
A condenação de Paulo Vieira de Souza, na quinta-feira, pela juíza Maria Isabel do Prado, da 5ª Vara Criminal Federal de São Paulo, teve, entre outros efeitos salutares, o de fazer Gilmar Mendes desistir das “diligências” que queria impor, no processo em que Vieira de Souza responde pelo desvio de recursos para reassentamento dos desalojados no Rodoanel Mário Covas (v. Lava Jato denuncia: decisão de Gilmar Mendes livra Paulo Preto da Justiça).
A decisão de Mendes impedia a juíza Maria Isabel do Prado de dar a sua sentença nesse caso – e colocava em risco de prescrição o processo, quando, então, Vieira de Souza poderia sair livre, sem responder à Justiça por esse crime.
No entanto, a juíza, em outro processo, condenou Paulo Vieira de Souza, conhecido como “Paulo Preto”, a 27 anos (sete anos e oito dias em regime fechado e 20 anos em regime semiaberto e aberto) por fraudar licitações. Sua sentença é uma longa (e, cabe acrescentar, tão adequada quanto interessante) discussão sobre a relação entre o crime, o criminoso, e a pena que ele merece.
Ficaram provadas as fraudes de Vieira de Souza, quando diretor da DERSA – a estatal rodoviária paulista -, em prol de um cartel de empreiteiras, nas seguintes obras, além do trecho sul do Rodoanel:
1) Avenida Roberto Marinho;
2) Avenida Chucri Zaidan;
3) Avenida Cruzeiro do Sul;
4) Avenida Sena Madureira;
5) Córrego Ponte Baixa.
IMENSURÁVEL
“… o prejuízo trazido pela conduta do acusado Paulo Vieira de Souza”, diz a juíza em sua sentença, “tomou proporções avassaladoras, com provas cabais de locupletamento ilícito a custas do erário público.
“Sobreleva notar a infinidade de creches, escolas, hospitais e outras obras públicas que poderiam ter sido realizadas em benefício da população (cf. Sentença, AP nº. 0011507-87.2018.403.6181, p. 207).
“De acordo com as provas produzidas nos autos, há informações concretas acerca da abastada situação econômica do acusado, que locupletou-se ilicitamente de vultosa quantia pertencente aos cofres públicos, de modo que possui capacidade financeira privilegiada para arcar com os vultosos prejuízos por ele causados ao erário” (idem, p. 229).
“… a personalidade do réu Paulo Vieira de Souza é voltada para a prática criminosa, afastando-se do grau normal de reprovabilidade, (…) porque revelou, com sua conduta, um perfil psicológico que se deixa levar pela ganância do dinheiro fácil.
“Constata-se, desse modo, que a personalidade do acusado distingue-se das pessoas que, por circunstâncias isoladas, cometem um crime com claros indícios de que não voltariam a fazê-lo” (cf. idem, p. 153).
NA SUÍÇA
Nota a juíza que “quando licitações são direcionadas mediante a formação de cartéis, frustra-se o caráter competitivo imposto pela lei, e viola-se totalmente a impessoalidade do certame, gerando descrédito e desmoralização no bom andamento da administração pública, que não deve favorecer a alguns, mas atender aos interesses primários da coletividade”.
Em 2010, quando o então candidato a presidente, e ex-governador de São Paulo, José Serra, disse que não o conhecia (“Eu não sei quem é o Paulo Preto. Nunca ouvi falar. Ele foi um factoide criado para que vocês fiquem perguntando”), Paulo Vieira de Souza concedeu uma entrevista, em que dizia:
“Eu só fiz o bem para esse pessoal. Ninguém nesse governo deu condições das empresas apoiarem com mais recursos politicamente do que eu.
“Não se larga um líder ferido na estrada a troco de nada. Não cometam esse erro”.
Paulo Vieira de Souza foi indicado, em 2007, para diretor de Engenharia da DERSA pelo então secretário da Casa Civil do governo Serra, Aloysio Nunes Ferreira. Até então ele fora diretor de Relações Institucionais do órgão.
Depois de preso duas vezes e solto duas vezes por Gilmar Mendes, do STF, Paulo Preto foi, outra vez, preso, no último dia 19, por mandado da juíza Gabriela Hardt, da 13ª Vara Federal de Curitiba, em razão de contas na Suíça, por onde transitaram, ao menos, R$ 100 milhões.
