“O imperialismo americano manteve o front da guerra fria e expandiu a OTAN mesmo com o Pacto de Varsóvia tendo sido desmobilizado e é a Europa quem vai pagar”, destaca o professor
O professor Ildo Sauer, titular do Instituto de Energia da USP e ex-diretor da Petrobrás, avaliou, em entrevista ao HP, as medidas econômicas tomadas contra a Rússia por iniciativa do governo dos Estados Unidos e seus aliados. Mais do que prejudicar o país presidido por Putin, os embargos trarão, segundo Ildo, grandes problemas negativos principalmente para os países da Europa e sua população.
“No curto prazo, o aumento do preço, mantidas as exportações da Rússia, ela no fundo vai ter uma espécie de prêmio temporário”, avalia o especialista.
“Os Estados Unidos é o país menos afetado do ponto de vista econômico, porque tem uma relação mais ampla e não tem uma relação de dependência tão direta com a economia russa como a europeia. Então, ironicamente, a manutenção da Europa como um auxiliar caudatário da geopolítica norte-americana de manter o confronto com a Rússia, revivendo os canais da guerra fria, que estavam estruturados contra a União Soviética, prejudica os países da União Europeia”, observa.
“Ao se manter caudatária disso, a Europa vai ser a maior prejudicada. Vai ser quem terá as maiores restrições, não só por causa do petróleo, mas por causa dos demais impactos na reorganização da estrutura produtiva, dos fluxos de mercadorias, tanto de insumos quanto de vendas, exportações. O imperialismo americano manteve esse front da guerra fria e expandiu a OTAN mesmo com o Pacto de Varsóvia tendo sido desmobilizado e é Europa é quem vai pagar”, destaca o professor.
S.C
Confira a íntegra da análise do professor Ildo Sauer
ILDO SAUER
“O mundo hoje consome um pouco menos de 100 milhões de barris por dia de petróleo. Os três maiores produtores são, pela ordem, Estados Unidos, cerca de 18 milhões de barris por dia, 14 às vezes, a Arábia Saudita, que produz em torno de 10 milhões e a Rússia, oscilando em torno de 8 e 9 milhões de barris por dia.
Os maiores importadores, evidentemente, são ainda a China, os países da Europa e os Estados Unidos. Este último oscilando em função da conjuntura, porque toda vez que o petróleo está com um preço elevado, há uma retomada muito forte da produção do shale oil, o óleo de xisto dos EUA. O país consome acima de 20 milhões de barris, portanto são importadores líquidos, relativamente modestos pela escala. São cerca de 2 milhões de barris por dia. Eles exportam cerca de 7 milhões e importam cerca de 8 ou 9 milhões de barris por dia.
RÚSSIA EXPORTA 800 MIL BARRIS PARA OS EUA
Esse é o quadro. Então, o fato deles bloquearem a importação de petróleo da Rússia, que é de um pouco menos de 800 mil barris por dia, é, em termos gerais, relativamente insignificante em volume relativo, relativamente às condições do mercado.
O impacto maior dessas medidas tem a ver com a conjuntura, com o momento atual e a sinalização de que há uma interrupção dos fluxos normais estabelecidos entre produção e consumo de petróleo. Um desarranjo na destinação, na produção e na logística.
O bloqueio do petróleo da Rússia em direção aos Estados Unidos não afeta a economia americana.
Ele facilmente tem condições de buscar o produto em outros lugares. Inclusive está pressionando para buscar da própria Venezuela, do próprio Irã. Ironicamente, os EUA está buscando reorganizar suas relações estratégicas, geopolíticas, revendo o bloqueio imposto à Venezuela e ao Irã. Bloqueios imorais, criminosos, economicamente falando.
“Ironicamente, os EUA está buscando reorganizar suas relações estratégicas, geopolíticas, revendo o bloqueio imposto à Venezuela e ao Irã. Bloqueios imorais, criminosos, economicamente falando”
Eles também estão buscando a importação do Brasil. Estes são os focos deles. E evidentemente do México e Canadá, que são vizinhos.
A Arábia Saudita recentemente era um dos grandes exportadores para os Estados Unidos. Mas, em função da conjuntura interna, houve um rearranjo, e eles tiveram que buscar petróleo em outros lugares. Diminuiu da Arábia Saudita e aumentou a importação da Rússia. A Rússia se aproximou do segundo lugar como supridor dos Estados Unidos, atrás do Canadá.
