Em entrevista ao programa de rádio independente Democracy Now, da jornalista Amy Goodman, o correspondente especial da PBS (TV Pública norte-americana), John Carlos Frey, recém chegado de Tijuana, denunciou como a pior seca em cinco anos na América Central e a violência decorrente da deportação de membros de gangues americanas vem empurrando milhares e milhares de mulheres, crianças, idosos e desempregados, em desespero e famintos, rumo aos EUA.
Jornalista premiado com o Emmy, Frey acompanhou de perto a jornada desses retirantes pelas estradas centroamericanas. Foi o co-apresentador Juan González que pediu a ele que esclarecesse dois aspectos quase ignorados sobre o que impulsiona os migrantes e os refugiados – “a questão da seca na América Central” e a da “deportação de criminosos condenados nos EUA, mas talvez criados nos EUA, embora originários de El Salvador, Guatemala ou Honduras”.
“Há uma seca prolongada de quatro a cinco anos na América Central em uma região conhecida como o Corredor Seco”, confirmou Frey, acrescentando que abrange “partes de Honduras, Guatemala e El Salvador”.
“Este ano foi um dos piores anos da seca. Em algumas regiões, houve 90% a 100 % de quebra na colheita”, assinalou. “Ali, se as colheitas falham, não há outros empregos, não há outro lugar para ir e as pessoas estão morrendo de fome”.
Frei contou ter entrevistado dezenas de pessoas que deixaram a América Central por “estarem famintas” e estão na caravana vilipendiada por Trump. “Eles não podem se alimentar ou às suas famílias. Eles perderam suas colheitas. Eles não têm outro jeito de ganhar a vida. E eles estão vindo para os Estados Unidos basicamente por comida”, denunciou.
Frey relatou ter conversado com uma mulher de 25 anos, que estava com dois filhos pequenos e vinha sobrevivendo com uma tortilha por dia. “Isso é tudo que ela podia pagar, e ela veio porque simplesmente não havia outro jeito para ela”.
Ele advertiu que “colocar arame farpado na fronteira não vai resolver a pobreza de alguém, não vai resolver a violência na América Central e certamente não vai colocar comida na mesa, e é por isso que as pessoas estão vindo”.
A questão da violência e de como se tornou uma chaga nos paupérrimos países da América Central também foi abordada por Frey, que se surpreendeu ao ser informado por González, com base no Washington Post, que “apenas em El Salvador, em um período de 20 anos, 95 mil pessoas foram deportadas dos EUA depois de saírem da prisão, de volta a El Salvador – 1,5% de toda a população”.
Como salientou o co-entrevistador, “o impacto desses criminosos foi para os países onde talvez eles tivessem nascido, mas que na verdade não conheciam, e onde desenvolveram gangues de drogas”, cuja violência é repetidamente citada como uma das razões dos retirantes.
“Realmente não importa se você esteve nos Estados Unidos a maior parte da sua vida. Também não importa necessariamente quais crimes você pode ter cometido. Se você é um membro de gangue, nós vamos deportá-lo. Vamos enviá-lo de volta para o país de origem, mesmo que tenha vindo para os Estados Unidos quando criança. Isso é o que fizemos”, destacou Frey.
Ele lembrou ainda a insurreição em El Salvador há 25, 30 anos atrás, em que “estávamos deportando uma entidade criminosa para um país que nem sequer tinha aplicação da lei”. A maior parte das chamadas “maras” – as brutais quadrilhas que infestam a América Central – foi formada nos guetos nos EUA.
“Então o que aconteceu foram essas gangues reconstituídas em El Salvador e que agora estão mandando no país”. O mesmo se repetiu na Guatemala e Honduras. “É daí que vem a violência, uma semente que plantamos dos Estados Unidos em países que não eram estáveis”.
