Declaração sobre os laboratórios que fabricam o imunizante produziu novo efeito negativo para o início da vacinação no país
Jair Bolsonaro questionou nesta segunda-feira (28) os laboratórios que desenvolvem imunizantes contra a Covid-19 e disse que deveriam estar interessados em vender seus produtos ao Brasil.
“O Brasil tem 210 milhões de habitantes, então um mercado de consumidor de qualquer coisa enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para gente? Por que eles não apresentam documentação [de certificação] na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]?”, questionou o presidente durante conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada, em Brasília.
“Pessoal diz que eu tenho que ir atrás. Não, se eu sou vendedor, eu quero apresentar”, acrescentou. As declarações de Bolsonaro foram transmitidas por um site bolsonarista.
Segundo a Anvisa, não houve pedido de autorização emergencial ou registro por parte de nenhuma empresa. Enquanto Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e países da União Europeia, assim como Chile, Costa Rica e Argentina, na América do Sul, já iniciaram campanhas de vacinação, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, tem dito que no Brasil a imunização deve começar em fevereiro, sendo que a previsão do governo Bolsonaro é de receber ao menos 150 milhões de doses de vacina no primeiro semestre do próximo ano, sem revelar, no entanto, qualquer plano concreto que garanta essa previsão.
A primeira reação às novas e destrambelhadas declarações de Bolsonaro foi da Pfizer, grande laboratório multinacional norte-americano, informando que não solicitará o uso emergencial da vacina no Brasil, pois “as condições (da Anvisa) requerem análises específicas para o Brasil, o que leva mais tempo de preparação”.
A farmacêutica desenvolveu a vacina em conjunto com a BioNTech, no Brasil. Em nota divulgada nesta segunda-feira (28), o laboratório afirmou que se reuniu com representantes da Anvisa para esclarecer as dúvidas sobre o processo, mas que encontrou obstáculos criados pelo protocolo da própria agência – o chamado Guia de Submissão para Uso Emergencial.
O comunicado foi uma resposta às declarações de Bolsonaro cobrando dos fabricantes de vacinas contra covid-19 que apresentem os pedidos de registro dos imunizantes à Anvisa. “As condições estabelecidas pela agência requerem análises específicas para o Brasil, o que leva mais tempo de preparação”, explicou a Pfizer.
Em clara crítica à burocracia criada pela Anvisa para aprovar o imunizante de forma emergencial, a Pfizer lembra, ainda, que “outras agências regulatórias que possuem o processo de uso emergencial analisam os dados dos estudos em sua totalidade, sem pedir um recorte para avaliação de populações específicas”.
O laboratório destaca que outra exigência é “a submissão de uso emergencial também pede detalhes do quantitativo de doses e cronograma que será utilizado no país, pontos que só poderão ser definidos na celebração do contrato definitivo”.
Especialistas, no entanto, informam que o cronograma de vacinação que a Anvisa pede ao laboratório é de responsabilidade do Ministério da Saúde, que deve apresentar um plano nacional de vacinação. Até o momento, somente um esboço com algumas linhas gerais foi apresentando.
A nota da farmacêutica esclarece que “entende que o processo de submissão contínua é o mais célere neste momento”, tendo em vista “a regulamentação atual definida para uso emergencial”.
A Pfizer garante que esse caminho, o da aprovação definitiva, será seguido pela farmacêutica. “A Pfizer já submeteu à Anvisa, pelo processo de submissão contínua, nossos resultados estudos Fase 3, o que significa mais um passo rumo à aprovação de nossa vacina”.
O Ministério da Saúde não tinha planos de utilizar o imunizante da Pfizer/BioNTech, feita com tecnologia de RNA mensageiro que exige uma estrutura específica – como ultracongeladores para manter o imunizante a uma temperatura de -70ºC. Tal exigência demanda uma logística específica que garanta a preservação do imunizante nesses equipamentos antes de seu uso, o que já gerou alguns problemas em pelo menos oito países europeus que encomendaram a vacina da Pfizer localizada na Bélgica, fato que, segundo a empresa, já foi solucionado.
