
Ekrem Imamoglu é eleito em primárias como pré-candidato do Partido Republicano do Povo
Na maior onda de protestos na Turquia em quase uma década, manifestantes estão nas ruas desde quarta-feira para exigir a libertação do prefeito da maior cidade do país, Istambul, Ekrem İmamoglu, preso sob acusação de corrupção e ligação com “terroristas” da minoria curda, e que é do oposicionista Partido Republicano do Povo (CHP, nas iniciais em turco).
No domingo, um tribunal transformou a detenção de Imamoglu em prisão preventiva e ele foi provisoriamente afastado das funções de prefeito. Ele e quase uma centena de acusados de “fraude em licitações” e de “propinas” foram submetidos a interrogatório. Os promotores anunciaram que vão apelar da decisão do tribunal contrária ao caso de “terrorismo”.
O CHP realizou primárias neste domingo para oficializar a pré-candidatura a presidente de Imamoglu, o que é tido como real razão para sua prisão. As eleições estão marcadas para 2028, mas como Erdogan já está completando seu segundo mandato, para continuar no poder ele teria de mudar a constituição ou convocar eleições antecipadas.
Em paralelo, e reforçando essa denúncia, Imamoglu teve seu diploma superior cassado na véspera, terça-feira, pela Universidade em que se formou, quesito obrigatório, pela lei turca, para que possa se candidatar a presidente.
Eleito em 2019 em uma eleição que chegou a ser contestada pelo governo turco, reeleito no ano passado, Imamoglu se tornou a principal figura da oposição e é visto como o único capaz de derrotar o presidente Recep Erdogan, do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP).
PANELAÇOS
O governo estendeu até o próximo dia 26 a proibição de manifestações, na prática já derrubada nas ruas pelos protestos em massa de trabalhadores e estudantes, apesar da repressão desencadeada contra eles.
Em cidades como Ancara, Istambul e Izmir, panelaços foram ouvidos à noite, apesar das declarações do governo de que não seriam toleradas tentativas da oposição de “semear o caos” nas ruas das cidades. Nas principais universidades turcas, os estudantes se mantêm em vigília. Os protestos se sucedem em frente à prefeitura.
Num tweet publicado pouco antes da sua chegada ao tribunal, Imamoglu instou a população a proteger as urnas das primárias de domingo: “Não se esqueçam: eles têm muito medo de vocês e do vosso direito democrático de votar”. Numa mensagem anterior, ele descreveu a sua detenção como um “golpe de Estado”, que irá agravar “a difícil situação econômica do país”.
A acusação de “ligação com terroristas” é vista como uma manobra em relação às ações de Imamoglu para constituição de uma frente com a oposição curda legal, o terceiro maior partido (HDP), contra Erdogan.
Nas eleições municipais do ano passado, o CHP superou o partido de Erdogan e fez os prefeitos das duas maiores cidades turcas, Ancara, a capital, e Istambul, de 16 milhões de habitantes.
O CHP é conhecido como o partido dos kemalistas – em referência a Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna, de Estado laico, ao fim da I Guerra -, vagamente social-democrata, pró-Otan e pró-União Europeia. O partido de Erdogan é o AKP, que junta valores islâmicos, conservadorismo e política econômica liberal e às vezes é considerado neo-otomano. Sob seu governo, a Turquia se alçou a estar entre as 20 maiores economias do mundo. Há mais de duas décadas a UE tem sabotado os esforços da Turquia para ser aceita no bloco europeu.
CAMPEÃO DE DESIGUALDADE
Segundo o Eurostat, a Turquia é o país europeu de maior desigualdade de renda. Em 2024, o PIB cresceu 3,2% enquanto a inflação chegou a 47%; também foi um dos recordistas de juros altos no planeta.
O salário mínimo, em janeiro, é de 22.104 liras, equivalente a 621 dólares, um aumento de 30% frente ao valor de 2024. Quando o novo salário mínimo foi anunciado, o prefeito agora preso postou no X: “O governo zombou oficialmente dos 9 milhões de trabalhadores com salário mínimo e suas famílias – 22.104 liras não são suficientes nem para um mês de aluguel em Istambul”.
De acordo com as centrais sindicais, metade da população empregada do país trabalha por um salário mínimo. Segundo a Fundação de Investigação de Política Econômica da Turquia (TEPAV), “7 milhões de crianças com idades entre 0 e os 17 anos vivem na pobreza, sendo que 2 milhões delas enfrentam a ‘pobreza absoluta’”.
