Os imigrantes que desembarcarem no país com intenção de seguir viagem para outro destino e que não possuírem visto de entrada no território brasileiro deverão seguir para seus destinos finais ou retornar a seus países de origem imediatamente. Segundo o governo federal, a medida é uma resposta a denúncias de que o país tem sido usado como rota de organizações criminosas para tráfico de pessoas.
A mudança, que entrou em vigor nesta segunda-feira (26), faz parte das novas regras de imigração que o Ministério da Justiça e Segurança Pública anunciou na última quarta-feira (21). As normas se aplicam apenas aos viajantes estrangeiros provenientes de países cujos cidadãos o Brasil exige visto de entrada.
A iniciativa é questionada por especialistas e organismos ligados aos direitos dos imigrantes. Eles alegam que não há uma política pública que defina claramente as atribuições de cada agente, público ou privado, na gestão das migrações no Brasil. Além disso, contraria a legislação vigente, restringindo um direito a despeito de buscar o “caminho fácil” e prescindir da necessidade de se formular tal política pública, avaliam.
A decisão do Ministério da Justiça é baseada em um relatório da Polícia Federal que apontou que a maioria dos solicitantes de refúgio no Brasil não tem motivações que justifiquem a admissão no país sob tal condição. Segundo o levantamento, a maioria dos que fazem o pedido no aeroporto de Guarulhos tem como objetivo obter a permissão para entrar no Brasil e prosseguir viagem por terra, passando por outros países do continente americano e tendo os Estados Unidos como destino principal.
Entre janeiro de 2023 e junho deste ano, de acordo com a Polícia Federal, mais de 8 mil migrantes pediram refúgio no Aeroporto Internacional de Guarulhos. No entanto, somente 117 desses requerimentos continuam ativos no Sistema de Registro Nacional Migratório, ou seja, 1,41%. A maioria já deixou o país, ou permanece de maneira irregular no território brasileiro.
“Desde o início de 2023, cidadãos de várias nacionalidades passam, em trânsito, pelo aeroporto de Guarulhos e deixam de ir para os destinos finais para os quais adquiriram passagem aérea, alegando motivos diversos para pedir refúgio no Brasil”, afirma o delegado federal Marinho da Silva Rezende Júnior, coordenador-geral de Polícia de Migração da PF, em um ofício encaminhado ao Ministério da Justiça pouco antes do governo federal anunciar as novas regras.
“O que vamos fazer: identificando viajantes que não possuem visto de entrada no território brasileiro e estão em trânsito para outros países, mas não há risco real de perseguição, essas pessoas serão inadmitidas para entrada no território brasileiro”, explicou o secretário nacional de Justiça, Jean Uema, em entrevista à TV Globo.
Ainda de acordo com a pasta, a medida “tem como objetivo proteger o instituto do refúgio,” assegurando seu acesso a pessoas que “efetivamente demonstrem interesse em solicitar a proteção internacional por parte do Estado Brasileiro”, além de “quebrar a atuação de organizações criminosas no contrabando de imigrantes e tráfico de pessoas”.
Para as entidades e órgãos ligados aos direitos dos imigrantes, a medida viola dois princípios basilares da política brasileira sobre migração: a acolhida humanitária e a não devolução (non refoulement). “A inadmissão está prevista na Lei de Migração, mas não em casos de solicitantes de refúgio, que mesmo sem um visto de entrada têm pleno direito de solicitar refúgio e ser admitidos no Brasil sem maiores questionamentos”, argumenta o advogado Vitor Bastos, especialista em migração.
“É o que está na Lei de Refúgio e na Lei de Migração. E ainda que aceitemos a versão de que a inadmissão não ferirá garantias internacionais, após inadmitido, a próxima medida para retirada da pessoa inadmitida do país será a repatriação, e a repatriação viola frontalmente o princípio do non-refoulement no caso de solicitantes de refúgio. Ou seja, o argumento de que essa medida não irá violar garantias internacionais simplesmente não se sustenta”, analisa Bastos.
A também advogada Carla Mustafa, coordenadora do Núcleo de Migrantes e Refugiados da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, vê a mudança com preocupação. “Sabemos que a solicitação de refúgio pode ser utilizada como meio de regularização migratória mais acessível para pessoas que não se enquadram nas hipóteses de reconhecimento da condição de refugiado”, ressalva. “Contudo, criar obstáculos que dificultam o acesso ao direito de solicitar refúgio, como a exigência de vistos de entrada e de trânsito, pode prejudicar àquelas pessoas que realmente se deslocam forçadamente em razão de perseguição ou graves e generalizadas violações de direitos humanos”, avalia.
