“O risco Haddad é o fator de perigo que pode conduzir o Brasil a um ponto de não retorno às esperanças apontadas pelos constituintes na Carta aprovada em 1988”
PAULO KLIASS *
Desde a divulgação dos resultados das eleições de outubro de 2022 tornou-se sistemático o questionamento a respeito de quais seriam as verdadeiras intenções de Lula no que se refere à política econômica de seu terceiro mandato. Por vários momentos havia dúvidas quanto ao alinhamento do Presidente com relação à agenda tipicamente ajustada com os interesses do financismo, tal como têm sido propostas e encaminhadas as medidas de seu Ministro da Fazenda (MF). Fernando Haddad convenceu o chefe quanto à necessidade de não revogar o teto de gastos introduzido na Constituição por Temer em 2016, tal como debatido durante a campanha eleitoral. A solução final foi a inclusão de um dispositivo na PEC da Transição, ainda no final de 2022, por meio do qual o novo governo se comprometia em aprovar uma Lei Complementar tratando daquilo que passou a ser conhecido por Novo Arcabouço Fiscal (NAF).
Haddad tentou convencer Lula, no começo de 2023, a não incluir no reajuste do salário mínimo os ganhos de crescimento do PIB, para além da reposição inflacionária. Mas, nesse caso, o responsável pela área econômica foi obrigado a obedecer ao Presidente, que não aceitou o recuo proposto em relação a uma de suas promessas mais simbólicas. Em compensação, o chefe do governo não avançou em suas ponderações quanto às dificuldades de cumprir com a meta de zerar o déficit primário em 2024. Em um momento no ano passado Lula chegou a dizer que seria muito complicado o governo perseguir tal objetivo de política fiscal. Esse foi um dos assuntos em um café da manhã com jornalistas realizado no mês de outubro do ano passado.
(…) Tudo que a gente puder fazer para cumprir a meta fiscal a gente vai cumprir. O que eu posso dizer é que ela não precisa ser zero, o país não precisa disso. Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a começar o ano fazendo corte de bilhões nas obras que são prioritárias para esse país. Eu acho que muitas vezes o mercado é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que ele sabe que não vai ser cumprida. E se o Brasil tiver déficit de 0,5%, de 0,25%, o que é? Nada” (…) [GN]
Lula tem muita experiência acumulada no comando de equipes de governo e sabe exatamente os riscos e as consequências envolvidas com esse tipo de programa de austeridade. No entanto, ele optou por deixar o barco seguir e no final de tudo a equipe da Fazenda foi vitoriosa nas disputas internas palacianas. Ou seja, além de manter o NAF intacto, Haddad conseguiu obter de Lula o aval para perseguir uma meta fiscal inexequível. Valem todas as hipóteses para tentar explicar as razões de tal postura passiva do chefe do governo. A mais recorrente refere-se à tal da “correlação de forças” no interior do Congresso Nacional. Mas se é verdade que a atual composição do nosso parlamento é das mais conservadoras das últimas décadas, o fato é que não seria uma meta contemplando um déficit, como ponderava Lula na conversa acima descrita, que iria complicar a vida do governo. Inclusive pelo fato de 2024 ser um ano com eleições municipais e os parlamentares de todos as tendências veem com bons olhos mais recursos para serem aplicados em suas bases.
LULA HESITA E HADDAD AVANÇA COM A AUSTERIDADE
Mais à frente, tendo em vista a obsessão do Presidente do Banco Central (BC) com a manutenção da SELIC em níveis estratosféricos, um grupo cada vez mais amplo de economistas progressistas lançou uma proposta para minorar o arrocho monetário. Tratava-se simplesmente de flexibilizar meta de inflação pelo voto do Conselho Monetário Nacional (CMN). Como o Comitê de Política Monetária (COPOM) utiliza esse índice para estabelecer a taxa referencial de juros, tratava-se de tornar a meta para o crescimento dos preços mais realista com a realidade da inflação. Com isso, retirar-se-ia o principal argumento das forças do financismo em sua batalha permanente por uma SELIC elevada. Caso Lula quisesse também se valer de tal estratégia, bastaria orientar seus 2 ministros membros do CMN (Fazenda e Panejamento) a votarem nesta direção. Mas nada foi feito neste sentido.
