Justiça pode requisitar diretamente informações de provedores no exterior. Plataformas digitais estrangeiras com sede no Brasil queriam um trâmite mais burocrático para retardar ou driblar as investigações de atos criminosos pela internet e foram derrotadas
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na quinta-feira (23), de forma unânime, que é constitucional a Justiça brasileira solicitar dados diretamente aos provedores de internet estrangeiros, com sede ou representação no Brasil sem, necessariamente, seguir o procedimento do acordo celebrado entre o Brasil e os Estados Unidos (ver explicação mais abaixo).
A decisão é um marco na investigação dos atos golpistas e agilizará a apuração de crimes contra o país, como foi o ato terrorista de 8 de janeiro, em Brasília.
Os golpistas invadiram e depredaram as sedes do STF, Palácio do Planalto e Congresso Nacional, mobilizados através da internet, visando criar um clima de caos propício a um golpe bolsonarista para anular o resultado legítimo da eleição que deu vitória a Luiz Inácio Lula da Silva.
Os ministros do STF argumentaram que a decisão está de acordo com o que prevê o Marco Civil da Internet, também julgado constitucional pela Corte.
O julgamento do STF significa uma derrota para as plataformas digitais, como Twitter, Facebook e Telegram, que não querem cooperar com a Justiça brasileira.
O plenário do STF seguiu o voto do relator da caso, Gilmar Mendes, e concluiu que, quando for possível, os pedidos de informação devem ser direcionados a filiais ou escritórios no Brasil para agilizar o acesso a dados necessários em investigações penais.
Mas não a via principal de obtenção dos dados.
É o que o ministro Alexandre de Moraes já vinha fazendo em investigações que envolviam Jair Bolsonaro (PL) e aliados, como os inquéritos das fake news, das milícias digitas e, agora, dos atos antidemocráticos. No entanto, as plataformas fazem corpo mole e até desobedecem as determinações.
O Telegram, por exemplo, foi multado em R$ 1,2 milhão por descumprir uma ordem judicial para bloquear a conta do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG). Moraes já chegou a tirar o aplicativo do ar no Brasil e citou o episódio como exemplo de coerção possível, se houver desobediência.
Mas as plataformas estrangeiras questionaram esses métodos na Corte. Muitas alegam, para driblar as requisições da Justiça, que não podem ceder as informações porque os dados estão armazenados nas matrizes
As plataformas digitais, interessadas em não prestar informações à Justiça e retardar os processos, entraram com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), através da Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação (Assespro Nacional).
A Assepro Nacional alegava que as empresas só tinham que ceder as informações depois que o pedido da Justiça e outras autoridades brasileiras passassem por acordos internacionais ou pela Justiça do país onde ficam os servidores.
Segundo a Assepro, o acesso judicial a dados de usuários da internet por provedores sediados no exterior deveria, necessariamente, seguir o trâmite previsto no Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal (MLAT, em inglês), assinado entre o Brasil e os Estados Unidos.
O acordo de cooperação foi firmado para facilitar investigações criminais, como a tomada de depoimentos, entrega de documentos, transferências de presos, bloqueio de bens e execução de pedidos de busca e apreensão. O texto prevê que as solicitações devem passar por uma autoridade central designada por cada país – no caso do Brasil, o Ministério da Justiça.
Em seu voto, Gilmar Mendes, questionou que seguir esse trâmite causa lentidão na investigação. “Na prática, esses acordos são bastante complexos e morosos. Mesmo quando o governo do país em que as provas estão armazenadas concorda em compartilhá-las com o Brasil, é necessário que sejam cumpridas etapas formais desse processo”, explicou o ministro.
“Essa letargia dificulta a apuração de delitos cometidos em ambiente virtual, como em casos de incitações públicas de violência entre Forças Armadas e instituições civis, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, ameaças contra autoridades públicas, terrorismo, pedofilia, além de difamação, calúnia e injúria”, enfatizou.
