
LUIZ CARLOS AZEDO
As tentativas de o ex-presidente norte-americano Donald Trump interferir nos assuntos internos do Brasil, por meio de declarações e medidas retaliatórias, como a imposição de tarifas de 50% sobre as exportações brasileiras, não vão desviar, muito menos interromper, o curso das investigações sobre os atos golpistas de 8 de janeiro e, sobretudo, o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF).
Apesar da grave crise diplomática e comercial provocada pela decisão de Trump, essas pressões não anulam os fundamentos constitucionais e jurídicos que orientam as decisões do Supremo. O processo contra Bolsonaro segue em conformidade com o devido processo legal, baseado em provas materiais, delações homologadas e evidências documentadas, como a famosa “minuta do golpe”, que ontem foi objeto de nova confirmação do ex-ajudante de ordens da Presidência tenente-coronel Mauro Cid.
O militar foi chamado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para depor como testemunha de acusação dos réus dos núcleos 2, 3 e 4 do processo sobre a trama golpista ocorrida no governo de Jair Bolsonaro. Por ter assinado acordo de delação premiada com a Polícia Federal (PF), o militar responde ao processo em liberdade, mas é obrigado a prestar os esclarecimentos. A partir de hoje, começam a depor as testemunhas indicadas pelos réus que fazem parte dos três núcleos. Os depoimentos devem seguir até o dia 23 de julho.
No mês passado, o STF realizou os depoimentos das testemunhas do núcleo 1, formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete aliados. A Procuradoria-Geral da República, nas alegações finais na ação penal que investiga o chamado “núcleo do golpe”, confirma a existência de articulações concretas para subverter o resultado das eleições de 2022. A delação do tenente-coronel Mauro Cid foi fulcral nesse contexto.
Segundo Cid, o ex-presidente teve acesso direto ao documento que propunha a decretação de estado de sítio, novas eleições e a prisão de ministros do STF, incluindo Alexandre de Moraes. Essas revelações, somadas aos depoimentos de testemunhas sobre ações direcionadas da PRF durante o pleito e a produção de dossiês com viés político dentro do Ministério da Justiça, configuram uma trama organizada e hierarquizada.
Em sintonia com Trump e a extrema-direita global, Bolsonaro tenta deslegitimar as instituições democráticas do país e transferir a narrativa de julgamento do debate jurídico para o campo de disputa ideológica, ao se fazer de vítima de um complô entre STF, a imprensa e as lideranças políticas de esquerda. Sustenta que sua provável condenação será o prenúncio da repressão ao “cidadão comum”. Com isso, reforça a narrativa de sua base mais radicalizada e procura desviar o foco dos fatos pelos quais é julgado.
ESTADO DEMOCRÁTICO
O julgamento em curso no STF tem respaldo constitucional e vem observando as garantias do contraditório e da ampla defesa. Ontem, o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, reiterou que o tribunal age com transparência, realiza sessões públicas, admite a participação da imprensa e assegura o acompanhamento por advogados. O ministro também refutou as acusações de censura às redes sociais.
Barroso afirmou que as decisões da Corte sobre as redes sociais protegem a liberdade de expressão e são moderadas, se comparadas a modelos como o europeu. Argumentou também que, ao associar os julgamentos no Brasil a uma “ditadura judicial”, Trump revela uma visão de mundo pautada pelo seu próprio autoritarismo e desconhece a realidade política brasileira, que vive em regime democrático pleno.
Trump alegou perseguição a bolsonaristas residentes nos EUA e a empresas americanas por decisões do STF, para extrapolar os limites da diplomacia e exportar sua agenda protecionista e conspiratória. O posicionamento dos ministros do STF diante dos ataques de Trump, associado à manifestação diplomática do governo brasileiro, mostra firmeza e maturidade institucional. A defesa da soberania nacional exige que as instituições funcionem de forma autônoma e que os crimes contra o Estado democrático de direito sejam julgados com isenção.
Segundo o ministro Gilmar Mendes, decano da Corte, vivemos um momento inédito de resistência democrática, em que a defesa dos preceitos constitucionais se tornou um imperativo civilizatório. As investigações demonstraram que a escalada golpista liderada por Bolsonaro não se restringiu a discursos inflamados. Envolveu setores das Forças Armadas, agentes públicos, tentativas de manipulação da opinião pública e o uso indevido de estruturas estatais. A PRF agiu seletivamente no segundo turno das eleições. Órgãos de inteligência do Ministério da Justiça foram usados para levantar dados contra adversários.
Tudo isso está sendo cuidadosamente apurado em ações penais abertas e instruídas de acordo com os ritos processuais. Por essa razão, as pressões externas — ainda que muito ameaçadoras — não devem interromper, retardar ou deslegitimar o julgamento de Jair Bolsonaro e seus aliados. O que está em jogo é mais do que a punição de indivíduos: trata-se da proteção do Estado democrático de direito. O Brasil tem o dever, perante sua Constituição e a comunidade internacional, de demonstrar que as instituições são capazes de reagir a ataques à ordem democrática de forma legal, pacífica e institucional. Embora muito pressionada, nossa democracia é resiliente.
Publicado originalmente no Correio Braziliense. Reproduzido com autorização do autor.