
O mais recente livro de Paulo Nogueira Batista Jr., “O Brasil Não Cabe No Quintal de Ninguém” (Leya, 2019), é interessante sob vários aspectos, inclusive quando não concordamos com ele – mas deixaremos as discordâncias para outro artigo.
Havia, antigamente, nos cursos de francês, uma frase, acho que de Voltaire (mas a memória não garante), que os estudantes eram sempre obrigados a traduzir, algo como “nenhum livro é descartável, se ensina alguma coisa”.
O livro de Paulo Nogueira Batista Jr. está muito acima desse limite mínimo. Comecemos, então, por aquilo que ele ensina – pelo menos a nós, pois não pretendemos que a nossa ignorância seja um padrão universal.
Por exemplo: segundo o ministro Paulo Guedes, a grande aspiração do Brasil (ou do governo Bolsonaro) é entrar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Disse Guedes que entrar na OCDE é entrar “para a 1ª divisão”.
Portanto, devemos ser um país da 2ª ou da 3ª divisão, se tanto. Provavelmente, devido ao número de negros, mulatos (e mulatas) que vivem querendo uma mordomia como empregadas (ou empregados) domésticas…
Já Bolsonaro, afirmou que, se dependesse somente de Trump, “eu já estava lá”. O “eu”, nesse caso, é o Brasil, que, para Bolsonaro, é um quintal da família Bolsonaro (com licença a Paulo Nogueira Batista Jr. pela paráfrase do título de seu livro).
É verdade que o mesmo Trump, logo depois da declaração de Bolsonaro, vetou a entrada do Brasil na OCDE, para apoiar a Argentina (de Macri) e a Romênia (v. HP 10/10/2019, Bolsonaro bajulou, mas Trump barra entrada do Brasil na OCDE).
Porém, na semana passada (13/02), durante um café da manhã no Itamaraty, o beato Salu que Bolsonaro colocou na cadeira de Rio Branco quase teve uma reação altamente inconveniente em público, ao falar da OCDE e da entrada do Brasil nessa organização (para que os leitores tenham uma ideia, o sujeito repetiu oito vezes a sigla “OCDE”, em um discurso de menos de cinco minutos, sempre como se estivesse se referindo ao Éden antes da expulsão de Adão e Eva). Diz ele que agora vai…
Voltemos, então, ao livro de Paulo Nogueira Batista Jr.
Vamos apenas reproduzir alguns trechos, com alguns destaques:
“Sob o Estatuto ou Convênio Constitutivo do FMI, os Articles of Agreement, os países-membros não têm nenhuma obrigação de liberalizar a conta de capital. Do ponto de vista jurídico, eles gozam de total liberdade para regular os movimentos de capitais. Isso não se aplica a países que abriram mão dessa liberdade, parcial ou totalmente, por serem membros da OCDE, da zona do euro ou por terem assinado acordos bilaterais de investimento ou de livre comércio com os Estados Unidos. Excetuados esses casos, os países-membros são completamente livres, sob o Artigo VI do Convênio Constitutivo, para adotar controles de capital. Esse artigo postula que os ‘membros podem exercer os controles que forem necessários para regular os movimentos internacionais de capital‘” (Paulo Nogueira Batista Jr., “O Brasil Não Cabe No Quintal de Ninguém”, p. 50, grifo nosso).
Essa é uma observação de passagem, pois, no texto de que retiramos a citação, o assunto não é a OCDE, mas a estrutura e o funcionamento do FMI, do qual Paulo Nogueira Batista Jr. foi diretor, entre 2007 e 2015.
Mais à frente, no livro (a citação é longa, leitor, mas vale a pena lê-la):
“… convém fazer uma observação, que se tornou particularmente relevante em 2019, em razão das negociações entre os governos Trump e Bolsonaro. Não interessa ao Brasil abrir mão do tratamento especial e diferenciado de que usufruem os países que se autodeclaram ‘em desenvolvimento’ na OMC [Organização Mundial do Comércio]. Não é por acaso que os emergentes, entre eles China e Índia, resistem à proposta dos Estados Unidos de que esse tratamento se aplique apenas a países menos desenvolvidos, com exclusão dos emergentes. Abdicar desse regime especial resultaria em restringir ainda mais o grau de liberdade para aplicar instrumentos extracambiais, além de retirar do nosso alcance algumas outras prerrogativas jurídicas ou negociais na OMC.
