
NATHANIEL BRAIA, de Tel Aviv
A matéria que segue é uma entrevista realizada por mim com o professor Dov Khenin*, que foi deputado do parlamento israelense (o Knesset) por 13 anos. Na entrevista, realizada no Arcafé, próximo à estação de trem Hahaganah, Tel Aviv, no dia 28, Dov Khenin alerta que “Netanyahu é o primeiro-ministro mais perigoso que Israel já teve”. Uma hora antes da entrevista, Netahyahu desistiu de seu pleito, vendo que seu pedido de imunidade exclusiva para evitar a ida à cadeia por suborno, fraude e quebra de confiança seria derrotado. Agora, já indiciado pela Procuradoria Geral de Israel, aguarda o início do julgamento. Como disse Dov, “teremos um primeiro-ministro sentado no banco dos réus”
Segue a entrevista com Dov Khenin, personagem central do documentário que relata sua vida, intitulado “Camarada Dov”, dirigido por Barak Heymann:
Nathaniel Braia – Dia 2 de março haverá novas eleições, o que você espera em termos de resultados?
Dov Keanin – A minha esperança é de que a Era Netanyahu termine. Netanyahu é o primeiro-ministro mais perigoso desde que Israel existe. E o mais direitista. Não é que não houve primeiros-ministros direitistas no passado. Não estou com saudades do passado. Mas ocorre que Netanyahu é mais perigoso que os outros, por sua agenda que se reflete nas atitudes dele também no que tange à democracia no interior da sociedade israelense, pela forma como vem agindo e também pela atuação racista que escolheu.
É uma agenda que antes se via desta forma, tão claramente pronunciada, nos adeptos do rabino Kahane (norte-americano, fundador das correntes judaico-supremacistas Jewish Defense League, nos EUA e Raq Kach, em Israel) que tratam os árabes israelenses e a esquerda como inimigos. A diferença é que eles eram muito poucos e inteiramente relegados a uma condição de isolamento no quadro político israelense.
Netanyahu pega essa política kahanista e a coloca no centro do palco.
O seu perigo está presente também do ponto de vista regional. Netanyahu busca a guerra. E não é uma guerra pequena, localizada como a que tivemos com o Líbano ou com a Síria, mas uma guerra regional com o Irã. Colocando a região em situação de risco de guerra e mesmo com implicações mundiais difíceis de se prever.
Então é muito, muito importante fazer um grande esforço e tirar Netanyahu.
Esse é, do meu ponto de vista, o grande alcance e o objetivo das eleições que se avizinham.
N.B. – E os principais opositores?
Dov – É verdade que não tenho muita expectativa com relação aos principais partidos que se enfrentam com Netanyahu, a coalizão Kahol Lavan (Azul e Branco) não representa soluções verdadeiras para a sociedade israelense. Mas, ainda, é bem menos ruim que Netanyahu.
N. B. – Qual a base para a construção de uma frente ampla com soluções verdadeiras?
Dov – É preciso construir uma frente que tenha respostas à questão da paz. Uma paz que forneça justiça e independência para os dois povos. Aos israelenses e aos palestinos. A solução deve entender que os dois povos possuem anseios legítimos e a precisa ser uma justa para ambos.

Essa configuração deve ter uma agenda social que busque a igualdade. A sociedade israelense é muito, muito desigual, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista social. E essa força política deve se enfrentar com essa desigualdade. E deve promover uma agenda democrática. Não apenas no sentido da democracia liberal, mas democracia para os grupos minoritários que existem na sociedade israelense. Por exemplo, a desigualdade que afeta a sociedade árabe palestina, que é parte do Estado de Israel.
Essa formação deve trazer caminhos para estas três questões: a democrática, social e a nacional israelense palestina. Isso por um lado. Também precisamos ser capazes de falar às pessoas que pensam diferente. Não interessa construir outra moldura de esquerda fechada em si própria, com a justiça interna dela e com a verdade interna a ela. Mas uma esquerda que tenha capacidade de chegar a outros cantos e a outras formações na sociedade israelense.
