A jornalista Míriam Leitão, em sua coluna no jornal O Globo, ao analisar a queda na bolsa brasileira, afirma que “a economia é ameaçada por uma pandemia, mas internamente o risco maior que o Brasil corre é provocado pelo comportamento insano do presidente da República”. Reproduzimos a seguir o artigo publicado no dia 27/2.
O presidente mira a democracia
Míriam Leitão
A quarta-feira de cinzas já seria difícil no mercado financeiro, portanto, a forte queda de ontem estava dentro do previsto. Como os preços das ações caíram muito nos dias em que a bolsa brasileira ficou fechada, haveria uma correção. O problema não é essa queda, que chegou a 7%. A economia é ameaçada por uma pandemia, mas internamente o risco maior que o Brasil corre é provocado pelo comportamento insano do presidente da República.
No ano passado, muitos de forma condescendente explicaram o evento de o presidente compartilhar em rede social uma cena grotesca como fruto da sua inexperiência no cargo. Ele não saberia, disseram algumas pessoas, o peso do compartilhamento feito pelo próprio presidente. Mas a essa altura não há mais autoengano possível. Ele sabe o que faz, quer acuar o Congresso, não conhece os limites impostos pelo regime democrático ao exercício do poder do Executivo, quer manipular a ideia de que está sendo impedido de governar pelos políticos e pelo Supremo.
Todo mundo sabe que existe dentro do Palácio do Planalto uma fábrica de fake news e de vídeos que ameaçam os que eles elegem como “inimigos”. As peças que Bolsonaro compartilhou nasceram da sua rede, controlada por filhos e asseclas. Todo mundo entendeu que ele traz os militares para perto dele, inclusive os da ativa, como manobra dissuasória contra qualquer reação ao seu desgoverno.
O que fica difícil de entender é o motivo de as Forças Armadas se deixarem usar dessa maneira, inclusive diante de sinais que para os próprios militares são perigosos, como a conivência com os motins de policiais. Quebra de hierarquia sempre foi considerada o maior dos riscos para os comandantes em qualquer época. Quem aceita motim na Polícia Militar, o que fará quando esse comportamento chegar às suas tropas?
Os últimos acontecimentos não deixam dúvidas: Bolsonaro está rompendo todos os limites institucionais. O presidente atacou uma jornalista de forma torpe para tentar desmoralizar a imprensa como um todo. Com a eclosão dos movimentos das polícias nos estados, os Bolsonaros deixaram claro, por suas omissões e meias palavras, que acham natural que pessoas armadas descumpram a Constituição. O ministro da Justiça, Sergio Moro, subestimou a gravidade do que ocorria no Ceará. O general Augusto Heleno soltou imprecações contra o Congresso. Isso foi transformado em vídeo apelativo que exalta o presidente, usa o hino nacional, a imagem do Exército para estimular uma manifestação contra o Congresso e os “inimigos” daquele que “quase morreu por nós”. Por fim, Bolsonaro dispara essas peças através de uma rede mais difícil de fiscalizar.
Dias atrás eu conversava com um ministro do governo Bolsonaro e ouvi a seguinte frase: “mas ele nunca falou de fechar o Congresso”. E usava o argumento como quem diz: “viu como ele é um democrata?” Ora, ora. Os tempos mudaram, a maneira como se fala isso é diferente da última vez que o Congresso foi fechado por militares, em 1977. Agora, acua-se através das redes sociais e de manifestações. Foram atos oficiais convocados pelo coronel Hugo Cháves que encurralaram as instituições na Venezuela. Ele também lembrava a todo o momento sua patente, apesar de já ter saído do Exército. O presidente lembra a todo o momento que é um capitão. Ele saiu do Exército por mau comportamento, há 32 anos. Contando o período de estudante, passou apenas 15 anos lá. Bolsonaro compensa sua frustração militar, de não ter feito uma carreira da qual se orgulhar, alimentando o delírio de que comanda as Forças Armadas em uma guerra. E quem é o inimigo? A imprensa, o Congresso, o Supremo. A democracia.