CARLOS LOPES (*)
Há um consenso – um consenso geral, se assim podemos dizer, um consenso nacional – de que temos um desequilibrado mental na Presidência da República. Até mesmo entre os seus apoiadores – aqueles tipos que vão para a Internet berrar que é de um doido mesmo que o país está precisando…
Mas o pior é que não trata de um “doido” comum, de um desequilibrado de boa paz.
O pior: é um desequilibrado periculoso. Não é qualquer desequilibrado que põe em risco a saúde e a vida de 210 milhões de pessoas, como Bolsonaro fez na questão do coronavírus. Literalmente:
“… no meu entender muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaga pelo mundo todo. Alguns da imprensa conseguiram fazer duma crise a queda do preço do petróleo, mas isso não é crise, obviamente problema da bolsa, isso acontece esporadicamente” (Bolsonaro, 11/3/2020, entrevista em em Miami).
Por aí foi nos dias seguintes – e até hoje – chamando a Covid-19 de “histeria”, “gripezinha”, e:
“O número de pessoas que morreram de H1N1 [gripe suína, em 2009] foi mais de 800 pessoas. A previsão é não chegar aí, a essa quantidade de óbitos, no tocante ao coronavírus” (Bolsonaro, 22/03/2020).
Ou:
“Vão morrer alguns pelo vírus? Sim, vão morrer. Se tiver um com deficiência, pegou no contrapé, eu lamento” (Bolsonaro, 21/03/2020).
Ou:
“Se eu me contaminei, tá certo? Olha, isso é responsabilidade minha, ninguém tem nada a ver com isso” (Bolsonaro, 16/03/2020).
Além de ter o direito privado de se contaminar, Bolsonaro tem também, acha ele, o direito público de contaminar os outros:
“Se eu resolvi apertar a mão do povo, é um direito meu” (Bolsonaro, 16/03/2020).
Somente para maior clareza, se for possível: Bolsonaro está se referindo à maior epidemia que a Humanidade já enfrentou nos últimos 102 anos, desde a gripe “espanhola” (1918-1919).
Um amigo, conhecido por sua prudência e bom senso, confiando em meus conhecimentos psiquiátricos, perguntou ao telefone:
“O que é transtorno de personalidade limítrofe?”
Na televisão, disse ele, um apresentador falou, como se fosse algo evidente, que Bolsonaro tinha “transtorno de personalidade limítrofe”.
Em suma, passamos a uma fase onde se discute o diagnóstico de Bolsonaro – e não a sua incapacidade para exercer a Presidência. Esta passou a ser indiscutível. E com toda razão.
Já voltaremos à pergunta do meu amigo. Verdade é que ninguém precisa ser psiquiatra para identificar um desequilibrado. Sobretudo um do tipo de Bolsonaro. Pode demorar um pouco, mas o sujeito acaba se revelando até para aqueles de excessiva boa fé. Nesse caso, até que demorou pouco.
Mas, se qualquer um, em princípio, pode identificar um desequilibrado, realmente, são os psiquiatras que estão encarregados, pela sociedade, de identificar os diagnósticos desses desequilibrados.
Portanto, vamos à essa tarefa.
QUIMERA
Se Bolsonaro fosse presidente de um time de futebol de várzea – com todo respeito aos futebolistas de várzea – não haveria problemas nessas declarações, exceto a consequente má fama por ignorante, estúpido e irresponsável. Seria apenas necessário que ninguém se aproximasse dessa besta. Ficaria com fama de imbecil – aliás, justa – e talvez pegasse a Covid-19, o que também seria muito justo.
Afinal, tem gente que até hoje acredita que Lampião não morreu e foi morar em Madureira, na casa vizinha à do Elvis Presley, e nem por isso são um perigo para a população e para o país.
Mas Bolsonaro é presidente da República.
Bolsonaro, por função, é responsável pela defesa do país e do povo, segundo o próprio juramento, realizado na posse, de “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.