Por sua vez, a Defensoria Pública da União (DPU) alega que não recebeu qualquer comunicado sobre as novas regras por parte do Ministério da Justiça. Segundo o órgão, poucos dias antes havia entregado uma série de recomendações ao governo federal e outros organismos públicos e privados envolvidos na questão do aeroporto de Guarulhos. “A DPU informa que não recebeu nenhuma informação prévia do Secretário Nacional de Justiça, conforme divulgado em veículos de comunicação, a respeito de eventuais mudanças nas regras de entrada no Brasil”, disse, em nota.
A instituição, por meio do Grupo de Trabalho para Migrações, Apatridia e Refúgio, reforçou as preocupações de especialistas sobre o combate ao tráfico de pessoas e contrabando de migrantes que não implique na restrição a direitos já estabelecidos. “A instituição considera que o combate ao contrabando de migrantes e à atuação de coiotes em redes criminosas de aliciamento e transporte não pode ser feito à custa de violação de direitos.”
“Deve-se evitar a ideia de que há uma crise causada pelas pessoas migrantes, que podem ser aliciadas e iludidas com a possibilidade de migrar para outros países em jornadas muito caras e perigosas”, defende a DPU. O melhor caminho, aponta a Defensoria, “é o da repressão ao contrabando nos países de origem e a conscientização sobre os direitos no Brasil e os riscos da migração irregular aos migrantes que já chegaram”.
O Instituto Adus, que promove a integração de refugiados e migrantes na sociedade brasileira desde outubro de 2010, também expressou preocupação com a decisão do governo federal de barrar a entrada de estrangeiros sem visto. “Embora respeitemos a soberania do Brasil e o direito de regulamentar suas fronteiras, ressaltamos que essa medida vai de encontro ao princípio de proteção internacional dos refugiados, garantido pela Lei de Refúgio, e aos tratados internacionais que o Brasil ratificou”, comentou o instituto, citando a Convenção de Genebra, de 1951.
Para o Centro de Proteção de Refugiados e Migrantes Internacionais (CEPREMI), a decisão relembra as normas migratórias no período militar. “O espírito securitário e a criminalização do migrante do Secretário Nacional de Justiça lembram a lei migratória da ditadura, felizmente abolida no Brasil democrático”, ressaltou a entidade, por meio de manifestação no antigo Twitter, o X.
“Até o momento, não é possível compreender com clareza como essas novas regras serão aplicadas sem que o direito de acesso ao pedido de refúgio seja violado. Direito esse garantido por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e por legislações nacionais conquistadas com base em amplo debate social”, sustenta a instituição, alertando que o Estado brasileiro deve evitar criminalizar quem chega ao país pedindo proteção”, diz nota da Missão Paz. A organização filantrópica oferece apoio e acolhimento a imigrantes e refugiados desde 1939.
O anúncio da restrição pegou de surpresa a Defensoria Pública da União, que poucos dias antes havia entregue uma série de recomendações ao governo federal e outros organismos públicos e privados envolvidos na questão do aeroporto de Guarulhos. “A DPU informa que não recebeu nenhuma informação prévia do Secretário Nacional de Justiça, conforme divulgado em veículos de comunicação, a respeito de eventuais mudanças nas regras de entrada no Brasil”, disse, por meio de nota.
A instituição, por meio do Grupo de Trabalho para Migrações, Apatridia e Refúgio, reforçou o coro feito por especialistas sobre um combate ao tráfico de pessoas e contrabando de migrantes que não implique na restrição a direitos já estabelecidos.
“A instituição considera que o combate ao contrabando de migrantes e à atuação de coiotes em redes criminosas de aliciamento e transporte não pode ser feito à custa de violação de direitos. Deve-se evitar a ideia de que há uma crise causada pelas pessoas migrantes, que podem ser aliciadas e iludidas com a possibilidade de migrar para outros países em jornadas muito caras e perigosas. O melhor caminho é o da repressão ao contrabando nos países de origem e a conscientização sobre os direitos no Brasil e os riscos da migração irregular aos migrantes que já chegaram”, disse a DPU, na mesma nota.