Em termos quantitativos isto não é tão significativo porque pode haver, no médio prazo, um rearranjo dos fluxos e da logística por parte da Rússia. O petróleo que os Estados Unidos importam da Rússia, em situação normal, seria facilmente realocado pela Rússia em outros países, especialmente, por exemplo, a própria China, que é o grande importador.
Do ponto de vista das relações, da estrutura de mercado, essa súbita interrupção do sistema traz consequências. Porque a logística, o transporte, a produção, o carregamento, são procedimentos que levam de semanas a meses, quando está tudo definido. Recentemente, por exemplo, se viu as dificuldades de cargueiros no mundo para todo tipo de carga, inclusive petróleo. Então tudo isso afeta o mercado.
PREÇOS DISPARARAM
E a impressão de que haveria mais ações que desorganizam ainda mais a estruturação dos fluxos da produção fez com que se respondesse com o aumento dos preços, que subiram imediatamente. Estava na ordem de 80 dólares, no começo da guerra, foi para 100, e agora passou de 120, 123, 130 dólares o barril.
Como a Rússia pode manter sua exportação de petróleo, o preço mais alto significa, no fundo, uma remuneração maior, embora, como há restrições, têm-se notícia de que há negociações no mercado onde a Rússia estaria exportando com preço abaixo do normal.
A Rússia toma essas medidas para suplantar essas restrições e esse desarranjo temporário. Porque, se, de repente, ela perde um comprador de quase 800 mil barris por dia, e o Reino Unido, que estava bem menos do que isso, mas também era importador, isso tudo significa uma interrupção.
Mas, no curto prazo, o aumento do preço, mantidas as exportações da Rússia, ela no fundo vai ter uma espécie de prêmio temporário.
“(…) no curto prazo, o aumento do preço, mantidas as exportações da Rússia, ela no fundo vai ter uma espécie de prêmio temporário”
Uma questão importante é que com o desarranjo e o bloqueio econômico, a região que vai ser mais afetada, do ponto de vista da estrutura econômica, vai ser a Europa. A crise do suprimento do petróleo, do gás natural, de muitas outras matérias estratégicas vai atingi-la. A Rússia exporta metais, fertilizantes, trigo, cereais. Tudo isso faz com que a região que mais vai sofrer é a que está ajudando a impor as restrições.
EUROPA SERÁ A GRANDE PREJUDICADA
Os Estados Unidos é o país menos afetado do ponto de vista econômico porque tem uma relação mais ampla e não tem uma dependência tão direta da economia russa como tem a europeia. Então, ironicamente, a manutenção da Europa como um auxiliar caudatário da geopolítica norte-americana, de manter o confronto com a Rússia, retomando os canais da guerra fria, que estavam estruturados contra a União Soviética, só lhe trará grandes prejuízos.
O imperialismo americano manteve esse front. Eles expandiram a OTAN mesmo com o Pacto de Varsóvia tendo sido desmobilizado.
Se se mantiver como caudatária disso, a Europa vai ser a maior prejudicada. Vai ser quem vai ter as maiores restrições, não só por causa do petróleo, mas por causa dos demais impactos na reorganização da estrutura produtiva dos fluxos de mercadorias, tanto de insumos quanto de vendas e exportações.
“A Europa vai ser quem vai ter as maiores restrições, não só por causa do petróleo, mas por causa dos demais impactos na reorganização da estrutura produtiva dos fluxos de mercadorias, tanto de insumos quanto de vendas e exportações”
POPULAÇÃO BRASILEIRA JÁ SENTE AS CONSEQUÊNCIAS
No caso particular do Brasil, evidentemente que esses aumentos de preços, de 80 para 123 dólares o barril, estão mantendo a pressão dos acionistas da Petrobrás, que são majoritários. São 62% de ações privadas. Isso dá o controle à U.S. Securities and Exchange Commission, à CVM aqui no Brasil e ao próprio CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que tem sido usado como linha auxiliar para desmantelar a estrutura integrada de refino da Petrobrás.
Tudo atua no sentido de que os dirigentes da Petrobrás que, pela lei, são pressionados manter os preços de paridade internacional, continuem aumentando os preços, aumentando os lucros para os acionistas em decorrência dessa crise. Com isso eles aumentam o sofrimento da população brasileira. Pela Constituição, o petróleo pertence à população brasileira. A Petrobrás é uma construção do povo brasileiro, mas a população é quem sai prejudicada da crise.