Bem, dirá aquele leitor que gosta sempre de apresentar alguma divergência, nem que seja apenas para “animar o debate”:
Há uma razoável cota de desequilibrados mentais em nossa sociedade. Nenhum deles pode exercer a Presidência?
Depende do desequilíbrio, leitor.
Há mais de 40 anos, lá por 1977, no IPUB (a sigla, que se manteve, quer dizer Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil, embora a Universidade seja, hoje, a UFRJ), um professor falava das personalidades anormais:
“Psicopata é aquele que faz sofrer a sociedade” – e disse o nome do autor dessa definição, o psiquiatra alemão Kurt Schneider, em 1923.
A definição completa, no livro de Schneider, é mais ampla (“aqueles que sofrem com sua anormalidade ou que [devido a essa anormalidade] fazem sofrer a sociedade”), mas não é por acaso que somente me lembro, daquele dia, da segunda parte.
Pois, sofrer com uma “anormalidade” é coisa que parece corriqueira para os membros da espécie humana.
O que não é nada corriqueiro é “fazer sofrer a sociedade”. Ou seja, fazer os outros sofrerem, fazer o próximo – para usar um termo evangélico – sofrer, em outros termos, agredir a própria base da existência humana, a sociabilidade.
Portanto, aí está a resposta ao leitor com vocação para Advogado do Diabo: o presidente da República não pode ser alguém que “faz sofrer a sociedade”, alguém cujo único objetivo é, precisamente, fazer a sociedade – o país, o povo – sofrer.
Para esse tipo de desequilibrado, governo é o poder absoluto para oprimir, para o sadismo, sem consideração para com ninguém – exceto para com alguns tentáculos de si mesmo, estilo Eduardo ou Carlos Bolsonaro, ou nem isso.
Se não deixarem esse elemento fazer o que quiser – e já mencionamos o que quer – ele acha que o estão impedindo de governar.
Esse tipo de desequilibrado acha que deve ter poder absoluto até para matar – aliás, mandar matar – torturar e despejar baldes de sangue (dos outros, é claro) sobre o país – sem respeito à lei alguma, à instituição alguma, porque as leis e as instituições condensam, exatamente, as pessoas e as relações entre elas. Isto é, são condensações da sociedade, daquilo que chamamos civilização, daquilo que nos permitiu sobreviver, ao contrário dos Neanderthais, que foram extintos.
Bolsonaro sempre esteve imerso nessa quimera sinistra. Apesar de mentiroso crônico, se algo falou de verdade foi a sua profissão de fé na tortura e no assassinato.
É isso o que se chama “fazer sofrer a sociedade”.
A única surpresa, no momento atual, é que ele tenha tentado fazer a sociedade sofrer através do coronavírus, através de deixar o país sem defesa, através de não fazer nada contra o coronavírus.
Mas, aí, a surpresa é o próprio coronavírus e sua epidemia. Quanto a Bolsonaro, é aquela penúria espiritual que alguns grandes psiquiatras do passado apontaram nesse tipo de indivíduo. Por exemplo: existe dúvida de que Bolsonaro quer fazer com a Câmara, com o Senado e com o STF a mesma coisa que fez com o COAF, quando este detectou as movimentações ilícitas de seu filho, Flávio, de seu capanga, Fabrício Queiroz, e dele mesmo, através da conta de sua mulher?
LIMÍTROFE
O impressionante, realmente, é como todos falam que temos um desequilibrado mental na Presidência: nas TVs, nas rádios, nos jornais, na Internet – e só não está sendo assunto nas esquinas e botequins, porque o coronavírus não está permitindo muitas conversas presenciais.
Nem Collor de Mello motivou essa quase unanimidade (que somente não é unanimidade porque Bolsonaro – e alguns do seu círculo íntimo, quer dizer, familiar, assim como alguns cupinchas – não se deve achar doido, aliás, como todo doido).
