Com estas palavras de muita gratidão e respeito, Mónica Baltodano, a ex-comandante da Frente Sandinista de Libertação Nacional – organização nicaraguense que derrubou a ditadura de Anastácio Somoza – homenageou Maria Mercedes Salgado, que chegou a representar a Frente Sandinista no Brasil e uma das principais organizadoras e incentivadoras do Comitê de Solidariedade ao Povo da Nicarágua
Mercedes se despediu de nós no dia 25 de janeiro, cercada de seus parentes, amigos e companheiros de sua dedicação aos ideais democráticos mais justos, humanos e populares.
O Comitê de Solidáriedade ao Povo da Nicarágua, que teve em Mercedes uma das principais lideranças, foi formado em meio ao enfrentamento da usurpação do poder na Nicarágua pelo ex-líder sandinista, Daniel Ortega.
Ortega mergulhou o país em uma ditadura que persegue de forma violenta e implacável os que seguiram buscando para seu país a continuidade da construção de um pátria democrática alicerçada nos ideais do revolucionário Sandino, e na concepção socialista e patriótica da Frente Sandinista.
Mercedes denunciava a usurpação da FSLN, que assim deixou de ser o instrumento popular da derrubada da ditadura somozista e base para a formação do poder progressista e antiimperialista. Um poder popular e soberano cujos governos revolucionários viriam a ser violentamente atacado pelos Estados Unidos em sua sanha de voltar atrás a roda da história e devolver o país à condição de submisso aos ditames e interesses de Washington em suas riquezas.
Conheci Mercedes e seu companheiro Alceu no ano de 1977 quando se empenhavam na construção do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR8, ao qual ingressei através do contato que me proporcionaram com o movimento. Através das discussões com eles e do material produzido pelo MR8 na clandestinidade, tomei conhecimento das diretrizes políticas do MR8 em seu papel de vanguarda e amplas alianças na luta pela derrubada da ditadura no Brasil.
Como pude dizer a sua filha Ana Isabel, com a qual me encontrei na despedida de sua mãe, lembro de uma característica de Mercedes: a capacidade de ouvir, debater e formular suas posições com clareza, aliando firmeza, determinação e tranquilidade na expressão de suas ideias.
O jornal Hora do Povo acompanhou as manifestações do Comitê de Solidariedade ao Povo da Nicarágua através dos posicionamentos de Mercedes, como mostra artigo dela publicado pelo HP em 21 de agosto de 2021, intitulado “A metamorfose da Frente Sandinista de Libertação Nacional da Nicarágua”:
“O primeiro processo que levou à regressão da Frente Sandinista foi a concentração de poder, primeiro na figura de Ortega, agora na de sua família. O segundo é a pragmatização da política, sempre tem que negociar, mas sobre questões substantivas que afetam as pessoas. Nas mãos da família Ortega-Murillo, a Frente Sandinista ficou órfã do programa político. A concentração de poder nos Ortega e a hiperpragmatização da política significou liquidar a tradição de liderança coletiva que a Frente Sandinista tinha e a orientação política de ser uma força com a aspiração de transformar a realidade”.
No artigo, Mercedes compara o retrocesso político e ditatorial atual do regime de Ortega, com os ideais que levaram as forças sandinistas ao poder com a derrubada da ditadura somozista, citando o comandante guerrilheiro Hugo Torres:
“Éramos jovens e carregávamos uma mochila cheia de ideais, entre eles, o ideal de justiça, o mais poderoso de todos. Sabíamos que podíamos morrer na luta, porém, outros retomariam nossas bandeiras. Isso dava um sentimento de transcendência, perenidade, eternidade, convicção de que nossas vidas não terminariam em vão. Se não fosse porque os ativistas que nos antecederam tornaram carne e sangue um pensamento, dispostos a se doar, eles não chegariam a ter essa força capaz de arrastar, atrás deles, milhares e milhões de homens e mulheres”
Integrante da editoria de Internacional do Hora do Povo, Susana Lischinsky, assim se referiu a sua amiga e companheira de lutas:
“Conheci Maria Mercedes na Argentina em meados da década dos anos 1970 quando ela estava exilada por conta da ditadura no Brasil. Ela era casada com o companheiro Alceu e militavam no Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Conversávamos muito sobre a situação. Afinal na Argentina houve um golpe em 1976 que foi também muito violento e pro – imperialista.
