
“Assim como os conselheiros das cortes reais do século XIV acreditavam na astrologia para prever o fim da Peste Negra, a crença de Trump de que um clima mais quente interrompe a pandemia do coronavírus está totalmente errada”
Acabo de tomar conhecimento da carta do editor da Revista Science, H. Holden Thorp, dirigida a Donald Trump, onde ele, em resposta a um pedido do presidente para que o comunidade científica apressasse a criação de uma vacina contra o coronavírus, diz, entre outras coisas, o seguinte. “Você atacou a ciência nos últimos 4 anos, cortou verbas, chamou os cientistas de mentirosos e agora quer velocidade? Ciência não se faz da noite para o dia, precisa de investimento e, sobretudo para uma vacina, precisa-se de tempo e investimento. Você não pode atacar os cientistas quando não gosta da ciência e cobrá-los quando resolve que gosta e precisa deles”.
Este episódio revela os motivos que levaram os EUA, de um país respeitado pela qualidade e o rigor de sua pesquisa científica, particularmente a ciência estatística, a estar em dificuldades para trabalhar as informações sobre a atual epidemia do coronavírus. O desmonte dos órgãos de pesquisa e controle em Saúde, provocado pelos quatro anos de Trump, que está vindo à tona com declarações como esta do editor da Science, explicam as dificuldades que o mundo está tendo para obter informações fidedignas sobre a situação da epidemia naquele país.
Mais do que isso, o relato revela o grau de obscurantismo que tomou conta do governo norte-americano com a chegada ao poder da corrente liderada por Donald Trump.
Outro aspecto que pode ser observado é que o Brasil sob Bolsonaro vive uma situação muito semelhante ao que está se passando nos EUA. As declarações e comportamentos do presidente brasileiro, como o desdém em relação à epidemia de coronavírus, por exemplo, são cópias idênticas do que faz Donald Trump no país do norte.
Os dois usaram seus métodos – também iguais – de comunicação para dizer que os números e as informações sobre o coronavírus eram uma “fraude” engendrada pelos seus oponentes. Bolsonaro chegou a culpar a mídia tradicional pelo que ele chamou de “exagero” sobre o coronavírus.
E o pior é que não há originalidade nenhuma nas bobagens ditas por Bolsonaro. O que ele diz aqui não passa de imitação de Trump. Aqui como lá, cientistas reconhecidos internacionalmente foram agredidos publicamente pelo chefe da nação. É o mesmo obscurantismo, o mesmo ódio à ciência e aos cientistas.
Quem não se lembra do que aconteceu com Ricardo Galvão, pesquisador premiado internacionalmente e diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais? Agora, vemos a Science dizer o mesmo sobre Trump. São tempos sombrios estes vividos pelos dois países.
Não há como não se preocupar com episódios como este que descrevemos aqui. “(…) O Dr. Jerome Adams, o US Surgeon General e anestesista, instou os americanos a obterem uma vacinação contra a gripe sazonal, ainda que isso não tenha efeito sobre o coronavírus. Anteriormente, Trump perguntara a especialistas médicos e funcionários de empresas farmacêuticas se a vacina comum contra a gripe não poderia ser usada para prevenir o coronavírus. Os líderes das instituições médicas e da Big Pharma mal conseguiram acreditar no que ouviam, pois Trump fazia uma série de perguntas e pontificava sobre assuntos que não estavam dentro dos padrões normais nem de um aluno do terceiro ano da escola primária”.
Mas, tudo isso que dissemos até agora é apenas uma introdução e um convite para a leitura do excelente artigo do jornalista norte-americano Wayne Madsen, que aponta em seu trabalho a ascensão dessas forças reacionárias obscurantistas e anti cientificas nos Estados Unidos, e que tem seus seguidores no governo brasileiro.
Ele chama isso de “o fim da era do iluminismo”, usado pelo autor como título de seu artigo. Weyne compara o comportamento que está tendo Donald Trump – e por tabela Jair Bolsonaro – em relação à pandemia do coronavírus com o comportamento que tiveram alguns governantes europeus na época da Peste Negra do século XIV, que vitimou milhões de pessoas.