Uma lei aprovada no início do ano estabelecendo regras para lidar com a pandemia de coronavírus prevê que a Anvisa tem um prazo de 72 horas para conceder a autorização caso o imunizante tenha conseguido registro no Japão, nos EUA, na Europa ou na China. Caso a agência não se manifeste, a autorização deve ser concedida automaticamente.
Esse fato abriu a possibilidade de aquisição do imunizante da Pfizer, pelo menos até as novas exigências da Anvisa e a declaração de Bolsonaro.
Bolsonaro ainda argumentou que não poderia se envolver em uma campanha pela imunização sem alertar para os riscos, uma vez que entre a população há pessoas humildes que não saberiam “interpretar uma bula”. Ele também afirmou querer, “se for possível, um termo de responsabilidade”, levantando suspeitas sobre a comprovação científica da vacina.
No entanto, o garoto-propaganda da Cloroquina e da Hidroxicloroquina a que se transformou Bolsonaro durante toda a crise sanitária, seguindo o exemplo do decadente Trump, em nenhum momento exigiu “termo de responsabilidade” para aqueles medicamentos antimaláricos, cujo uso no combate à Covid-19 já provocou inúmeros efeitos colaterais em pacientes em todo mundo, levando muitos a óbito.
A vacina da Pfizer/BioNTech chegou a ser o primeiro imunizante contra o coronavírus utilizado no mundo. Primeiro no Reino Unido, que em 8 de dezembro iniciou seu plano de imunização. Estados Unidos e Canadá começaram a aplicar o medicamento logo depois, seguidos do México, Chile e Costa Rica. Já a Argentina anunciou o início da vacinação nesta terça-feira (29), com o imunizante russo Sputinik V.
No Brasil, o centenário Instituto Butantan, em parceria com laboratório chinês Sinovac, foi quem mais avançou na produção da vacina, apesar de todos os obstáculos ideológicos de Bolsonaro à parceria com a China, que chegaram a contaminar o Ministério da Saúde e a própria Anvisa.
O governo de São Paulo marcou o início da imunização dia 25 de janeiro, aniversário da Capital paulista, no entanto, a Sinovac solicitou tempo para combinar dados de teste globais que incluem outros países como Indonésia, Turquia e Chile, e não se sabe ainda se o calendário estará garantido, embora a eficácia da vacina, no Brasil tenha ficado entre 50% e 90% – índices superiores aos exigidos pela Anvisa.
Portanto, o Brasil será o único grande país das Américas que não começou a imunização de sua população. Nem sequer apresentou uma data de início. Bolsonaro tem dito que não “dá bola” nem se sente pressionado pelo avanço da vacinação no mundo. No último domingo chegou a falar em “pressa”, mas voltou a argumentar “responsabilidade por reações adversas” para justificar o atraso em respostas concretas.
As novas declarações do presidente que provocaram o recuo da Pfizer fazem parte de um ritual que se estende desde o início da pandemia.
Foi assim quando o vírus foi tratado como uma “gripezinha”; na postura negligente diante das medidas de distanciamento social indispensáveis e únicas no início da pandemia diante da ausência de políticas de rastreamento, testes em massa e foco no isolamento e combate à Covid-19; na sabotagem às medidas e ações emergenciais dirigidas aos que, na sociedade, no setor produtivo e no mundo trabalho, mais clamavam a ajuda do Estado; no questionamento negacionista da obrigatoriedade da vacina por parte do Poder Público e na disseminação de contrabandos medicinais; e está sendo assim, agora, quando aumenta a pressão, interna e externa, pelo início da vacinação, sobre a qual, concretamente, não há um plano nacional consistente sob o comando do Ministério da Saúde.
Muitos qualificativos já foram atribuídos a Bolsonaro durante a pandemia: irresponsável, desastrado, negacionista, genocida, etc, mas a postura negligente diante da vida de milhões de brasileiros (já estamos chegando a quase 200 mil mortes oficiais, excetuando as subnotificações), demonstra que só resta um adjetivo que condensa todos os demais: trata-se de um presidente da morte!, que se compraz com o sacrifício alheio e, muito mais, quando o extermínio é em massa.
MAC