Vinculada a uma delas, abastecida pela Odebrecht, as autoridades suíças revelaram que houve um pedido de cartão de crédito para Aloysio Nunes Ferreira (v. 60ª fase da Lava Jato: cartão da conta de Paulo Preto na Suíça derruba Aloysio Nunes).
ABASTADO
“Da análise dos autos”, considera a juíza Maria Isabel do Prado, “tornam-se claros os motivos do acusado Paulo Vieira de Souza para o cometimento do crime: a cupidez pela obtenção do dinheiro público, motivada pela ganância, e a promessa de dinheiro fácil, propiciada pelas facilidades do cargo”.
E, ao fixar, além da pena de detenção, o pagamento de 2002 dias-multa, “aumentados ao triplo”, com cada dia-multa fixado em cinco salários mínimos da época em que ocorreram os crimes, diz a juíza:
“De acordo com as provas produzidas nos autos, há informações concretas acerca da abastada situação econômica do acusado, que locupletou-se ilicitamente de vultosa quantia pertencente aos cofres públicos, de modo que possui capacidade financeira privilegiada para arcar com os vultosos prejuízos por ele causados ao erário” (p. 229).
RISCO
A condenação, no entanto, não é por corrupção, mas por fraude à licitações e crime contra a ordem econômica – qual seja, participar na formação de um cartel.
A corrupção é motivo de outro processo.
Quem compunha o cartel de empreiteiras que “Paulo Preto” operava?
“… a partir de 2004, funcionários da DERSA se ajustaram com representantes das empresas Andrade Gutierrez, Camargo Correa, Odebrecht, Queiroz Galvão e OAS, passando para estes informações privilegiadas sobre a futura obra do Trecho Sul do Rodoanel Mário Covas.
“Tal obra seria dividida em 5 (cinco) lotes, com valor aproximado de 3 (três) bilhões de reais, contando com recursos da União (DNIT), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Estado de São Paulo” (cf. Sentença, p. 82).
O leitor já ouviu falar disso, certamente – o mesmo cartel que operava sob o PT na Petrobrás, em São Paulo operava sob o PSDB no Rodoanel e no Sistema Viário (a carreira de crimes de “Paulo Preto” na DERSA se estendeu de 2007 a 2012).
Em São Paulo, eram as próprias empresas do cartel que elaboravam os editais de licitação.
Em 2004, houve uma reunião, “no canteiro de obras da Camargo Correa, onde hoje é O Parque do Povo, em São Paulo”, em que compareceram representantes da Andrade Gutierrez, Camargo Correa, Odebrecht, OAS e Queiroz Galvão.
“Ali, os representantes da Andrade Gutierrez informaram que foram procurados pelos agentes da DERSA, com a solicitação de se formar um grupo de empresas para estudar quais técnicas de construção necessárias para viabilizar o Trecho Sul do Rodoanel, obra que passaria em longos trechos sobre represas e áreas ambientalmente sensíveis.
“Nessa reunião, apresentaram documentos e informações sigilosas da DERSA (entre elas, elementos de projetos, desenhos técnicos iniciais, locais mais precisos onde a obra passaria e as dificuldades de engenharia antevistas).
“Assim, de junho de 2004 a maio de 2005, seguiram-se diversas reuniões dos representantes das ‘cinco líderes’ ou “G5” (como se auto-denominariam posteriormente)” (idem, pp. 82-83).
Essas cinco empresas chamaram outras cinco para o cartel, devido ao risco de que o acordo para fraudar as licitações fosse quebrado pela entrada de “outsiders”: assim, foram incluídas a CR Almeida, a Galvão Engenharia, a Serveng, a Constran e a Mendes JR, que formaram consórcios com as empresas originais.