“Assim como os conselheiros das cortes reais do século XIV acreditavam na astrologia para prever o fim da Peste Negra, a crença de Trump de que um clima mais quente interrompe a pandemia do coronavírus está totalmente errada”, diz um trecho do artigo. Ele mostra que a superstição, a crendice, o curanderismo, a astrologia, o ocultismo e a ignorância estão presentes nas correntes políticas que chegaram ao poder nos EUA e no Brasil. Este artigo contribui para a tomada de consciência do que isso pode representar para o futuro da civilização. Com vocês, “O fim da era do iluminismo”.
S.C.
O fim da Era do Iluminismo
WAYNE MADSEN [*]
A Era do Iluminismo se deu entre os séculos XVII e XIX. Ela conduziu à Era Industrial e, na sequência, às Eras do Espaço e da Informação. Estas épocas históricas levaram a Humanidade a grandes avanços na ciência, na medicina, no intercâmbio de informações e na qualidade de vida. Hoje, todos estes avanços da Humanidade estão ameaçados por aqueles que pretendem que a sociedade retorne a uma era marcada por superstição, crença em magia e milagres, ignorância, intolerância racial e religiosa e sexismo abjecto.

A atual pandemia do coronavírus COVID-19 fez mais para incentivar uma rejeição global do método científico do que, talvez, do que qualquer outro evento de memória recente. Desde a Peste Negra do século XIV, líderes de governos e membros do público têm apresentado políticas que se opõem à ciência médica, à verdade e à racionalidade. Tal como o coronavírus, a Peste Negra teve origem no Extremo Oriente e, finalmente, graças às pulgas de ratos que transportavam a pestilência para o oeste, acabaram no Médio Oriente e na Europa. Além de mais de 60% da população da Europa morrer na pior pandemia do mundo, mais de 375 milhões de pessoas em todo o mundo podem ter sucumbido à doença. Foi durante a pandemia que a ideia de decretar quarentenas de cidades inteiras ficou estabelecida, algo que as autoridades chinesas e italianas encenaram com o COVID-19.
TRUMP APRESENTOU INFORMAÇÕES FALSAS SOBRE O VÍRUS
O principal entre aqueles que lançaram a ciência e as melhores práticas médicas ao vento é Donald Trump, o qual politizou o coronavírus ao chamar a reação da mídia de “fraude” engendrada pelos seus oponentes do Partido Democrata. Trump também utilizou o vírus para iniciar outros ataques políticos, incluindo chamar o governador Jay Inslee, do estado de Washington, que experimentou um grande surto de coronavírus, de “cobra”. Trump apresentou informações evidentemente falsas sobre o vírus, contradizendo até mesmo o seu próprio secretário de Saúde e Serviços Humanos, Alex Azar, e funcionários dos Institutos Nacionais de Saúde, Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).
Depois de as autoridades de saúde pública dos EUA pedirem àqueles que apresentavam sintomas do COVID-19 que se auto-colocassem em quarentena dentro de casa, Trump instou as pessoas a irem trabalhar. Essa “orientação” foi repercurtida pelo assessor econômico da Casa Branca de Trump, Larry Kudlow, ex-viciado em cocaína. Kudlow afirmou falsamente que os Estados Unidos tinham “contido” o vírus e permaneciam “herméticos” a infecções de origem estrangeira. Trump e Kudlow também incentivaram as pessoas a ignorarem as advertências de saúde pública, a trabalharem e a prosseguirem suas rotinas normais.
PADRÃO DE ALUNO DE TERCEIRO ANO DA ESCOLA PRIMÁRIA
O Dr. Jerome Adams, o US Surgeon General e anestesista, orientou os americanos a obterem uma vacinação contra a gripe sazonal, ainda que isso não tenha efeito sobre o coronavírus. Anteriormente, Trump perguntara a especialistas médicos governamentais e funcionários de empresas farmacêuticas se a vacina comum contra a gripe não poderia ser usada para prevenir o coronavírus. Os líderes das instituições médicas e da Big Pharma mal conseguiram acreditar no que ouviam, pois Trump fazia uma série de perguntas e pontificava sobre assuntos que não estavam dentro dos padrões normais nem de um aluno do terceiro ano da escola primária.
Trump também insistiu em usar números por ele elocubrados para descrever uma pandemia muito séria. Ele disse que seu “palpite” (“hunch”) era que a taxa de mortalidade do COVID-19 estava abaixo de 1%. De fato, segundo a OMS, é de 3,4% globalmente, um número que Trump chamou de “falso”. Na realidade, a taxa de mortalidade dos casos de coronavírus nos Estados Unidos era, no momento deste artigo, a segunda maior do mundo: 5,7%. Os Estados Unidos também ficaram atrás de outros países que estão testando para o vírus. Trump afirmou que todo americano que quisesse fazer o teste poderia fazê-lo. A verdade é que não havia kits de teste suficientes para verificar todos os americanos. Inicialmente, Trump proibiu os estados e governos locais de realizarem seus próprios testes, exigindo que fossem realizados pelo CDC. O único interesse de Trump era suprimir o número de americanos infectados.
