. São naturezas diversas de subsunção típica e aferição.
“A invalidação da condenação criminal não deveria interferir na conclusão política, tomada sobre outros parâmetros. Até porque, a Constituição não exige a condenação criminal para cassar um legislador.
“… além de equivocada, a decisão do Supremo no caso de Demóstenes foi profundamente contraditória. Se o problema estava na ilicitude das provas, por que não anularam toda a cassação e devolveram o mandato ao ex-senador? Por que a 2ª Turma escolheu salvar apenas uma parte da condenação política (mantendo a cassação) se o fundamento era o vício da prova? Juridicamente, uma opção como esta não se sustenta. Falta-lhe coerência. Se a prova era nula e se contaminou a decisão, tudo deveria ter sido anulado. Se a cassação foi mantida, não há porque retirar apenas um de seus efeitos: a inelegibilidade.
“Ficar pela metade do caminho não foi cautela nem prudência. Foi jeitinho.
“Recentemente, o plenário do Supremo já reconheceu que a inelegibilidade, na lei da Ficha Limpa, não é sanção, propriamente dita, mas critério que está na esfera do legislador estabelecer, de forma a proteger a integridade dos mandatos conquistados – autorizando inclusive a aplicação da lei para fatos ocorridos antes de sua vigência.
“Agora, a decisão da 2ª Turma contrariou este entendimento porque esvaziou o caráter objetivo que a cassação deveria ostentar. Ao permitir que, mesmo após quase seis anos, a Justiça pudesse adentrar no mérito da decisão política para tornar o cassado elegível, enfraqueceu não somente a lei da ficha limpa, como o próprio entendimento que o Supremo fixou sobre a lei”.
E mais, leitor, não achamos que seja necessário. Pelo momento.
CARLOS LOPES