Antigamente (aliás, nem tanto), havia um conto que era recorrente nas antologias escolares: “Plebiscito”, de Artur Azevedo, escritor, hoje, menos conhecido que seu irmão – o romancista Aluísio Azevedo, autor de “O Cortiço” -, mas de extraordinário sucesso, como teatrólogo e cronista, no fim do século XIX e início do século XX.
Em “Plebiscito”, que se passa em 1890, um sujeito, daquele tipo que se acha inferior se admitir que não sabe alguma coisa, corta um dobrado (ainda por cima diante da mulher, que o conhece muito bem) quando o filho pergunta o significado da palavra “plebiscito”.
Atualmente, depois das experiências históricas do século XX, todo mundo, no Brasil, sabe o que é “plebiscito”.
Mais raro é saber o que é um “embargo infringente”, expressão que apareceu às carradas no julgamento do pedido de habeas corpus de Paulo Maluf, na quarta e quinta-feira (v. STF barra recurso protelatório, confirma condenação de Maluf e Fachin concede prisão domiciliar).
Antes que algum original – ou gaiato – batize o filho com o nome de “Embargo Infringente de Oliveira” e a criança tenha que suportar para toda a vida o apelido de “bargo” ou “infrin”, investiguemos, leitor, o que é essa esfinge de nome tão esquisito.
Comecemos pela questão: o que se discutia, no Supremo Tribunal Federal (STF), na quarta e quinta-feira?
Discutia-se se é possível à defesa de um réu entrar com um recurso (exatamente, o agora célebre “embargo infringente”) no plenário do STF, composto por 11 ministros, contra a sentença de uma de suas turmas – formadas, ambas, por cinco ministros (a presidente do STF não faz parte das turmas, votando apenas na reunião plenária).
A tentativa dos ministros Lewandowski, Toffoli e Gilmar Mendes era, como apontamos, criar uma “quinta” instância da Justiça para dificultar ainda mais a finalização (“trânsito em julgado”) dos processos contra ladrões do dinheiro público (v. Aécio réu, Lula preso e o cerco fechando em torno de Temer).
Evidentemente, o caso de Maluf era apenas um biombo para essa tentativa.
O objetivo era facilitar o caminho da impunidade para Lula, Temer e outros heróis da ladroagem contra o povo.
Dias Toffoli havia, inclusive, passado por cima de uma decisão do ministro Fachin, sem ter qualquer autoridade para isso, ao enviar Maluf para sua modesta casa nos Jardins, em São Paulo.
Imprensado na sessão do STF, Dias Toffoli, primeiramente, negou que tivesse desrespeitado a decisão de Fachin.
Depois, como todo mundo sabia que não era verdade, ele mudou a argumentação: “Minha excepcionalíssima atuação nesse habeas se deu tão somente em caráter de urgência, considerado o feriado forense em que estávamos, pois era Quarta-Feira Santa, e o agravamento da saúde do paciente no cárcere”, disse ele.
Não vamos perder tempo, aqui, com a psicopatia do sr. Gilmar Mendes, pois os nossos leitores devem estar tão fartos dela quanto nós.
POSIÇÃO EXCÊNTRICA
Porém, merece registro a estranha posição do ministro Marco Aurélio.
Na votação da sentença de Maluf, condenado a a 7 anos, 9 meses e 10 dias de prisão por lavagem de dinheiro (o crime de corrupção havia prescrito por decurso de prazo), não houve divergência alguma.
Marco Aurélio votou com os outros ministros da turma, o que resultou em unanimidade na condenação.
Isso era suficiente para acabar com qualquer “embargo infringente”, que só pode ser impetrado em caso de que haja alguma divergência entre os membros de um tribunal.
Nas palavras do ministro Fachin, relator do processo de Maluf: “no que diz respeito ao mérito da acusação, a decisão atacada pelos embargos infringentes (…) foi objeto de deliberação unânime da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, razão pela qual não se abre a via dos embargos infringentes”.
Foi o próprio Marco Aurélio que, na quarta-feira, ressaltou que havia votado com a maioria – e que sua divergência (a única que houve no julgamento de Maluf) foi apenas em uma preliminar: se o STF considerava, ou não, extinto também o crime de lavagem.
Como o STF tem posição firmada de que o crime de lavagem é autônomo em relação ao crime de corrupção, Marco Aurélio foi voto vencido nessa preliminar.
Porém, ao se estabelecer a pena de Maluf (a chamada “dosimetria”), Marco Aurélio completou a unanimidade.
Porém, na quinta-feira, Marco Aurélio votou contra o que ele próprio disse no dia anterior, acompanhando Lewandowski, Mendes, Toffoli e Alexandre de Moraes.
RECURSO
Essencialmente, a tentativa de criar uma “quinta instância”, para dificultar a punição dos corruptos, foi derrotada.
No entanto, o resultado final da votação merece algum estudo – e algum comentário.
Por esse resultado, o STF admitiu a possibilidade de “embargo infringente” contra uma sentença de uma de suas turmas, desde que haja dois votos divergentes.
Note-se que o ministro autor dessa proposta vencedora, Luís Roberto Barroso, declarou, em seu voto: “embargos infringentes no geral constituem o anacronismo do sistema penal brasileiro em que a ideia do devido processo legal é o processo que não acaba nunca. Não há motivo para a essa altura da vida, em que o ideal seria suprimir infringentes, alargarmos a admissão deste recurso, revertendo a jurisprudência do STF”.
Então, por que a maioria do STF admitiu “embargos infringentes” no caso de dois votos divergentes em uma de suas turmas?
É necessário definir o que é o “embargo infringente”.
Trata-se de um recurso exclusivo da defesa contra uma condenação, quando a votação da sentença, em um colegiado – um tribunal acima da primeira instância – não for unânime.