MAPAS ASTROLÓGICOS NA PESTE NEGRA
As recomendações de Trump e de conselheiros seus têm sido tão ridículas quanto algumas das políticas adoptadas por governantes do século XIV em relação à Peste Negra. Durante a peste da Peste Negra, alguns governantes europeus recorreram a mapas astrológicos para explicar a doença. Trump virou-se para um calendário normal e disse acreditar que o clima mais quente da primavera faria com que o coronavírus desaparecesse. Numa reunião na Casa Branca, Trump disse: “Isto vai desaparecer. Um dia, como num milagre, desaparecerá. Assim como os conselheiros das cortes reais do século XIV acreditavam na astrologia para prever o fim da Peste Negra, a crença de Trump de que um clima mais quente interrompe a pandemia do coronavírus está totalmente errada. Tal como observado na disseminação do coronavírus em países de clima quente como Índia, Filipinas, Indonésia, Malásia, Singapura, Tailândia, Equador e Nigéria, as previsões epidemiológicas de Trump são tão ridículas quanto a sua rejeição à ciência da mudança climática e aos padrões de segurança do meio ambiente. Em ciência, há fatos, não “milagres”.
A política de Trump em relação à pandemia está sendo reactiva, ao invés de proactiva, foi antecedida por enormes cortes orçamentários nas verbas para o combate à pandemia nos Estados Unidos. Entre as entidades que poderiam controlar a pandemia que foram desestabilizadas por Trump estavam a Global Health Security and Biodefense do Conselho de Segurança Nacional e a sua contrapartida no Departamento de Segurança Interna. Trump também reduziu severamente o orçamento do Serviço de Inteligência Epidêmica (CDI) do CDC, também conhecido como “detetives de doenças” do governo. Trump disse ao CDC durante uma visita recente que a melhor maneira de detectar pontos quentes de coronavírus era “sentar e esperar” que eles aparecessem. O primeiro-ministro da Escócia, Nicola Sturgeon, rebateu Trump num tweet: “Há uma responsabilidade enorme de todos os líderes num momento como este (eu sei pois sinto isso intensamente) em ouvir a ciência, entender suas implicações, aplicar julgamento e assegurar que tudo isso seja refletido em mensagens públicas claras, consistentes e responsáveis”.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) lamentou o fato de que, juntamente com a pandemia de coronavírus, houvesse uma “infodemia” de informações falsas sendo difundidas por mídias irresponsáveis e pela Internet. Aqueles de ascendência asiática foram sujeitos a ataques xenófobos só porque os primeiros casos de vírus foram descobertos em Wuhan, China. Durante a Peste Negra, europeus acusaram como bodes expiatórios como responsáveis pela praga mortal diversos grupos. Eles incluíam judeus, estrangeiros, mendigos, leprosos, pessoas com acne ou psoríase e o povo cigano. Trump sugeriu fechar a fronteira dos EUA com o México, um sinal de que ele gostaria de utilizar os migrantes da América Latina, mais uma vez, como um bode expiatório conveniente para apoiar as suas políticas xenófobas.
SUBESTIMAÇÃO DOS NÚMEROS
O coronavírus também resultou no aumento de “negação” em alguns países. Alguns países começaram a subestimar o número de casos de coronavírus ou negaram a existência de alguém dentro de suas fronteiras que houvesse contraído o vírus. O Irã acusou a Turquia de não ter relatado quaisquer casos de vírus.
Durante vários dias Trump insistiu em que havia apenas 15 casos nos Estados Unidos e que todos os pacientes se haviam se recuperado, exceto um. O número real era, obviamente, muito maior. Embora Trump tenha insistido que passageiros de companhias aéreas que chegavam de zonas quentes de vírus eram examinados nos aeroportos dos EUA, isso não era o caso. O governo completamente corrupto e inepto de Trump começou a emular países como o Zimbabwe e o Paquistão. Exemplo: os passageiros que chegavam ao Aeroporto Internacional Robert Gabriel Mugabe, em Harare, recebiam apenas verificações superficiais da temperatura, ao passo que no Aeroporto Internacional Jinnah, em Karachi, as autoridades do aeroporto estavam a extorquir dinheiro dos passageiros chegados em troca da permissão para que saíssem do aeroporto e ultrapassassem os procedimentos médicos. No Aeroporto Internacional John F. Kennedy, em Nova York, os passageiros que chegam em voos diretos de Milão, a zona quente italiana, não relataram exames médicos ao passar pela imigração.