Esse é um grande desafio. Desenvolver a capacidade de propor soluções. Com base em princípios da esquerda, mas com capacidade de olhar nos olhos de pessoas com outras definições e dialogar com outras forças na sociedade israelense.
N.B. – E quanto aos judeus de fora de Israel?
Dov – Netanyahu, como premiê, utiliza os judeus de fora de Israel e usa também o assunto do antissemitismo em função dos seus interesses e de sua política. Do ponto de vista dele, os judeus no mundo são um instrumento de um jogo. Um instrumento do qual Netanyahu faz uso de forma muito, muito cínica.
Antes de tudo precisamos lembrar o fato de que o próprio Netanyahu é próximo de antissemitas convictos na Europa. De Orban, que já afirmou seu antissemitismo na Hungria; do governo antissemita da Polônia. Ele se dá bem com os antissemitas da Ucrânia que reabilitam Stepan Bandera (refere-se aos colaboracionistas que apoiaram a invasão nazista à Ucrânia), constroem estátuas dele e de pessoas como ele, que assassinaram judeus nas praças das cidades ucranianas.
Netanyahu dá a estas pessoas legitimidade através das suas conexões com estes líderes de direita e racistas. Diz a eles: “Se vocês são meus amigos, então não podem ser antissemitas”, ao mesmo tempo em que se sabe que são, sim, antissemitas.
Então a aliança de Netanyahu com antissemitas antigos e novos, mundo afora, é uma aliança desqualificada. Mas, é fato central, a aliança entre Netanyahu e as forças de direita que, infelizmente têm tido um crescimento em diversas partes.
Como disse, ele usa os judeus. Todo aquele que critica Netanyahu é designado como antissemita. E isso não é verdade, não é correto. Eu sou judeu. Sou patriota israelense. Me preocupo muito com o futuro do meu povo. E é exatamente por ter estas preocupações que me oponho a ele. Porque entendo que Netanyahu coloca em risco o futuro do meu povo. Coloca em perigo a vida dos meus filhos. Eu me oponho a Netanyahu, portanto, como patriota, não como antissemita.
Então, eu repito, qualquer crítica a Netanyahu é vista como “antissemita” e isso cria uma situação de falsificação do termo “antissemitismo”, banaliza e acaba tornando, pelo lado oposto, o antissemitismo como algo legítimo.
Veja bem: se criticar Netanyahu é antissemitismo e se tem muita gente querendo criticar Netanyahu, então tem muita gente que é antissemita…
Vemos então que, por intermédio dessa política, acaba dando legitimidade ao antissemitismo. Claro que isso é muito triste e lamentavelmente hoje há muita crítica a Israel no mundo e não é por acaso.
A questão palestina tornou-se uma questão importante para muitas pessoas no mundo inteiro, o povo palestino é um dos últimos povos no mundo que permanece sob dominação militar e as pessoas são contra isso. Claro, isso atinge a imagem de Israel e também a dos judeus que apoiam Israel e se tornam – aos olhos de todos aqueles que não concordam com isso – vistos como simpáticos aos opressores.
N. B. – E do ponto de vista econômico?
Dov – Veja, Israel é um país desenvolvido com muitas possibilidades do ponto de vista da ciência e da tecnologia. Mas essa capacidade não se traduz em algo que realmente resolva os problemas sociais de Israel. Vou lhe dar um exemplo: em 2001, em Israel houve um protesto social de grandes proporções. Chegou a haver mais de um milhão de israelenses nas ruas em manifestações em favor de justiça social. O tema central que levava as pessoas aos protestos era a questão da moradia. Não se podia comprar um apartamento. Era impossível alugar um apartamento. Só se a pessoa fosse muito rica. E, por causa dos preços da moradia, as pessoas saíram às ruas. Podemos dizer que, proporcionalmente, foi um dos maiores protestos que já houve em todo o mundo. Um de cada 8 israelenses estava nas manifestações.
E o que aconteceu desde então? De 2011 até hoje o preço dos imóveis quase que duplicaram. Isso quer dizer que um problema tão central como o da moradia não se resolveu, ainda que o país seja um país rico, ainda que tenha tanta capacidade técnica, uma questão social tão fundamental não se resolveu.
Vou lhe dar outro exemplo: nós estamos aqui na frente do hospital Ichilof, o hospital central de Tel Aviv.
N. B. – Dá pra ver as paredes sujas e abandonadas…
Dov – Sim. Daqui vemos os muros, mas também conheço a situação no interior do hospital. Uma situação muito difícil. O sistema de Saúde se encontra numa crise muito dura. Entre neste hospital e você vai ver doentes deitados no chão, em colchões. E porque estão assim? Porque o Estado não investe na Saúde Pública. E isso é muito problemático. Em Israel, no passado, havia um sistema de saúde muito desenvolvido. Mais é um sistema que vai perdendo força, perdendo valor, na medida em que não há investimento nesse setor.
O que podemos dizer em essência? Eu digo que no Estado de Israel, fora o problema da guerra, para além do conflito Israel-Palestina, para além do conflito Israel-Árabe, há também problemas sociais verdadeiros no interior da sociedade. Problemas que precisam ser enfrentados e que clamam por mudanças.
N.B. – Dos assuntos que você tratou como deputado, qual lhe foi o mais sensível?
Dov – Não tenho resposta a essa pergunta.
A paz é muito preciosa para mim, porque se não há paz, haverá guerra e as pessoas morrerão na guerra e por isso luto pela paz com todas as minhas forças.
Também luto a favor dos pobres e dos trabalhadores, porque esses são ferrados todos os dias. Eu luto para que as pessoas não morram por causa da poluição atmosférica, porque é necessário defender a vida humana.
Eu luto pela igualdade entre homens e mulheres, porque não é possível continuar com a discriminação com relação às mulheres.
Eu luto por uma mudança nas relações entre judeus e árabes no interior da sociedade israelense, porque essa é uma questão central para o nosso futuro.
Assim que, como deputado, eu não construí para mim uma escala de preferências, mas joguei toda a energia em questões que pude contribuir e, através das quais, pude promover alguma mudança.
N.B. – Pode dar exemplos de leis que surgiram de sua iniciativa…
Dov – Posso lhe dar um exemplo: no terreno dos direitos da mulher, consegui a aprovação de uma lei que estendeu o período de licença maternidade de 12 para 15 semanas. Na questão do meio ambiente, produzi a lei do ar limpo, que luta contra a poluição do ar em Israel. Uma lei com muitos artigos. No terreno dos direitos LGBT, consegui que se aprovasse uma lei que proíbe todo tipo de discriminação com relação a questões de opção sexual, em todos os sistemas educacionais em todo Israel. No terreno dos direitos humanos, uma lei de minha iniciativa defende os direitos dos presos nos cárceres do país, todos, sejam eles judeus ou palestinos.
N. B. – Temos no Brasil a Lei Afonso Arinos que pune com prisão qualquer expressão racista. Há algo assim em Israel?
Dov – Muito boa essa lei, mas, para minha infelicidade, há leis que tratam de aspectos desse assunto, mas nada assim, tão definitivo. Veja, Netanyahu, primeiro-ministro, se expressa de forma racista abertamente. Ele fala de forma racista e nada acontece, que dirá o homem simples na rua. Ninguém pode levá-lo a julgamento por tais manifestações.
Não. Querem levá-lo aos tribunais, mas por razões distintas, por que ele recebeu suborno e não porque ele faz incitamento racista.
N. B. – Nas próximas eleições, há alguma lista de sua preferência?
Dov – Eu apoio a Lista Conjunta, que também é a que representei no Knesset, que resulta de uma coalizão do partido de esquerda Hadash com os partidos da minoria árabe. É uma coalizão que se formou por conta do aumento na cláusula de barreira. Então eu apoio esta coligação para que a esquerda tenha voz no parlamento, mas também para que os árabes se fortaleçam dentro da sociedade israelense.
N.B. – E porque esse fortalecimento é importante?
Dov – Isso é importante porque se trata de uma minoria alienada de seus direitos, sofre por racismo e discriminação, é importante fortalecer a voz deles, que a voz deles seja ouvida nas ruas e também no parlamento
N. B. – E com relação à imunidade para Netanyahu?
Dov – Antes de tudo, Netanyahu pediu a imunidade para não ter que ir a julgamento. Mas à medida que a questão foi se desenvolvendo e hoje se constituiria a comissão que iria julgar a sua imunidade, ele anunciou, há uma hora atrás, que abre mão dela. E agora o pedido de indiciamento será entregue ao tribunal. Isso quer dizer que teremos em Israel um primeiro-ministro sentado no banco dos réus.
N.B. – Ele tem dito que vai anexar o vale do Jordão a Israel e o opositor Gantz disse que seria uma boa ideia…
Dov – Eu acho que isso se traduz da seguinte forma: as palavras de Netanyahu são muito perigosas e as de Gantz muito bobas.
Anexar o Vale do Jordão significa que não haverá Estado palestino porque esse é um pedaço grande do território pequeno que restou para que, sobre ele se possa, como é preciso, constituir o Estado da Palestina.
E se Netanyahu anexa o Vale do Jordão, então não haverá Estado palestino e aí que solução se pode ter para acabar com o conflito? A única solução que eu vejo é a da justiça para ambos os povos. Então, se Israel toma tudo e também anexa grande parte do pouco que restou aos palestinos, não haverá justiça para os dois povos. E se não houver justiça para os dois povos não haverá solução e, sem solução, não haverá paz e sobrevirá a guerra. E se houver guerra, o que acontecerá é uma grande desgraça para os cidadãos israelenses.
Portanto, eu penso que a política de Netanyahu é perigosa e acaba ferindo os interesses nacionais dos próprios israelenses, não apenas dos palestinos. Já Gantz, com seu posicionamento, de admitir a anexação, dá espaço a Netanyahu e não conquista votos dos direitistas, tentando se assemelhar a eles.
No terreno das relações entre judeus e árabes no interior da sociedade israelense é uma questão crítica para nós. Estamos travando discussões para mostrar isso, mas essa é uma questão que a esquerda precisa avança muito.
Como disse no início, a esquerda precisa de uma nova construção, não apenas em torno da questão da justiça com relação aos dois povos. Precisamos desenvolver a nossa capacidade de argumentação. E essa é uma das coisas com as quais, de verdade, estou me ocupando desde que terminei meu mandato no Knesset.
Me juntei ao “De Pé e Juntos”, um movimento judeu-árabe que atua em todo o país, desde a Alta Galileia até o Neguev. Um movimento que busca essencialmente reunir valores tais como paz, igualdade, democracia, defesa do meio ambiente e justiça social.
N.B. Finalmente, o que você pensa acerca do trabalho com as comunidades judaicas no mundo?
Dov – Acho que devemos atuar em conjunto com as comunidades judaicas em todo o mundo. Explicar que se preocupar com Israel é apoiar a paz e não as guerras. Porque com guerras não há futuro para Israel, um país pequeno em um gigantesco mundo árabe. O único rumo verdadeiro para que Israel continue existindo é encontramos o caminho da paz. Se não chegarmos à paz não temos futuro nesta região.
*Dov Khenin é jurista, professor de Direito na Universidade de Tel Aviv. Durante muitos anos atuou como advogado na defesa de direitos humanos e do meio ambiente. Como deputado pela Lista Conjunta que reúne comunistas e partidos árabes israelenses, Dov, como afirma, foi “atuante em lutas pela igualdade, paz e justiça social”. Presidiu a entidade que reúne todas as organizações de defesa do meio ambiente em Israel e, como deputado, tomou iniciativas que produziram mais de 100 leis defendendo o trabalhador, o meio ambiente, o idoso, a mulher e o menor.
Em 2009 foi candidato a prefeito de Tel Aviv por uma ampla frente, a ‘Tel Aviv de Todos”, ficando em segundo lugar com 34% dos votos contra o candidato de centro, o trabalhista Ron Huldai, “que teve apoio do conjunto das forças do establishment israelense”.
“Deixei o parlamento há cerca de um ano e hoje me dedico à construção de uma ampla frente com base nos princípios da esquerda e de caráter não apenas parlamentar/eleitoral, mas que atue em um campo popular muito mais amplo e que dialogue com toda a sociedade israelense”, esclareceu o professor e ex-deputado.