Além disso, onde a produção da Shell mais cresce no mundo é no Brasil. A Equinor também está ocupando um espaço muito grande na produção de petróleo. Elas querem manter necessariamente os preços elevados. Elas estão se opondo drasticamente à ideia de implantação do imposto de exportação que permitiria fazer caixa para criar um fundo para reciclar o excedente, o Brasil exporta um milhão de barris de petróleo e importa 500 mil barris de derivados.
A associação dos importadores diz que se não mantiverem o preço de paridade internacional, vai haver desabastecimento, o que não é verdadeiro. O consumo brasileiro está em torno de 2,3 milhões de barris por dia e a capacidade de refino é um pouco maior do que isso.
Então, no máximo, seríamos importadores e exportadores marginais de derivados de petróleo. É claro que a venda da refinaria da Bahia, que produz cerca de 330 mil barris, quase 15% da demanda brasileira de derivados, fez com que ela não tenha nada a ver com a Petrobrás mais.
BRASIL É AUTOSSUFICIENTE EM PETRÓLEO E REFINO
Eles ameaçam exportar seus derivados se a política de preço dor alterada. Isso acaba agravando a situação que se criou a partir de 2014. Ironicamente, por algum motivo inexplicável racionalmente, as refinarias do Brasil passaram a reduzir a sua utilização, que estava em torno de 90 a 95%, para em torno de 70 a 75%. Já que a capacidade de refino é semelhante à demanda, o país passou a importar cerca de 25% dos derivados consumidos no Brasil, cerca de 500 mil barris por dia. O Brasil exporta um milhão de barris de petróleo e importa 500 mil barris de derivados por dia.
Esse intrincado esquema, criado entre 2013 e 2014, faz com que se mantenha essa pressão para que um dos grandes prejudicados desse aumento do petróleo seja a população brasileira. Ela que compra diesel, gasolina, gás de cozinha. O que pode diminuir os preços é que o grande impacto que vai ter essa crise na economia europeia e outras regiões do mundo pode levar a uma diminuição das atividades econômicas e, portanto, provocar uma redução da demanda de petróleo.
No curto prazo então haverá os aumentos, que virão não pela redução da circulação do petróleo, mas pelo aspecto especulativo em torno do petróleo. É a esfera financeira que opera em torno do petróleo, fazendo apostas.
Esse mercado especulativo é muito maior do que o próprio mercado físico de petróleo. Isso influencia a tendência de preços. Imediatamente há um efeito externo, sobre a estrutura do petróleo. A médio prazo, a tendência econômica é que isto tende na voltar para um patamar diferente.
No Brasil, se for mantida a legislação feita por FHC, que obriga a Petrobrás a se submeter às pressões dos acionistas e especuladores, e não mudou nos governos seguintes, o impacto mais importante será novamente contra a população brasileira.
“No Brasil, se for mantida a legislação feita por FHC, que não mudou nos governos seguintes, o impacto mais importante será novamente contra a população brasileira”
A Petrobrás, com 62% de acionistas privados, tem lucros enormes e isso não tem ido para a população. Não há decisão política de mudar a legislação para mudar a repartição do excedente econômico obtido com o petróleo em benefício de seu dono e dos demais consumidores. A saída de curto prazo é reduzir a fração que hoje cabe, de maneira desproporcional, aos acionistas e, a médio prazo, mudar toda essa legislação.”
É preciso expandir a capacidade de refino instalada no país. Hoje há uma equivalência entre a demanda e a capacidade de refino.
O conceito das refinarias premium que além de garantir o pleno abastecimento da demanda interna permitiriam exportar derivados com biocombustíveis foi abandonado, em parte, como resposta aos processos de corrupção na sua execução. A limitação da capacidade de refino tem sido o argumento para as importações e referência internacional de preço para evitar potencial desabastecimento.
Por esta razão, no curto prazo a solução emergencial seria a implantação de um imposto de exportação sobre petróleo e derivados. Com isto a referência de custo de oportunidade para o petróleo e derivados no mercado interno seria inferior ao preço internacional na proporção do imposto.
Além disso a receita deste fundo, junto com royalties, participação especial e ganho com petróleo que cabe ao país nos contratos de partilha, administrados pela PPSA, podem ser usados para estabilizar as oscilações de preços e, principalmente, para subvenções para fins sociais, famílias carentes, e para empresas com função estratégica para o desenvolvimento nacional.
De pleno acordo, Prof. Dr. Ildo Luis SAUER!
Atte.
Alvaro.