Mercedes teve um papel fundamental para que eu viesse morar no Brasil, seu exemplo me marcou. Depois, durante o início da Revolução Sandinista ela serviu como diplomata no Brasil e, mais uma vez foi exemplo de compromisso. Até o fim de seus dias contribuiu com importantes pesquisas e artigos sobre a realidade do seu país natal que nos informaram e esclareceram. Vai em paz, Mercedes! Vai fazer falta!”
“Honraste a vida para viver sempre”, foi a frase destacada pelo Comitê de Solidariedade do Povo da Nicarágua na coroa de flores levada à sua despedida neste sábado.
NATHANIEL BRAIA
Segue a íntegra da carta-homenagem da líder sandinista Mónica Baltodano:
Adeus querida Maria Mercedes Salgado.
A conhecemos na nossa cidade natal León, como uma das garotas da escola La Assunção comprometidas na ação social, em favor dos mais pobres. Nós de La Pureza interagimos com você nos Movimentos Cristãos, com sua grande amiga Felicia Medina e outras. Vocês eram para nós uma grande referência de compromisso e humanidade.
Não consigo deixar de lembrar quando você entrou em contato comigo em 2015 para me dizer que estava fazendo um doutoramento na Universidade de São Paulo e sua tese era sobre a participação dos jovens na luta da FSLN contra a ditadura somocista. Durante meses mantivemos contato porque você estava analisando as entrevistas da minha peça, em quatro volumes, Memórias da Luta Sandinista. Seu interesse era nas motivações dos jovens para se integrar em lutar em risco de vida.
Mas desde 2018 você foi uma das pioneiras para formar – no Brasil onde vivia – um comité de solidariedade com o povo da Nicarágua, quando a indignação que moveu muitos nicaraguenses a protestar contra a ditadura de Ortega e Murillo foi respondida com massacres, desaparecimentos, prisão, tortura e exílio.
Você foi motor e animação daquele comitê, apesar de já estar doente. Você não parou de lutar para que dentro do PT e de outras forças de esquerda entendessem realmente o que estava acontecendo na Nicarágua. Cartas e comunicados como o que fizeram para protestar contra o apoio de um setor do PT a Ortega quando fez sua farsa eleitoral de 2021, contaram com a sabedoria da sua caneta e sua perseverança. Para isso, você se empenhou em manter contato com seus velhos amigos. E graças a muitos desses contatos conseguimos realizar a turnê pelo Brasil no início de 2023.
Você foi a organizadora principal da nossa agenda em São Paulo e nos acompanhou durante todo o programa, apesar de estar realmente muito fraca depois de inúmeros tratamentos oncológicos. Sua força interior o moveu a impulsionar importantes atividades, como a entrevista em Brasília com Celso Amorím, seu amigo que você amava e respeitava muito. Também o encontro em São Paulo com líderes históricos do PT com longa trajetória de defesa dos DDHH como Adriano Diogo, Eduardo Suplicy, Luis Eduardo Greenghalt e também Valerio Arcary do PSOL. Lembro de todo o carinho com que você foi recebido pelo Padre Julio Lancelotti e Paulo Cesar Pedrini da pastoral do trabalho entre muitos outros encontros. Todos eles tinham muito respeito por você. E é porque sua vida irradiava compromisso e verdade.
Você lutou como uma leoa para continuar vivendo, e o amor dos seus filhos, irmãos e amigos e a certeza de que sua vida era importante para a luta também a manteve lúcida e comprometida até o fim. Guardo nossa troca de mensagens em que você disse que era um privilégio que seus filhos e amigos não te tivessem deixado sozinha nem um minuto e que Felicia [líder sandinista que teve de se refugiar do regime de Ortega] tivesse viajado de Paris para cuidar de você por alguns dias.
Maria Mercedes de onde estiver, continue cuidando do seu povo e do sua gente, como sempre fez. Nós somaremos sua vida e seu exemplo às forças necessárias para continuar na causa por uma Nicarágua verdadeiramente livre.