No dia 11 de junho, Elizabeth Lederer renunciou a seu cargo de professora na Faculdade de Direito da Universidade de Colúmbia. Alguns dias antes, a editora e a distribuidora de Linda Fairstein anunciaram seu desligamento das empresas. São justas, mas tardias consequências de uma infâmia na qual as duas tiveram papel central 30 anos antes.
Fairstein e Lederer foram as promotoras do caso que ficou conhecido como Os Cinco do Parque, uma das injustiças mais perversas impostas a jovens negros na história do sistema jurídico norte-americano. A primeira comandou as investigações e a segunda a acusação aos jovens diante da Corte nova-iorquina.
No dia 31 de maio estreou o seriado Olhos que condenam (When they see us), dirigida por Ava DuVernay, que conta o verdadeiro martírio que assolou as vidas de Korey Wise, Kevin Richardson, Raymond Santana, Antron McCray e Yusef Salaam depois que Lederer e Fairstein resolveram, de forma insana, advogar sua condenação coletiva por estupro de uma mulher branca que corria no início da noite de 19 de abril de 1989, no Central Park de Nova Iorque, ainda que não houvesse nenhuma prova e que a única relação entre os garotos que caíram na mira da justiça nova-iorquina e o estupro era a de que eles foram pegos pela polícia andando com um grande grupo de jovens do Harlem na mesma noite do crime.
Com testemunhos filmados e assinados sob intensa coação (segundo o filme, alguns chegaram a sofrer 40 horas de interrogatório sem comida nem sono e sem acesso a advogado ou parentes) e com um desempenho teatral, Lederer e Fairstein conseguem sua condenação pelo júri.
Mesmo depois do caso desvendado, o que invalidou a sentença (e mais não digo, para não ser acusado pelo colega de redação, o Thiago, de “dar um spoiler” – termo na moda para designar a atitude estraga-prazer quando alguém conta o final de um filme), Fairstein a mais voraz – na busca por notoriedade, lixando-se para a justiça ou as consequências de sua insana perseguição – e que comandou a equipe de detetives brancos que atuou na pressão extrema para extrair as confissões dos garotos, continua, segundo artigo de Kate Storey para a revista Esquire, a dizer que eles são culpados e que o seriado é uma “cesta de mentiras”.
DuVernay, diretora do seriado, afirma que procurou Fairstein para que ela desse sua versão sobre os acontecimentos, mas a ex-promotora lhe disse que só falaria depois que pudesse ver o roteiro e tê-lo aprovado por seu advogado, o que a diretora do filme obviamente recusou.
Apesar da insistência de Fairstein de que foi injustamente retratada, inúmeras pessoas acham o contrário, em particular os Cinco do Central Park, como passaram a ser denominados e que são unânimes em dizer que ela e Lederer foram as causadoras de sua desgraça. Um deles, Raymond Santana, que não é negro e sim de origem portorriquenha, destaca que quando a promotoria descobriu que os testes de DNA, não revelavam nenhuma correspondência entre qualquer deles e o estupro, “era sua chance de recuar e dizer ‘deixem-me reavaliar, há algo de errado aqui’”, mas ela “deixou escapar a oportunidade de realmente fazer o certo e manteve a pressão na mesma direção”.
Antes da renúncia da procuradora Lederer, 10.000 pessoas assinaram uma petição ao reitor da Universidade de Colúmbia pedindo seu afastamento. Dias antes da renúncia, também se manifestaram contra a continuidade da ex-promotora como professora, os integrantes da Associação de Estudantes Negros de Direito (a Black Law Students Association), que acrescentaram o pedido de que no currículo da Faculdade de Direito sejam incluídos ensinamentos contra o racismo.
O reitor da Universidade de Colúmbia, Gillian Lester, declarou que o seriado “reascendeu uma dolorosa – e vital – conversação nacional sobre raça, identidade e justiça criminal”. Em sua mensagem o reitor acrescenta parte da carta de renúncia de Lederer, na qual ela, pelo menos parcialmente, reconhece a comoção que sua ação acabou criando ao declarar que “dada a natureza da publicidade gerada pelo retrato trazido pela Netflix sobre o caso do Central Park, é melhor para mim não renovar a minha solicitação de inscrição enquanto professora”.
Aliás, a procuradora Lederer, em um dado momento das investigações, especialmente sobre a inconsistência de qualquer relação entre o DNA do sêmen encontrado em uma meia no local do crime e o de qualquer dos acusados, chegou a pedir a Fairstein que desista da acusação, mas foi repreendida acaloradamente por Fairstein que, como mostra o filme, insiste em que uma “oportunidade” em que todo o país as estava acompanhando não devia ser perdida. Envolvida pela expressa ganância de Fairstein e pela sua própria e, ainda, colocando seu personalismo acima das noções mais elementares de justiça, Lederer vai adiante e prossegue com o caso mesmo com clara noção da ausência de elementos probatórios em mãos da promotoria.
Já Fairstein, mesmo depois da comprovada inocência dos acusados e de sua reparação, insiste na culpa dos cinco vilipendiados pela (in)Justiça norte-americana, sem achar necessária qualquer comprovação adicional, apenas sua augusta palavra. 120.000 já assinaram uma petição a ser enviada para as editoras, livrarias e distribuidoras no sentido de boicotarem os seus romances. A petição pede ainda que ambas sejam levadas a julgamento pela infâmia que cometeram.
Quanto às consequências, leves, se comparadas ao mal que perpetraram em busca de notoriedade e imbuídas de racismo, demonstram que Ava DuVernay, com seu filme, uma série em quatro capítulos, não apenas resgatou essa dolorosa via imposta aos cinco adolescentes e a seus familiares, mas ajudou a que a justiça, ainda que tardia, não seja inexistente, mesmo no corrompido, falho e parcial sistema norte-americano.
NATHANIEL BRAIA