A “rachadinha”, prática conhecia como o repasse, por parte de um servidor público ou prestador de serviços da administração, de parte de sua remuneração a políticos, é cada vez mais apontada como uma estratégia contumaz na família de Jair Bolsonaro.
O envolvimento de dois filhos do presidente com a prática ilícita, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), tem frequentado o noticiário com frequência.
Porém, reportagem da revista IstoÉ mostra como a família conseguiu transformar o expediente para enriquecer e impulsionar carreiras políticas.
As suspeitas eram antigas, mas ganharam gravidade com uma nova conversa vazada pela ex-cunhada de Bolsonaro, a personal trainer Andréa Siqueira Valle, irmã de sua ex-mulher Ana Cristina Valle, mãe de Jair Renan, o filho 04.
Testemunhos confirmam que o esquema se originou com o próprio presidente nos anos 1990 e que Ana Cristina teve um papel central. São mais de 100 pessoas envolvidas nos desvios, em núcleos familiares diretamente ligados ou próximos ao chefe do Executivo, incluindo milicianos.
De acordo com uma decisão unânime do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), publicada na quinta-feira (9), o esquema de “rachadinha” é uma clara e ostensiva modalidade de corrupção.
Andréa Siqueira Valle foi a primeira a vincular Bolsonaro diretamente ao estratagema criminoso. Contou que o presidente chegou a demitir seu irmão, André Siqueira Valle, após ele recusar a entregar 90% de seu salário quando estava empregado no gabinete do então deputado federal.
“André dava muito problema porque nunca devolvia a quantia certa de dinheiro”, disse.
Segundo a IstoÉ, entretanto, tudo indica que o esquema começou quando Bolsonaro deu o primeiro passo na sua carreira política como vereador, eleito para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1989. Ele cumpriu dois anos de mandato e, a partir de 1991, iniciou sua trajetória de deputado federal.
Um advogado que era muito próximo ao clã disse que o esquema vem desde essa época. Conforme essa fonte, o presidente começou a fazer isso para compensar o soldo, depois que saiu do Exército, e passou a experiência para os filhos.
Outra testemunha-chave, surgida nos últimos dias, confirma a participação de Bolsonaro e da sua segunda mulher a partir dos anos 2000. Trata-se de Marcelo Luiz Nogueira dos Santos, que trabalhou para a família desde 2002 e foi empregado no gabinete do então deputado Flávio, quando era obrigado a devolver parte de seus salários.
Antigo babá de Jair Renan, ele trabalhou até recentemente na mansão para a qual Ana Cristina acaba de se mudar, em Brasília. Ele fez uma revelação sobre o imóvel que confirma outra prática recorrente do clã, a de negociações imobiliárias obscuras. Oficialmente, ela alugou a casa no Lago Sul. Rompido com ela, Santos revelou que a casa, avaliada em R$ 3,2 milhões, foi na verdade comprada em nome de laranjas (alugou por R$ 8 mil mensais, mesmo ganhando um salário de R$ 6,2 mil).
A mãe de Jair Renan não é a única da família que fez um grande negócio imobiliário recente. O senador Flávio Bolsonaro comprou em janeiro, em seu próprio nome, uma mansão de R$ 6 milhões em uma das regiões mais valorizadas da capital federal, apesar de ter declarado um patrimônio de apenas R$ 1,74 milhão ao TSE em 2018. Ele alega que a transação é compatível com sua atual renda, apesar das suspeitas levantadas pelo financiamento camarada de uma instituição pública, o Banco de Brasília (BRB). Como as investigações já mostraram, os negócios do clã estão repletos de transações imobiliárias altamente lucrativas, pagas com frequência em dinheiro vivo.
O vereador Carlos Bolsonaro também é suspeito de envolvimento no esquema da “rachadinha”, e as investigações mostram o papel central de Ana Cristina, sua chefe de gabinete de 2001 a 2008. Junto com outras 26 pessoas, ela teve os sigilos bancário e fiscal quebrados em investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ).
A lista inclui parentes de Ana Cristina que também foram lotados no gabinete de Carlos, inclusive seu irmão André e sua irmã Andréa, citados acima. É um exemplo de como vários personagens investigados transitaram entre os gabinetes de Jair Bolsonaro, Flávio e Carlos ao longo dos anos.
Os promotores que investigam Carlos detectaram o mesmo tipo de operação adotado no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), onde a função de Ana Cristina foi assumida por Fabrício Queiroz.
As apurações mostram que toda a família ganhou com o esquema. Em 24 anos, membros da família Bolsonaro movimentaram R$ 1,5 milhão em dinheiro vivo em transações imobiliárias e no pagamento de despesas pessoais.