TRAJETÓRIA SINUOSA
Desde 2003, Erdogan lidera a política turca, primeiro como primeiro-ministro (até 2014) e, depois, como presidente. Sob seu comando, a Turquia tem atravessado uma trajetória sinuosa, especialmente após o golpe fracassado contra ele de 2016, que ele atribuiu à CIA e a setores ligados aos norte-americanos, a chamada Feto (Organização Terrorista Fethullah), encabeçada por um cidadão turco morador do estado da Virgínia, e no qual não faltaram sinais de ingerência da Otan.
Afinal, depois de três ditaduras militares e da maior base da Otan nas proximidades da Rússia, é difícil alguém acreditar que alguém possa dar um golpe na Turquia sem que Washington saiba. Dizem as más línguas que foram os russos que avisaram Erdogan.
O golpe foi barrado graças à ida em massa da população às ruas e foi seguido pela decretação de um estado de emergência que durou quase dois anos. Em que dezenas de milhares de pessoas foram presas ou demitidas, inclusive uma centena de altos mandos militares. Um referendo constitucional em 2017, ampliou os poderes de Erdogan.
No ano passado, Erdogan oficialmente apresentou aos BRICS pedido de ingresso e já é observador do Acordo de Cooperação de Xangai.
Ele intensificou as relações com a Rússia, adquiriu um sistema de defesa antiaérea russo S-400, o que levou Washington a excluí-lo da fabricação do F-35, participa do gasoduto Turk Stream, está instalando uma usina nuclear fornecida pela Rússia e até sediou as negociações Moscou-Kiev de 2022. Além de manter os laços com o regime de Kiev e inclusive fornecer drones turcos.
Ao mesmo tempo, foi um operador imprescindível da operação para derrubada do governo sírio de Bashar al Assad, embora tenha buscado temporariamente algum nível de acomodação com a Rússia e o Irã, no chamado Formato Astana. A HTS e seu capo, Al Jolani, que tomaram o poder na Síria no final do ano passado, têm vínculos estreitos com Ancara.
Uma das razões para os atritos de Erdogan com Washington foi o patrocínio, pelo Pentágono, das milícias curdas na Síria (YPG), a pretexto do enfrentamento com o Estado Islâmico. O que, para Ancara, só pode significar apoiar o proscrito Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que luta pela separação das províncias de maioria curda. As FDS se prestaram a apoiar o roubo do petróleo e do trigo sírios pelos norte-americanos e repetidamente houve choques com tropas turcas.
IMAMOGLU E A POLÍTICA EXTERNA
Quanto à política externa, sempre lembrando o vínculo do CHP com a Otan e a União Europeia, é importante registrar que em abril de 2024 Imamoglu classificou o Hamas como “organização terrorista”, talvez para ficar bem na fita com a Alemanha e com Biden, cúmplices em Gaza.
O que não o impediu de estar na primeira fila para a ida a Damasco para cumprimentar o ex-cortador de cabeças Al Jolani por sua vitória na Síria. O governo Erdogan, em maio do ano passado, aderiu ao processo lançado pela África do Sul para investigar o genocídio perpetrado por Israel em Gaza.
O CHP também votou com o AKP a favor das intervenções das tropas turcas na Síria.
A UE reagiu à prisão, com o premiê interino alemão Olaf Scholz declarando que “a detenção de um importante político da oposição é um fardo para a democracia na Turquia, mas também é um fardo para as relações entre a Europa e a Turquia”.
A mesma UE que não viu problema em um tribunal revogar a realização do segundo turno da eleição presidencial na Romênia no ano passado, porque o primeiro colocado tinha restrições à Otan e à guerra na Ucrânia e era visto como “eurocéptico”.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, instado a comentar a situação na Turquia, disse que “esta é uma questão soberana da Turquia. Sempre dissemos que realmente não gostamos que nos digam como viver. E nunca interferimos nos assuntos internos de outras pessoas”, ele enfatizou.
Conforme as agências de notícias, Erdogan conversou três dias antes da ordem de prisão com o presidente norte-americano Donald Trump, sobre a situação na Síria e no Oriente Médio e manifestou seu apoio às negociações Moscou-Washington em curso.