“Nem sequer fornecíamos qualquer tipo de dossiê ou qualquer tipo de papelada que permitisse aos países entender quem e o que estávamos deportando”, denunciou Frey. Os EUA simplesmente “lavaram as mãos” e estão agora “colhendo as recompensas de deportar esses elementos criminosos”.
Note-se que Frey não se referiu a outra semente da violência, também parida em Washington: os esquadrões da morte treinados pelo Pentágono, contra a revolta popular, e que jogou a crueldade em um patamar sem precedentes, torturando e matando camponeses e estudantes, e até assassinando Dom Oscar Romero. Esquadrões que atuaram também em Honduras e na Guatemala – exatamente as áreas de onde fogem hoje os desesperançados. Também não se referiu ao golpe em Honduras, acobertado por Hillary e Obama, que intensificou a miséria lá e o corte de direitos.
Frey descreveu o dramático quadro dos imigrantes em Tijuana. “Pegue cinco mil pessoas; coloque-os em uma cidade sem lugar para eles irem. Não há lugar para dormirem. Não há lugar para comerem. A cidade está fazendo o melhor que pode para criar abrigos improvisados para uma população tão grande. Eu fiquei em um campo de beisebol, que era um abrigo improvisado. Os migrantes estão vivendo ao ar livre, sob as intempéries. As pessoas forneceram tendas e cobertores. Estão levando comida diariamente. Há chuveiros ao ar livre”.
“Muitos são mulheres e crianças, famílias da América Central. E na maior parte, este é um grande grupo de pessoas que estão desabrigadas”, afirmou. “Eu não vi ninguém com uma arma. Eu não vi ninguém que fosse um terrorista ou um traficante de drogas ou o que eu pudesse determinar ser um criminoso”, assegurou.
“São famílias que buscam uma vida melhor, em busca de uma situação melhor. Muitos deles são requerentes de asilo”, reiterou o jornalista.
Para ele, essas pessoas não são, na maioria, “ilegais”. “Por nossas próprias leis de asilo, elas têm o direito de pedir asilo”, afirmou, dizendo ter conhecido famílias “cujos entes queridos foram assassinados por membros de gangues”, que foram “extorquidas, ameaçadas de morte e fugiam da violência”.
“Eu viajei fisicamente com eles. Eu passei com eles por dias a fio. Eu nunca me senti ameaçado. Então eu não entendo como o presidente dos EUA pode apontar uma arma para os pobres”, afirmou Frey.
Ele condenou a xenofobia em voga: “Eu testemunhei, na maior parte, pobreza e desespero. E os Estados Unidos, um farol para imigrantes e um lugar que recebia imigrantes, apontando armas para eles e construindo cercas mais altas, mais altas e mais fortes, não é o país que eu entendo que seja”.
“Eu não vejo realmente qual é a necessidade de gás lacrimogêneo”, acrescentou, lembrando todo o aparato acionado, a patrulha da fronteira, militares. “Muitas das pessoas lá eram mulheres e crianças, e o gás lacrimogêneo tem efeitos negativos”.
“Então, parece-me que este é um palco para o presidente e para os políticos parecerem duros, parecerem que estão protegendo os Estados Unidos. Mas, na verdade, eles estão protegendo-os de pessoas que nem sequer são ameaça. Eu acho que é covardia”, denunciou.
Na terça-feira, a mídia pró-Trump saiu em sua defesa, alegando que Obama lançou gás lacrimogêneo em cima de imigrantes na fronteira “80 vezes”.
No encerramento, Amy leu um comentário da editora de opiniões do Post, Karen Attiah, sobre o que aconteceu na fronteira do sul dos EUA. “É assim que a mídia americana descreveria isso se acontecesse em um país não ocidental: ‘as forças de segurança americanas sob o regime Trump usaram armas químicas em uma operação transfronteiriça contra requerentes de asilo desarmados, incluindo crianças’”. Attiah – registrou a apresentadora – “terminou seu tweet escrevendo: ‘Meu Deus’.”
A.P.