Apesar de toda uma discussão muito pouco prática a respeito de sua “natureza”, o objetivo do “embargo infringente” é o mesmo de quase todo recurso: “a reforma de uma sentença, sua anulação, integração ou seu aprimoramento” (cf. F.P. Antunes Pereira, “Cabimento dos embargos infringentes nas ações penais no âmbito do STF”, Jus.com.br, 13/09/2015).
SUPREMO
Assim, diz o Código de Processo Penal:
“Art. 609. § único: Quando não for unânime a decisão de segunda instância, desfavorável ao réu, admitem-se embargos infringentes e de nulidade, que poderão ser opostos dentro de 10 (dez) dias, a contar da publicação de acórdão” (grifo nosso).
O Código de Processo Penal nada fala sobre “embargos infringentes” no STF. Somente se refere a esse recurso contra uma decisão de segunda instância, composta, na esfera estadual, pelos Tribunais de Justiça (TJs), e, na esfera federal, pelos Tribunais Regionais Federais (TRFs).
No entanto, os “embargos infringentes” são mencionados no Regimento Interno do STF, no artigo 333, cujo parágrafo único é o seguinte:
“O cabimento dos embargos [infringentes], em decisão do Plenário, depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes, salvo nos casos de julgamento criminal em sessão secreta”.
Essa redação é de 1985. A original, que estabelecia o mínimo de três votos divergentes – em vez dos quatro atuais – para que a defesa de um condenado pudesse entrar com um “embargo infringente”, é posterior à Constituição da ditadura, de 1969.
O importante, aqui, é que ambas são anteriores à Constituição de 1988 – ou seja, à atual Constituição.
Por isso, existe uma corrente de juristas que defende que, com a Constituição de 1988 (e com a Lei 8.038, de maio/1990, que regulamenta os procedimentos processuais no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), adaptando-os à então nova Constituição), os “embargos infringentes” foram abolidos nos processos originários do STF e do STJ, ou seja, naqueles processos que não vieram de outras instâncias da Justiça.
Realmente, a Lei 8.038 nada diz sobre a possibilidade de “embargos infringentes” (cf. F.P. Antunes Pereira, art. cit.: “Para alguns doutrinadores, a Lei nº 8038/90, que instituiu normas procedimentais específicas para os processos no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal revogou, implicitamente, o cabimento dos Embargos Infringentes no STF, uma vez que o texto legal não trata expressamente dos Embargos Infringentes”).
Mais: na exposição de motivos do novo Código de Processo Civil, a comissão de juristas que o elaborou afirma:
“Uma das grandes alterações havidas no sistema recursal foi a supressão dos embargos infringentes. Há muito, doutrina da melhor qualidade vem propugnando pela necessidade de que sejam extintos”.
Essas frases repetem, nesse aspecto, a exposição de motivos do Código de Processo Civil de 1973: “A existência de um voto vencido não basta por si só para justificar a criação de tal recurso; porque, por tal razão, se devia admitir um segundo recurso de embargos toda vez que houvesse mais de um voto vencido; desta forma poderia arrastar-se a verificação por largo tempo, vindo o ideal de justiça a ser sacrificado pelo desejo de aperfeiçoar a decisão”.
O problema dessa colocação não é apenas a sua lógica torta – por que razão aqueles que fazem as leis, ou as interpretam, seriam obrigados a admitir uma outra rodada de recursos (“embargos”), se houvesse mais de uma divergência? A discussão, aqui, é se a votação foi unânime – ou não.
Talvez problema maior que este, seja a origem do texto, escrito pelo ministro da Justiça do pior período da ditadura, Alfredo Buzaid (para uma visão geral – e sucinta – da história do “embargo infringente” em nossa legislação, ver o artigo do renomado jurista J.C. Barbosa Moreira, “Novas vicissitudes dos embargos infringentes”, Revista da EMERJ, v. 5, nº 20, 2002).
Certamente, este é um problema político. Mas, em certas questões, é difícil separar o que é jurídico daquilo que é político.
NÚMEROS
O fato é que, independente dessas intenções declaradas de abolir o “embargo infringente”, ele permaneceu no chamado ordenamento jurídico brasileiro.
Inclusive no regimento do STF (a Constituição de 1988, observa Barbosa Moreira, no artigo que mencionamos, remeteu “a competência para o julgamento dos embargos” aos “regimentos internos dos tribunais (…). A regulamentação pode até variar de um tribunal para outro, em função da estrutura de cada qual”).
Por isso, a maior parte dos ministros do STF optou pela admissão dos “embargos infringentes”, embora apenas quando haja dois votos divergentes da maioria.
Por que dois?
Porque o regimento do STF estabelece, para admitir “embargos infringentes” no plenário (composto por 11 ministros), o mínimo de quatro votos divergentes da maioria.
Assim, argumentaram os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, nas turmas, que têm cinco ministros, é necessário, para obedecer à proporcionalidade estabelecida pelo regimento, que haja dois votos divergentes da maioria.
A ministra Cármen Lúcia, presidente do Tribunal, ainda lembrou que, quando o regimento do STF foi elaborado, o presidente (ou a presidente) não votava, exceto em caso de empate – situação diferente da atual, em que a presidente vota.
Logo, os quatro votos divergentes necessários para a admissão de um “embargo infringente” eram sobre um total de 10 votos, quando, hoje, os votos são 11.
Portanto, a rigor, hoje, seriam necessários mais de quatro votos divergentes para que o Supremo admitisse um “embargo infringente”.
Por consequência, nas turmas, seria necessário, também, se o STF seguisse estritamente a matemática, mais de dois votos divergentes…
C.L.