A partir do início do presente ano ganhou espaço nos grandes meios de comunicação o debate a respeito da sucessão de Roberto Campos Neto na Presidência do BC. Ao invés de pautar uma discussão efetiva a respeito das alternativas de política monetária e também quanto às próprias funções do órgão regulador e fiscalizador do sistema bancário e financeiro, Haddad se limitou a fazer campanha aberta para que o nome escolhido pelo chefe para o cargo fosse o seu Secretário Executivo no MF. Lula chegou a considerar publicamente a possibilidade de outros nomes, com mais experiência.
(…) “Na hora que eu tiver que escolher o presidente do Banco Central vai ser uma pessoa madura, calejada, responsável, alguém que tenha respeito pelo cargo que exerce e alguém que não se submeta a pressões de mercado, e que faça aquilo que for de interesse de 213 milhões de brasileiros” (…)
E convenhamos que uma pessoa com apenas 42 anos de idade e que nunca havia assumido nenhuma função no governo federal antes deste mandato não se encaixa exatamente nas definições oferecidas por Lula na entrevista acima. Houve muita especulação a respeito de quem estaria dentre as opções, em especial no quesito maturidade. Um dos nomes sempre lembrados para o cargo era o do economista André Lara Resende. Porém, mais uma vez, Lula se curvou à sugestão de Haddad e indicou o nome de Gabriel Galípolo para ser sabatinado pelo Senado Federal. Trata-se de alguém com ampla aceitação junto aos representantes do sistema financeiro e que apenas tem endossado nos últimos tempos as propostas do pessoal da Faria Lima a respeito de suas futuras funções. Ou seja, com muita certeza teremos um presidente no BC com mandato de 4 anos que, ao contrário do que pretendia Lula, estará permanentemente submetido às pressões do mercado das finanças.
ACENOS E AGRADOS AO FINANCISMO LOCAL E GLOBAL
Ainda por influência de Haddad, Lula tem dado sinais efusivos e entusiasmados com pautas de agrado e interesse do financismo local e global. Esse foi o caso, por exemplo, do encontro fora da agenda oficial que o presidente brasileiro manteve em Nova Iorque com dirigentes das agências de risco. Na viagem tradicional para marcar o início dos trabalhos da assembleia geral da ONU em setembro, ele se reuniu com representantes das empresas Moody’s e da Standard & Poor’s. Não restam dúvidas de que tal gesto inusitado teve por intenção prestigiar a política de austeridade fiscal de seu governo e solicitar uma melhora nas notas atribuídas por tais empresas de rating aos papéis brasileiros no mercado financeiro.
Em outra jogada de grande envergadura, o Ministro da Fazenda convenceu Lula a receber em audiência os presidentes dos principais bancos privados do País. O encontro foi marcado por uma distribuição farta de elogios da banca ao trabalho da equipe econômica, em especial a Fernando Haddad. Ao conceder, de forma excepcional, um tratamento tão diferenciado ao povo do parasitismo financeiro, o Presidente da República decidiu por sinalizar para o conjunto da sociedade sua opção preferencial. Ao contrário dos tempos passados em que começou sua militância no movimento sindical, ao lado dos setores progressistas da Igreja Católica, agora a sua opção mais relevante não está sendo pelos pobres.
Ora, com esse balanço parcial de quase 2 anos deste terceiro mandato, o Ministro da Fazenda tem todas as razões para seguir apostando que está muito bem cotado e prestigiado junto ao Chefe do Palácio do Planalto. Até o presente momento, com exceção de um ou outro puxão de orelhas, Lula tem assegurado a Haddad o essencial das demandas apresentadas pelo colaborador. Esta suposta tranquilidade tem permitido ao ocupante da pasta da Fazenda caminhar com autonomia ainda maior em temas polêmicos e controversos.
HADDAD SE SENTE FORTALECIDO E SOLTA O VERBO
Em entrevista concedida com exclusividade a uma jornalista da Folha de São Paulo, tudo indica que Haddad tenha se sentido mais à vontade para avançar avaliações e pautas. As perguntas eram formuladas sem a preocupação de lhe criar nenhuma saia justa. Pelo contrário, as questões eram aquilo que se chama no jargão do voleibol de “levantadas de bola” generosas para ele apenas cortar. A tranquilidade era tanta que o ministro até se permitiu cometer alguns sincericídios. Esse foi o caso do arcabouço fiscal, quando ele reconheceu aquilo que seus críticos sempre alertamos, mas os defensores chapas brancas nunca aceitaram. Ele assumiu, por exemplo, que o NAF é, na verdade, um teto de gastos.