“Pior ainda é fazer o que foi esboçado pelo governo Bolsonaro em resposta a pressões dos Estados Unidos – abandonar o tratamento especial e diferenciado em troca do presente de grego da entrada do país na OCDE, entidade dominada pelos principais países desenvolvidos. São muito abrangentes e numerosas as obrigações e normas, elaboradas pelos Estados Unidos e outros países avançados, e impostas aos países-membros da OCDE. Essas obrigações são compatíveis com o nível de desenvolvimento e os interesses estratégicos desses países mais avançados, no seu atual nível de desenvolvimento, mas conflitam com prioridades e necessidades de países em estágio diferente de desenvolvimento econômico e social. A sua adoção pelo Brasil acabaria de eliminar grande parte da autonomia de que ainda dispomos para conduzir políticas públicas em diferentes áreas.
“Não é por acaso que nenhum outro país dos BRICS está pleiteando ingresso nessa organização. Admitindo-se, para efeito de raciocínio, que nos interessasse aderir à OCDE por outras razões, reais ou imaginadas, permanece o fato de que a abdicação do tratamento especial e diferenciado na OMC não foi exigida de nenhum dos outros países em desenvolvimento que já são membros da OCDE ou que estão na fila de entrada.
“A entrada na OCDE bloquearia, ou muito dificultaria, a adoção de medidas para administrar a conta de capitais do balanço de pagamentos. Nada de comparável existe no arcabouço jurídico do FMI (…). Só isso já é razão para não buscar o ingresso na OCDE. A administração da conta de capitais é indispensável, tanto no que se refere a certos tipos de entradas como a certos tipos de saídas de capital” (cf. Paulo Nogueira Batista Jr., op. cit., pp. 339-340, grifos nossos).
Bem, leitores, é para isso que Guedes, Bolsonaro e o beato Salu estão em campanha: aumentar os grilhões, econômicos e políticos, do Brasil. Para isso serve a entrada do país na OCDE.
Para terminar, uma última (claro) citação do livro de Paulo Nogueira Batista Jr:
“O exemplo de Getúlio Vargas talvez seja relevante. Na segunda metade das décadas de 1930 e no início dos anos 1940, quando os EUA se defrontavam com a ameaça de uma Alemanha em ascensão, Vargas não se comprometeu com nenhum dos dois. Acabou entrando do lado americano na Segunda Guerra, mas obteve importantes vantagens em troca, inclusive o apoio dos EUA à implantação de Volta Redonda.
“Não deveria a postura brasileira ser semelhante agora? Ou seja: não caberia evitar precipitações e verificar, caso a caso, quem oferece melhores condições em termos de parcerias econômicas e políticas? Isso inclui, por exemplo, não assumir compromissos com a OCDE, fugindo da linha iniciada pelo governo Temer. A OCDE, recorde-se, é uma organização controlada pelos EUA e outros países desenvolvidos. Estabelece exigências abrangentes, que limitam severamente as políticas, de desenvolvimento e defesa da economia nacional. Em Davos, Bolsonaro afirmou que buscará incorporar ‘as melhores práticas internacionais, como aquelas que são adotadas e promovidas pela OCDE’. O medíocre presidente do Banco Central do governo Temer, Ilan Goldfajn, que permanece temporariamente no cargo, foi mais longe e especificou que o Brasil está comprometido em aderir ao acordo de liberalização dos fluxos de capital da OCDE. Isso retira das mãos do governo instrumentos potencialmente importantes de defesa da economia nacional contra choques financeiros externos” (Paulo Nogueira Batista Jr., “O Brasil Não Cabe No Quintal de Ninguém”, p. 325, grifo nosso).
A questão, evidentemente, é que o governo Bolsonaro não quer – e não tem como objetivo – defender a economia nacional, nem a Nação.
Mas isso, como diria Paulo Nogueira Batista Jr., é uma conclusão digna do Conselheiro Acácio.
CARLOS LOPES
P.S.: Alguns leitores mais jovens podem estranhar o título deste artigo. Certamente não se trata dos gregos atuais, mas daqueles que presentearam aos troianos com um magnífico – e, dizem, gigantesco – cavalo de madeira…