ESCRITÓRIO
Aqui temos um exemplo da completa impunidade com que essas empresas se sentiam contempladas – ou, melhor, protegidas:
“A aliança entre os conluiados era tão sólida que chegaram a montar um escritório coletivo, em uma sala na sede da Serveng, onde um ‘grupo de técnicos’ das dez empresas (…) reuniram-se diversas vezes para estudar a futura obra, solicitando orçamentos, produzindo documentos e estudos em conjunto. Os custos desse escritório eram repartidos entre as dez empresas beneficiadas, como comprova o documento abaixo:


Porém, a cartelização espalhou-se pelas demais obras de São Paulo, além do Rodoanel:
“Os integrantes das dez empresas ajustadas temiam que o acerto de ratear os cinco lotes entre si não tivesse sucesso, caso as novas habilitadas não integrassem o conluio. Assim, decidiram oferecer benefícios diversos a elas, para que se ajustassem com o grupo das dez, oferecendo apenas propostas de cobertura ou desistindo da licitação, de modo a garantir a vitória para as 10 empresas”.
As vantagens oferecidas eram em outras obras, fora do trecho sul do Rodoanel:
“Desse modo, o ajuste de mercado passou a gerar impactos em outras obras, para além do próprio Trecho Sul do Rodoanel. Dessas novas empresas, Carioca, Cetenco, Construbase, EIT, SA Paulista e Sobrenco participaram, por exemplo, da divisão de mercado no Sistema Viário”.
Observa a juíza Maria Isabel do Prado:
“Ainda não foram identificadas todas as obras em que foram beneficiadas as demais habilitadas.
“Os benefícios de subcontratação no próprio Trecho Sul do Rodoanel ocorreram posteriormente à licitação, perpetuando-se por toda a obra, até seu término, em 2010.
“Os benefícios concedidos nas obras do Sistema Viário também se perpetuaram até o final da construção delas” (p. 89).
AMOR E BRIGA
Nessa altura, negociando “propostas de cobertura” (ou seja, propostas falsas, apenas para simular concorrência), entraram alguns personagens já conhecidos – e, hoje, já condenados:
“A Odebrecht e a OAS, especificamente, trataram em conjunto com a Construbase e a Carioca.
“Após várias reuniões, no dia 11 de abril de 2006, com a presença de Benedicto Barbosa da Silva Junior (Odebrecht), José Aldemário Pinheiro Filho (OAS), Vanderlei Di Natale (Construbase) e Ricardo Pernambuco Júnior (Carioca), ficou acordado que a Odebrecht subcontrataria a Construbase e a OAS subcontrataria a Carioca, e em troca elas apresentariam proposta de cobertura”.
O mesmo aconteceu com as outras empresas que participaram do esquema.
O documento mais interessante de toda essa conspiração para assaltar os cofres do Estado foi produzido pela Odebrecht, com estimativa de dois cenários: um denominado “Amor” (caso em que os acertos fossem bem sucedidos em açambarcar as obras); outro denominado “Briga”, para a hipótese oposta:

A juíza nota que a diferença de preços entre a primeira planilha (“amor”) e a segunda (“briga”) é de 50 a 100 milhões por lote.
Ao todo, o sobrepreço atingia R$ 303 milhões, 441 mil, 488 reais e 99 centavos, assim distribuído:

Mas o sobrepreço acima é apenas a diferença entre as duas tabelas da Odebrecht.
Dificilmente a tabela sem o acerto de cartel (“briga”) não embutiria já um sobrepreço.
Vejamos, então, o resultado da licitação:

As cifras são muito mais próximas da tabela com acerto entre as empresas (“amor”). Mas não é só isso: os preços dos consórcios que não ganharam são notavelmente pertos, sem levar em consideração o preço real (nem mesmo os preços da tabela “briga”). São, em tudo, “preços de cobertura”, mera simulação de concorrência.
A juíza frisa, a esse respeito:
“Como já ressaltado, os efeitos desses ajustes perpetuaram-se no tempo, enquanto foram concedidos outros benefícios pelas dez vencedoras às empresas que ingressaram no ajuste durante a construção da obra”.
É nesse momento, com um novo governo do PSDB em São Paulo, que Paulo Vieira de Souza, o “Paulo Preto”, assume a berlinda.
SISTEMA VIÁRIO
No dia 2 de janeiro de 2007 – isto é, no dia seguinte à posse – o novo governador, José Serra, publicou o Decreto Estadual nº 51.473, determinando a renegociação dos contratos do Estado.
Na DERSA, essa atribuição ficou com Paulo Vieira de Souza, logo promovido de diretor de Relações Institucionais a diretor de Engenharia, por indicação de Aloysio Nunes Ferreira.