E, leitores, lembremos: Collor não foi retirado da Presidência porque era maluco ou psicopata, mas porque era corrupto.
É fácil perceber por que o apresentador da TV, a que nos referimos – ou de quem ele ouviu tal coisa – chegou à conclusão de que Bolsonaro é portador de Transtorno de Personalidade Limítrofe.
Porque a personalidade “limítrofe” ou “borderline” (o quadro foi descrito por psiquiatras dos EUA) caracteriza-se pela impulsividade – ou, para ser mais preciso, a impulsividade é a característica que aparece mais, na personalidade limítrofe.
Nas palavras da Bíblia dos psiquiatras norte-americanos:
“[O Transtorno de Personalidade Limítrofe é] um padrão generalizado de instabilidade dos relacionamentos interpessoais, auto-imagem e afetos, e impulsividade acentuada” (cf. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders V, APA, Arlington, VA, 2013, p. 663).
Parece, realmente, a cara de Bolsonaro.
Assim como outros critérios do mesmo manual, para o mesmo quadro:
- “esforços frenéticos para evitar um abandono real ou imaginário”;
- “um padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos, caracterizado por alternância entre extremos de idealização e desvalorização”;
- “perturbação da identidade: auto-imagem acentuada e persistentemente instável”;
- “instabilidade afetiva devido a uma acentuada reatividade do humor”;
- “raiva inadequada e intensa ou dificuldade para controlar a raiva”;
- “ideação paranoide transitória relacionada ao estresse” (idem, ibidem).
Não é preciso ser psiquiatra para perceber semelhanças com a conduta de Bolsonaro.
OUTRO TRANSTORNO
Entretanto, um diagnóstico somente pode ser fechado quando se mostra, também, sua diferença em relação a outros quadros psiquiátricos.
E, nesse caso, existe outro “transtorno de personalidade” que nos parece mais próximo dos atos e palavras de Bolsonaro.
Esse “transtorno” é definido como:
“Um padrão generalizado de desrespeito e violação dos direitos de outras pessoas” (idem, p. 659).
São necessários três dos seguintes critérios, para fechar o diagnóstico:
- “fracasso em cumprir normas sociais que dizem respeito à lei;
- “falsidade, verificada por mentiras repetidas, uso de pseudônimos ou enganar outras pessoas para lucro ou prazer pessoal;
- “impulsividade ou fracasso de fazer planos à frente;
- “irritabilidade e agressividade, como indicado por repetidas brigas ou agressões físicas;
- “imprudência pela sua segurança ou de outros;
- “irresponsabilidade continuada, como indicado por repetidas falhas em manter um comportamento consistente no trabalho ou em honrar obrigações financeiras;
- “ausência de remorso, indicado por ser indiferente ou racionalizar ter ferido, maltratado ou roubado outras pessoas.”
O nome desse “transtorno”, leitor, é Transtorno de Personalidade Antissocial (“Antisocial Personality Disorder”).
O que é mais verídico também de outro ponto de vista: os pacientes com “Transtorno de Personalidade Limítrofe” são, antes de tudo, sofredores que, geralmente, ferem a si próprios, têm a si próprios como vítimas.
Já os que apresentam “Transtorno de Personalidade Antissocial” são, antes de tudo, causadores de sofrimento em outras pessoas.
Aliás, é isso que define o quadro (“Um padrão generalizado de desrespeito e violação dos direitos de outras pessoas”).
Existe algo mais incompatível com a Presidência da República?
(*) Médico, psiquiatra, turma de 1977 da Faculdade de Medicina da UFRJ, especialista pela Associação Brasileira de Psiquiatria.
Meus amigos e amigas
Como leigo posso dizer que a fundamentação é convincente.
Depois da fala do Bolsonaro as 20 e 30 horas em cadeia nacional de rádio e TV reforçou o crédito ao médico.
O caso sério. Problema mental e faz tempo