As sanções draconianas de Trump contra o Irã também contribuíram para a disseminação maciça do coronavírus e os falsos rumores sobre ele naquele país. O Irã até foi impedido pelo governo Trump de acessar um painel da web de estatísticas globais de coronavírus mantido pela Johns Hopkins University.
DESCONSIDERAM A CIÊNCIA
As políticas de Trump, bem como as de alguns outros dirigentes medievalistas, não são muito diferentes dos poderes que existiam durante o período negro da Peste bubônica. O escritor italiano do século XIV, Giovanni Boccaccio, escreveu sobre os equivalentes do séc. XIV a Trump, Kudlow e os partidários de Trump que atualmente desconsideram a ciência no que diz respeito ao coronavírus – alguns acreditam que os efeitos do vírus estão sendo exagerados ou que o próprio vírus é uma “farsa”. Boccaccio escreveu que a Europa do séc. XIV sofria devido aos que “adulteravam as suas mentes com música e outras delícias que pudessem imaginar. Outros, cuja tendência estava na direção oposta, afirmavam que se devia beber livremente, frequentar locais públicos aprazíveis, sentir prazer com a música e divertir-se, satisfazer qualquer apetite, rir e gracejar por tudo e por nada.
Na Europa do século XIV, havia quem se aproveitasse da praga para vender produtos que falsamente alegavam afastá-la, incluindo, segundo Boccaccio, “flores ou ervas aromáticas ou diversos tipos de especiarias”. O procurador-geral de Nova York advertiu recentemente o aliado de Trump e execrado televangelista Jim Bakker a deixar de vender uma “Solução de Prata” (“Silver Solution”) no seu sítio da web como uma terapia preventiva contra o coronavírus. Bakker não é o único a ladrar no carnaval pró Trump, a aproveitar-se da pandemia para vender toda espécie de terapias “banha de cobra”.
A propensão de Trump a culpar outros países pelos males da América teve um efeito dominó global em relação ao coronavírus. O secretário de Estado Mike Pompeo iniciou as recriminações internacionais ao acusar a China de encobrir informações quanto ao que ele continua a chamar de “vírus Wuhan”. Pompeo também culpou o sistema político da “China Comunista”, uma expressão pejorativa da Guerra Fria há muito esquecida, de espalhar o vírus. Hipocritamente, Pompeo fez sua alegação espúria acerca da alegada censura chinesa, quando Trump declarou que nenhuma parte do governo federal deveria revelar informações sobre o COVID-19, a menos que isso fosse autorizado pelo gabinete do vice-presidente Pence.
ARMA BIOLÓGICA
O senador aliado de Trump, Tom Cotton, do Arkansas, alegou, sem provas, que o coronavírus fora desenvolvido como uma arma biológica num laboratório do governo chinês em Wuhan. Um político iraniano fez a mesma acusação contra os Estados Unidos, afirmando que o vírus era uma arma biológica americana. A Arábia Saudita culpou o Irã pelos seus casos de coronavírus. O primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, cuja renúncia foi exigida em mais de um milhão de postagens no Twitter pelo seu manuseio inepto do coronavírus, impôs uma quarentena de 14 dias a todos os visitantes da Coreia do Sul e da China, inflamando a histórica inimizade entre o Japão e os países.
Trump é mais um imperador Nero inconsciente do que está a acontecer por todo o seu país e no mundo. O coronavírus está a tornar-se o Chernobyl e o furacão Katrina de Trump, embrulhados num único evento que revelou a total inaptidão, ignorância, narcisismo e constante falsificação da verdade de Trump. O preço político que ele e os republicanos seus adoradores pagarão nas eleições de Novembro será um dos mais drásticos da história moderna.
[*] Jornalista investigativo dos EUA, membro da Sociedade de Jornalistas Profissionais (SPJ) e do National Press Club
Artigo publicado originalmente em Strategic Culture Foundation