“O Supremo Tribunal Federal decidiu (…) que as empresas de tecnologia que operam aplicações de internet no Brasil devem cumprir determinações do judiciário de fornecimento de dados para elucidação de investigações criminais, mesmo quando parte desses dados estiver armazenada em servidores localizados em países estrangeiros”, explicou em nota o ministro Gilmar Mendes.
A Corte “ressaltou que as empresas de internet que ofertam serviços no Brasil devem estar totalmente submetidas à jurisdição nacional, independentemente do local em que decidem instalar seus data centers [centro de processamento de dados]”.
O julgamento começou no mês de outubro e foi suspenso por pedido de vista de Moraes.
No julgamento foi citado o fato dos usuários infratores terem facilidade de apagar os conteúdos publicados nas redes sociais. A exclusão das postagens não isenta as plataformas de manter os registros de acesso, mas na prática dificulta a produção de provas nos casos em que as autoridades brasileiras não conseguem contato com os provedores no exterior.
“É diferente para conseguir uma quebra de sigilo bancário, os dados estão no banco, ou o compartilhamento de processos. Aqui [nas redes sociais] a celeridade necessária é muito grande e a possibilidade de simplesmente ocorrer um sumiço total das provas é maior ainda”, exemplificou Moraes. “Sem a obtenção da prova, não haverá responsabilização”, avaliou o ministro.
“Não importa se o provedor é em Dubai, na Rússia, em Cingapura, se essas informações estão disponíveis e a transmissão dessas informações se dá pelas antenas de telecomunicação brasileiras, a Justiça brasileira tem alcance, está dentro da jurisdição brasileira, não se pode esconder essas informações”, frisou Moraes.
O ministro ressaltou que o trâmite através do acordo não é eficiente para o andamento célere da investigação. “Funciona bem para todo tipo de cooperação, mas não vem funcionando bem nessa troca de informações ou colheita de provas relacionadas a grandes plataformas”, disse o ministro e presidente do TSE.
Ele ressaltou que o MLAT deve ser aplicado quando for absolutamente impossível às autoridades judiciais brasileiras a obtenção direta dos dados.
Conforme Moraes, “há diferença muito grande” entre o sentido de liberdade de expressão do Brasil e dos EUA. “Essa diferença de interpretação, nesses casos nos quais a informação é uma ideia colocada nessas plataformas, vem dificultando muito a operacionalidade desse acordo”, afirmou.
Os ministros ainda debateram no julgamento a necessidade de haver maior controle sobre as plataformas e sua atuação no Brasil. Para os ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, as fake news que circulam nas redes sociais são semelhantes ao uso de drogas.
O fato fez a ministra Cármen Lúcia classificar a desinformação nas redes como um “faroeste digital”.
“Este não é um momento de mudança de interpretação do direito, mas de transformação do direito para que nós não tenhamos espaços de faroeste digital com efeitos concretos na vida de todos nós”, declarou a ministra.
ORLANDO SILVA
O relatório do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) sobre o Projeto de Lei de Combate às Fake News (2.630/20) prevê que as plataformas digitais que não seguirem a lei ou deixarem de cumprir determinações judiciais devem ser punidas. Em caso de reincidência, o serviço pode ser suspenso ou proibido no Brasil.
O PL também exige que as grandes plataformas que queiram oferecer seus serviços no Brasil tenham que ter sede no país. Não basta indicar um advogado, “é necessário constituir uma pessoa jurídica” com “capacidade e competência a responder às demandas e as necessidades do Brasil”, afirmou.
O governo Lula está tratando dando prioridade ao tema do combate às fake news e milícias digitais devido ao ataque terrorista do dia 8 de janeiro, que foi incentivado e convocado através das redes sociais. O governo estuda pedir “urgência” para o PL relatado por Orlando Silva.
Leia na íntegra a nota de Gilmar Mendes: