GABRIEL ALVES*
No dia 8 de março de 2022, poucos dias após o início da operação especial russa na Ucrânia, uma importante notícia provavelmente abalou o Alto Comando do Exército russo e o presidente Putin: um conhecido restaurante localizado no centro de São Paulo decidiu retirar o estrogonofe de seu cardápio, como dura represália à ação militar. Esse tipo de campanha publicitária, fantasiada de ação política, ocorreu, e ainda ocorre, aos montes no Brasil e no mundo.
Foram meses de um festival de ignorância e russofobia: bares rebatizaram o drinque Moscou Mule (de gosto horrível e estranhamente badalado nos bares chiques) para Kiev mule, livrarias e universidades tiraram de suas prateleiras obras primas de grandes autores como Liev Tolstoi e Dostoievsky, artistas foram impedidos de se apresentar em orquestras e teatros e, em paralelo a isso, o presidente-comediante-fascista Volodymyr Zelensky foi alçado à posição de pacifista mundialmente exaltado por governos ocidentais e a grande mídia, chegando ao absurdo de posar, junto com sua esposa, em sessão fotográfica da revista Vogue em meio aos escombros da guerra. Para além das presepadas, foram congelados cerca de 300 bilhões de dólares (em torno de 20% do PIB à época) em depósitos russos no exterior e se realizou um forte bloqueio econômico impedindo a venda de petróleo russo para outros países e, também, a compra de produtos tecnológicos para o país. Centenas de corporações ocidentais, que exerciam papel destacado na economia russa, deixaram o país.
Por conta de todas essas ações, assim que confirmei minha ida para o Festival Mundial da Juventude em Sochi, em março passado, imaginei que encontraria um país evidentemente impactado por tantas sanções econômicas. Pensei que, mesmo sendo um país com alto nível de desenvolvimento, considerável industrialização e capacidade econômica, seria impossível não sofrer dificuldades com essa dura ação implementada.
Um pouco antes de viajar conversei com um amigo sobre como deveria trocar meu parco dinheirinho em rublos, acreditando que as sanções dificultariam essa transação. Segundo ele, que poucos dias antes tinha retornado de lá, eu não teria nenhum problema e conseguiria trocar em qualquer lugar. Achei, evidentemente, um exagero e que não seria tão fácil assim.
Chegando em Moscou quebrei a cara com todas as minhas expectativas. Além do frio de -5º que me gelou assim que saí para fumar um cigarro, já no aeroporto me surpreendi com a plena normalidade de funcionamento das coisas. Lojas com prateleiras cheias, pessoas tranquilas, câmbio fácil e nenhuma dificuldade para resolver qualquer questão que fosse necessária.
Em Sochi, cidade à beira do Mar Negro que sediou o Festival, o mesmo cenário se repetiu. Do boteco ao lado do alojamento ao mercado de prateleiras cheias, não vi nada faltando. Chá, caviar, peixes, batatas, cebolas, sucos, cervejas e vodkas. O mercado público da cidade também tinha todas as barracas repletas com temperos, ervas e carnes. As duras sanções econômicas aplicadas pelas grandes potências capitalistas mundiais não foram capazes de causar desabastecimento de nenhum desses itens. Um acontecimento absolutamente impressionante e que, confesso, me deixou absolutamente surpreso e curioso sobre como os russos foram capazes disso.
A ideia deste artigo sempre foi a de realizar um relato da viagem, contando situações que realmente me impressionaram. Não que eu me ache um bom escritor, muito longe disso por sinal, mas, pela ausência absoluta de jornalistas e pesquisadores que se dispuseram a viajar à Rússia e contar a história vista pelos seus próprios olhos, resolvi contar um pouco do que vi por lá. Pelo menos para tentar ajudar a superar essa campanha jornalística fundada na incapacidade de buscar respostas a partir de sua própria cabeça, ao invés de repetir a fácil narrativa amplamente martelada pela grande mídia todos os dias.
Mas, antes que alguém fale “Gabriel, isso aí é que só te mostraram o que eles queriam que fosse visto”, ou “mas não é bem assim, eu assisti um comentário do Ariel Palácios que os russos passam fome” ou até que me chamem de mentiroso, também dei uma estudadinha e achei alguns dados interessantes para que o texto fosse um pouco mais do que impressões sobre prateleiras cheias e pessoas vivendo normalmente em comunhão contra a OTAN. A grande pergunta na minha cabeça era: se essas sanções bloquearam as reservas internacionais e impediram empresas e governos de vender para a Rússia, como é que eles conseguiram solucionar essa questão e estavam com sua vida normal e prateleiras de mercado cheias com todos os itens possíveis?
Se o objetivo das sanções era o de produzir caos econômico, alimentar a oposição interna ao governo e atrapalhar o esforço militar, o resultado alcançado foi precisamente o contrário.