Seguindo o relato da sentença:
“Paulo Vieira de Souza realizou reuniões com os cinco consórcios do Rodoanel, para tais fins. Tais reuniões ocorreram em hotéis próximos à DERSA, e não em sua sede.
“Em uma delas, Paulo Vieira de Souza informou que a DERSA seria responsável pela licitação das várias obras municipais, do que seria chamado Programa de Desenvolvimento do Sistema Viário Estratégico Metropolitano de São Paulo (Sistema Viário) e deixou claro que ‘se as empresas não tivessem boa vontade na renegociação dos contratos, ele (Paulo) não teria boa vontade com as empresas no novo pacote de obras’.”
Vieira de Souza era um operador muito impudente (e, aliás, também muito imprudente). A impressão que se tem é que ele se achava o centro do cartel – e, talvez, da administração paulista – e não uma peça corrupta do esquema, como são os operadores de propina.
Por exemplo:
“Em reunião com Roberto Cumplido (Odebrecht) e Carlos Armando Guedes Paschoal (Odebrecht), Paulo Vieira de Souza indagou quais obras do Sistema Viário a Odebrecht teria interesse, e eles responderam que na Av. Roberto Marinho. E Paulo Vieira de Souza disse algo como: ‘O mercado é um problema. Eu o administro. Eu tomo conta do mercado’.”
AJUSTE DE MERCADO
“No primeiro semestre de 2008, Paulo Vieira de Souza convocou uma reunião coletiva com representantes das onze construtoras do Trecho Sul do Rodoanel e representantes de algumas outras construtoras, numa sala de conferências do Hotel Meliá Jardim Europa (localizado próximo à DERSA, na Rua João Cachoeira, no Itaim Bibi).
“Ali apresentou com mais detalhes o conjunto de obras do Sistema Viário e afirmou que continuaria as tratativas individualmente com os representantes das empresas presentes, garantindo que todos que quisessem participar do ajuste de mercado seriam atendidos.
“Para que a divisão conluiada funcionasse, parte das empresas nem mesmo fazia oferta nas diversas licitações, já que há um custo para a empresa na habilitação e elaboração de propostas.
“Como estavam combinadas com a distribuição das obras e satisfeitas pela distribuição organizada, apenas algumas conluiadas apresentavam propostas de cobertura em cada licitação (seja apenas na fase de habilitação como na fase comercial), para dar aparência de disputa legitima às licitações, ausentando-se as demais da concorrência.
“Já as empresas que não faziam parte do cartel foram inabilitadas por atuação de agentes públicos.
“Nesse sentido, a Construtora Gomes Lourenço Ltda. Foi inabilitada nos dez lotes em que concorreu (na Av. Roberto Marinho, na Av. Chucri Zaidan, na Marginal Tietê, na Av. Jacu-Pêssego, na Av. Cruzeiro do Sul); o consórcio composto pelas empresas CCI Construções S/A, Empresa Tejofran de Saneamento e Serviços Ltda. foi inabilitado nos quatro lotes em que concorreu (na Marginal Tietê e Av. Jacu-Pêssego); o consórcio das empresas MAC Engenharia Ltda. e SBS Engenharia e Construções Ltda. foi inabilitado nos três lotes em que concorreu (da Av. Jacu-Pêssego)”.
ESTOURO
As atividades de Paulo Vieira de Souza apareceram, primeiro, em 2009, em uma investigação da Polícia Civil de São Paulo (GAECO – Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado – Inquérito Civil Nº 1241/2009).
Depois, a investigação foi assumida pelo Ministério Público Federal (PIC 1.34.001.001142-2018-88).
A denúncia que resultou na condenação de quinta-feira tinha 33 acusados (v. denúncia do MPF), agora divididos em três processos.
Até o momento, “Paulo Preto” tem negado os seus delitos – mesmo com todas as provas documentais e testemunhais – e, por consequência, não revelou quem se beneficiou de suas atividades ilícitas.
Seu último refúgio sempre foi Gilmar Mendes.
O problema é que esse refúgio agora, ao que parece, tornou-se inviável.
No mesmo momento em que apareceram os documentos, obtidos pela força-tarefa da Lava Jato de Curitiba, de que por suas contas na Suíça passaram R$ 100 milhões.
CARLOS LOPES