(…) Nós estabelecemos um teto de gastos determinando que a despesa não pode crescer acima de 70% da receita. E dentro do limite de 2,5%. (…)
Indagado a respeito do suposto problema com o crescimento da dívida pública, Haddad assume o lado da banca sem nenhuma dificuldade nem ponderação:
(…) A Faria Lima está, com razão, preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo considerar isso com seriedade. (…) O que a Faria Lima está apontando — na minha opinião, com algum exagero em relação ao preço dos ativos brasileiros — é que a dinâmica [dos gastos] para a frente é preocupante. Pode ter impacto na dívida [que a União tem que fazer para financiar seus gastos]. E o governo tem que tomar providências. A Fazenda está com isso na mesa, 100%. (…)
Ora, se agregarmos a tais afirmações todas as declarações oferecidas por integrantes do segundo escalão dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, fica mais do que claro que a estratégia é mesmo a de atacar os pisos constitucionais para saúde educação, além da desvinculação dos benefícios previdenciários em relação ao salário mínimo. A jornalista perguntou se o Ministro levava a Lula as suas preocupações. Haddad não vacilou um segundo sequer em exibir sua opção austericida e ainda colocou Lula a seu lado na edição das maldades. Na verdade, trata-se de um reconhecimento a posteriori da natureza conservadora e restritiva do NAF, além do fato por nós alertado desde o início de que havia uma bomba implícita no modelo que não tardaria muito tempo a explodir.
(…) Falo o seguinte: o mercado está entendendo que a soma das partes – a soma do salário mínimo, saúde, educação, BPC – é maior do que o todo. Ou seja, vai chegar uma hora em que esse limite de 2,5% [de crescimento da despesa em relação ao da receita] não vai ser respeitado. Ainda que a receita responda, o arcabouço fiscal não vai funcionar se a despesa não estiver limitada. Eu falo para o presidente exatamente o que estou falando para você. (…)
Enfim, esse é – em toda a sua plenitude – o risco Haddad. O fator de perigo que pode conduzir o Brasil a um ponto de não retorno às esperanças apontadas pelos constituintes na Carta aprovada em 1988. O Ministro da Fazenda está convencido da necessidade e da correção da pauta ortodoxa e liberaloide do povo da Faria Lima. Na verdade, trata-se de retomar a linha de continuidade dos sucessivos programas de ajustes e reformas estruturais que foram iniciados logo depois da promulgação da nova Constituição. Os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso lançaram as bases da privatização, da liberalização e da institucionalização da austeridade fiscal. Os governos Lula e Dilma pouco fizeram para reverter tal quadro. Depois do “golpeachment” de Roussef, Temer e Bolsonaro retomaram o tema da destruição do Estado e do desmonte das políticas públicas.
LULA PRECISA ISOLAR O RISCO HADDAD
Infelizmente, até o presente momento Lula 3.0 tampouco fez alguma coisa para reverter o quadro do desastre anterior. Pelo contrário, a depender da pauta conduzida pelo Ministro da Fazenda, estamos estendendo a ponte para a continuidade do elo perdido do neoliberalismo. A linha implementada atualmente é quase um copiar/colar do nada saudoso programa do PMDB, a Ponte para o Futuro. Um desastre que o Partido dos Trabalhadores e as forças progressistas sempre criticaram. Aí é que reside o risco Haddad. Finalizar o trabalho de retirar as bases estruturais que possam sustentar algum modelo de arremedo de Estado de Bem Estar social em nossas terras para o Brasil.
Na condição de Presidente da República, a última palavra sempre estará com Lula. Se ele continuar bancando o risco Haddad, o futuro lhe cobrará, em termos políticos e eleitorais, as consequências nefastas de tal opção equivocada.
* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal
Meu Deus!
Pode ser bom em Economia mas Paulo Kliass não entende nada de política. Querer que Haddad enfrente o inimigo de peito aberto, deixando os Bancos fazerem o jogo da Direita, sabotando o país é muita ingenuidade.
Haddad parece o Lula manobrando de forma inteligente, deixando a Economia numa boa! Foi assim também no Primeiro mandato de Lula, iniciado em 2003, levando à vitória na eleição seguinte e ainda emplacando Dilma.
Os bancos já estão fazendo o jogo da direita e sabotando o país, devido, precisamente, à política do Haddad. Mas, pela sua menção ao primeiro mandato do Lula, você é um fã do Palocci. Pelo jeito, quem não entende nada de política é você.