A proposta da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos/SP) de privatizar fazendas de pesquisa pode impedir a conclusão de projetos em andamento, alertam cientistas. Outro entrave à pesquisa no Estado, citam os pesquisadores, é o sucateamento das instituições e a falta de investimentos. A especulação imobiliária é outro fator que preocupa os estudiosos.
O temor dos pesquisadores se justifica em razão do lançamento, no primeiro semestre, pelo Governo de SP, de um portal destinado a vendas. A página [imoveis.sp.gov.br], que atualmente se encontra fora do ar devido a um “erro técnico”, segundo a Secretaria de Gestão e Governo Digital (SGGD), continha uma lista de cerca de 200 imóveis públicos espalhados por cerca de 20 municípios – só em Santos foram identificadas 180 propriedades, segundo a Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado (APqC).
Na ocasião, o governo alegou que, por um erro técnico, informações descontextualizadas foram publicadas e, desde abril, o portal está “em manutenção”. Os imóveis públicos ficaram disponíveis no site para consulta e manifestação de interesse por pelo menos 5 dias – de 5 a 10 de março, às 11h, quando não foi mais possível acessar os detalhes desses bens. No mesmo dia, às 17h24, o site foi tirado do ar e uma tela exigindo login e senha foi colocada no lugar.
Dentre os bens divulgados, os que mais chamaram a atenção da APqC foram a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati), de Campinas, que coordena as Casas da Agricultura e é referência no atendimento às pequenas propriedades, e o Instituto Agronômico de Campinas (IAC). A entidade acredita que o site foi retirado do ar propositalmente e que, na verdade, a intenção do governo era fazer pesquisa de mercado. “Imóveis valorizados”.
“É muito difícil hoje aceitar que foi um engano. É mais fácil aceitar e compreender que tenha sido uma pesquisa de mercado”, avalia Helena Dutra Lutgens, presidente da APqC. “Vamos ver quais imóveis despertam interesse, quantas pessoas estão dispostas a pagar por eles”, continua. “São imóveis muito valorizados. A maioria deles está há muito tempo nas mãos do estado e passou por um processo de valorização imobiliária”, completou.
Uma das maiores preocupações dos pesquisadores diz respeito à unidade regional de pesquisa de Tietê, fundada em 1924 pelo IAC. Desde então, esse centro ajudou a desenvolver variedades de feijão-carioca, realizou pesquisas com algodão, frutas e, mais recentemente, com soja e pecuária, produzindo práticas lucrativas e sustentáveis para os produtores da região.
“Outras muitas fazendas regionais estavam no site, e não há mais informações sobre o processo de comercialização delas. O Estado de São Paulo tem 41 unidades ligadas à Secretaria da Agricultura. Só em fazendas da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios — Apta Regional — conectadas à produção agrícola de cada cidade, são 18”, cita o Valor Econômico/Globo Rural em matéria publicada nesta segunda-feira (5).
Segundo o veículo, que esteve na fazenda Tietê meses atrás, a unidade consta do Sistema de Gestão de Imóveis (SGI), em que o governo declara que o bem em questão não tem interesse público, social ou econômico. Mas, segundo a reportagem, o local está bem cuidado, com boa manutenção e com pesquisas efetivas, entre elas a da cientista Keila Maria Roncato Duarte, que busca encontrar as variedades de soja com mais isoflavona (que podem agir contra os efeitos da menopausa).
“O diferencial desse estudo está em agregar valor à soja para o consumo humano. As que têm menos isoflavona seriam ideais para crianças e jovens, por exemplo. Mas, como qualquer estudo, pode levar décadas para ter um resultado efetivo”, ponderou a pesquisadora ao jornal.
A fazenda São Roque, fundada em 1928 na cidade que virou referência para vinhos no Estado, outra unidade pública no SGI, também consta do SEI, sistema eletrônico de informações. Por essa ferramenta são adicionados processos no serviço público, fase que antecede o envio de projetos do governo à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Na unidade foram desenvolvidas pesquisas que permitiram o avanço da produção de uva orgânica e com práticas sustentáveis.
GOVERNO CONFESSA INTENÇÃO
Ao Valor, o secretário da agricultura de São Paulo, Guilherme Piai, assumiu que o governo bolsonarista pretende leiloar fazendas e outros imóveis que estejam “onerando” o Estado com custos altos, segundo ele, e que não apresentam resultados sociais e econômicos relevantes.
Sem citar os efeitos nocivos da privatização – e fingir que se esqueceu que a gestão Tarcísio de Freitas tem pouco apreço pela ciência, o secretário alegou que sua pasta quer incentivar a pesquisa pública e valorizar a carreira dos servidores do setor. “Estou visitando todas as unidades de pesquisa e fazendas do Estado para verificar as condições de trabalho e o que elas precisam. Um levantamento final deve ser finalizado em poucos meses”, afirmou Piai, que se esquivou de citar quais unidades serão privatizadas.
Outro gargalo da privatização das terras públicas, apontam cientistas, representantes do agronegócio e até mesmo economistas, é o financiamento da pesquisa, uma vez que os privatistas visam apenas o lucro em prejuízo do bem-estar social. Assim, vendidas as propriedades onde estão os centros de pesquisas em alimentos, como se fariam os estudos sem grandes interesses econômicos? “Se não for o governo, quem vai investir na melhoria do feijão ou dos hortifrútis?”, questiona o pesquisador do IAC Marcos Antônio Machado.
VENDA DE FAZENDAS AMEAÇA PESQUISA DE ALIMENTOS
Para o presidente do Conselho Regional de Economia da Segunda Região do Estado de SP, Pedro Afonso Gomes, que não é um defensor da estatização, a venda das fazendas atingiria também a agricultura familiar. “[…] Sabemos que 73% da alimentação que está na mesa dos brasileiros vem da agricultura familiar, assentamentos e outros tipos de organização. A falta de cientistas e locais públicos tornaria inviável a pesquisa de alguns desses alimentos”.
A autonomia dos pesquisadores também seria afetada com a privatização das áreas onde se realizam os estudos. “Sem pressão, o cientista concursado pode manifestar o resultado da pesquisa, mesmo que ela afete um grupo, ou até que o resultado seja ruim”, avalia Lutgens.
A valorização das terras e as quantias astronômicas que jorrariam nos cofres do Estado, segundo alguns economistas, também é confrontada. “O valor desses hectares parece muito, mas é nada para o orçamento do Estado de São Paulo. Além disso, este é um momento em que se deveria investir ainda mais na pesquisa pública, diante da crise climática”, defendeu Pedro de Camargo Neto, ex-presidente da Sociedade Brasileira Rural (SRB), importante representante do setor.
Além disso, “as variedades que hoje existem”, continua Camargo Neto, “não serão capazes de garantir produtividade no futuro, porque o clima já mudou”, explica “e é o governo que tem que direcionar a pesquisa de alimentos importantes para a população e para a economia local”, defende.
Segundo o produtor, “é a iniciativa pública que vai direcionar o melhor capim para o pequeno pecuarista ou quais variedades de hortifrúti plantar no cinturão verde do Estado com o clima mais seco e quente”.
Gomes e Camargo Neto ressaltam que, para funcionar bem, as fazendas públicas precisariam de “contratos de gestão”. Ou seja, os gestores dessas unidades têm que ter metas de produção de pesquisa, significativo desempenho em favor da população e prestar contas das finanças”, avaliam.