Para reagir à fuga das empresas ocidentais, a resposta foi uma forte ampliação do investimento público para além dos gastos militares. O governo realizou gastos importantes no apoio social às famílias, aumentos de pensões, subsídios hipotecários e compensação para os familiares dos que servem nas forças armadas em uma forte política de investimento para melhorar a vida das pessoas e aumentar o mercado interno. Nos últimos dois anos, por exemplo, o valor médio do salário da população cresceu 30% acima da inflação, chegando atualmente a 814 dólares (Michael Roberts no blog The Next Recession).
Foram criadas condições de financiamento público para a aquisição de plantas industriais, maquinários e etc. Isso ocorreu a baixo preço, permitindo uma diminuição dos custos de consumo para a população. Segundo o economista keynesiano James Galbraith, o fato da Rússia ser um país com população de 145 milhões de pessoas, detentor de algo em torno de 20% dos recursos naturais fundamentais para a indústria (petróleo, gás e fertilizantes) e possuindo engenheiros e linhas de produção já estabelecidas, permitiu que rapidamente fossem realizados ajustes para nacionalizar essa produção. Ajustes que não aconteceriam sem as sanções.
Em outras palavras, os bens que deixaram de ser comercializados foram facilmente substituídos, enquanto os produtos que a Rússia comercializava com o mundo não somente são imprescindíveis para o restante do mundo como também seu excedente foi fundamental para essa virada econômica. Dessa forma, o resultado das sanções foi extremamente positivo, indo contra toda a teoria econômica convencional que indicava que a produção russa entraria em colapso.
A consequência dessas ações foi um importante crescimento econômico, superior a todas as economias do G7, ultrapassando a Alemanha no PIB avaliado por paridade de poder de compra, registrando aquela que já é considerada a maior queda nos índices de pobreza no país após o fim da União Soviética, hoje abaixo dos 10% da população.
Outra necessidade urgente era fazer frente à queda nas importações vinculadas ao consumo alimentício. A plantação de trigo e centeio, por exemplo, cresceu 40% apenas na região de Rybinsk. A produção de queijo cresceu 80% e produtores muçulmanos de Kazan criam gansos e cordeiro, tudo que até pouco tempo era importado de outros países europeus.
Logo depois que voltei de viagem recebi do amigo João Priolli (parceiro de longa data, professor de história e meio campista do Madrugada Futebol e Samba) um artigo interessantíssimo publicado na revista “Harper’s Magazine” pelo jornalista italiano Marzio G. Mian sobre um mês viajando pela Rússia em travessia pelo Rio Volga. No texto ele afirma que “Nunca imaginei que o crescimento da comida hiperlocal seria um dos temas recorrentes da viagem. Mas parece que as sanções ocidentais e a economia de guerra intensificaram um movimento da gastronomia tradicional russa. Os produtos ocidentais saíram das prateleiras da classe média urbana da Rússia, e os produtores locais estão tentando preencher esse vazio oferecendo orgulhosamente Camembert e prosciutto feitos na Rússia.”
No mesmo artigo é possível se deparar com várias declarações, de produtores rurais a intelectuais urbanos, relatando como agora eles comem melhor ainda com base em uma mesa farta de comida produzida localmente.
Certamente os animadores dados do presente expõem uma economia que possui razoável grau de dependência, com pouca produção interna. Esse cenário é resultante de alguns erros na condução da política econômica do último período, além de ter sido um complicante no período inicial dos bloqueios realizados pelas potências ocidentais. Mas este artigo não vai conseguir desenvolver todo assunto sobre o tema, por falta de capacidade do autor e por almejar ser principalmente um relato sobre impressões da viagem realizada.
Ou seja, as sanções obrigaram a Rússia a realizar um conjunto de ajustes em sua economia que dificilmente seriam realizados de maneira tão rápida e decidida em outras condições. Portanto, é possível dizer que a ação das potências ocidentais encorajou o país a enfrentar um conjunto de problemas pendentes que fragilizavam sua realidade há tempos.
Aliás, voltando à viagem realizada, uma das poucas coisas que me disseram realmente ter mudado foi a ausência do Mc Donalds. Isso preciso confirmar que realmente mudou, mas é uma coisa que, vamos combinar, pode até ser considerada um ganho para o país, primeiro que aquele hambúrguer de carne chocha é algo que você ganha quando perde; e segundo que, onde antes funcionavam as lojas vermelhas e amarelas, ainda é possível encontrar os mesmos lanches mas com nomes diferentes e sem o M grande na frente.
Por último, se você aguentou este longo texto até aqui, acho que, mesmo sem te conhecer, já podemos nos considerar um pouco amigos. Por isso, vou fazer nas linhas finais uma confissão sobre um prazer culposo que sinto, desde a minha infância e durando até hoje, pelos nuggets do restaurante do M amarelo. Sou capaz de comer umas 20 unidades daquilo em altíssima velocidade. Mas, mesmo sendo um duro golpe pessoal, creio que a Rússia poderia inspirar o Brasil, por isso já me sinto disposto a abrir mão desse fast food americano se esse for o preço a ser pago pelo Brasil para desenvolver nossa economia e melhorar o salário dos trabalhadores. Sei lá, me pareceu um preço razoável a se pagar.
*Gabriel Alves é sociólogo e diretor do Centro Popular de Cultura da UMES (CPC-UMES)