The Lancet: “Ciência, não especulação, é essencial para determinar a origem do vírus”

A virologista Shi Zhengli no laboratório P4 em Wuhan (Johannes Eisele/AFP)

Em sua segunda carta sobre a questão da origem da Covid-19, especialistas reiteram sua convocação por “solidariedade” no enfrentamento da pandemia e “dados científicos rigorosos”

Abaixo, em nova carta publicada na mais prestigiosa revista médica do mundo, The Lancet, o grupo de especialistas que no ano passado primeiro contestou a teoria do ‘vazamento de laboratório’ – então alardeada pelos círculos ligados ao governo Trump -, diante do vulto que a questão voltou a ter, reitera seu posicionamento anterior, acrescentando que “é hora de diminuir o calor da retórica e acender a luz da investigação científica se quisermos estar mais bem preparados para conter a próxima pandemia, quando ela vier e onde quer que comece”.

“Acreditamos que a pista mais forte das evidências novas, confiáveis ​​e revisadas por pares na literatura científica é que o vírus evoluiu na natureza, enquanto as sugestões de uma fonte da pandemia por vazamento de laboratório permanecem sem evidência cientificamente validada que as apóiem diretamente em periódicos científicos revisados ​​por pares”, sublinha a Carta, que dá boas vindas a todos os esforços para esclarecer a origem do patógeno da Covid-19.

A Carta também adverte contra a politização da questão em curso, ao salientar que “a recriminação não encoraja e não encorajará a cooperação e colaboração internacional” e que é a “transparência e a cooperação entre cientistas em todos os lugares que provê um sistema de alerta precoce essencial”.

“Até que esta pandemia termine, pedimos, como fizemos em fevereiro de 2020, por solidariedade e dados científicos rigorosos”.

A CARTA, NA ÍNTEGRA:

“Ciência, não especulação, é essencial para determinar como o vírus SARS-CoV-2 alcançou os humanos”

Em 19 de fevereiro de 2020, nós, um grupo de médicos, veterinários, epidemiologistas, virologistas, biólogos, ecologistas e especialistas em saúde pública de todo o mundo se uniram para expressar solidariedade aos nossos colegas de profissão na China.

Alegações infundadas estavam sendo levantadas sobre a origem do surto Covid-19 e a integridade de nossos colegas que estavam trabalhando diligentemente para aprender mais sobre o vírus recém-reconhecido, SARS-CoV-2, enquanto lutavam para cuidar de muitos pacientes internados em hospital com doença grave em Wuhan e em outras partes da China.

Foi o início de uma tragédia global, a pandemia Covid-19.

De acordo com a OMS, em 2 de julho de 2021, a pandemia resultou em 182.101.209 casos confirmados e 3.950.876 mortes, ambos sem dúvida subestimam o número real. O impacto da pandemia em praticamente todo o mundo foi muito pior do que mesmo esses números sugerem, com consequências sociais, culturais, políticas e econômicas adicionais sem precedentes, que têm exposto inúmeras falhas em nossa preparação para epidemias e pandemias e nos sistemas políticos e econômicos locais e globais. Temos observado escaladas de conflitos que colocam muitos partidos uns contra os outros, incluindo governo central versus governo local, jovens versus velhos, ricos versus pobres, pessoas de cor versus brancos e prioridades de saúde versus economia. A crise destacou a necessidade urgente de construir uma melhor compreensão de como a ciência procede e dos complexos, mas críticos, vínculos que a ciência tem com a saúde, a saúde pública e a política.

Recentemente, muitos de nós recebemos consultas individuais perguntando se ainda apoiamos o que dissemos no início de 2020.

A resposta é clara: reafirmamos nossa expressão de solidariedade para com aqueles que na China enfrentaram o surto, então, e os muitos profissionais de saúde em todo o mundo que desde então trabalharam até a exaustão, e sob risco pessoal, na batalha implacável e contínua contra este vírus. Nosso respeito e gratidão só aumentaram com o tempo.

A segunda intenção de nossa Correspondência original foi expressar nossa visão de trabalho de que o SARS-CoV-2 provavelmente se originou na natureza e não em um laboratório, com base na análise genética inicial do novo vírus e em evidências bem estabelecidas de doenças infecciosas emergentes anteriores, incluindo os coronavírus que causam o resfriado comum, bem como o SARS-CoV original e o MERS-CoV.2

Opiniões, entretanto, não são dados nem conclusões. As evidências obtidas com o uso do método científico devem informar nosso entendimento e servir de base para a interpretação da informação disponível. O processo não é isento de erros, mas é autocorretivo, à medida que bons cientistas se esforçam para fazer novas perguntas continuamente, aplicar novas metodologias à medida que são desenvolvidas e revisar suas conclusões por meio de um compartilhamento aberto e transparente de dados e de um diálogo contínuo.

A questão crítica que devemos abordar agora é: como o SARS-CoV-2 alcançou a população humana? Isso é importante porque são essas percepções que orientarão o que o mundo deve fazer com urgência para evitar outra tragédia como a Covid-19. Acreditamos que a pista mais forte das evidências novas, confiáveis ​​e revisadas por pares na literatura científica é que o vírus evoluiu na natureza, enquanto as sugestões de uma fonte da pandemia de vazamento de laboratório permanecem sem evidência cientificamente validada que a apóie diretamente em periódicos científicos revisados ​​por pares.

A coleta cuidadosa e transparente de informações científicas é essencial para entender como o vírus se espalhou e para desenvolver estratégias para mitigar o impacto contínuo do Covid-19, quer tenha ocorrido totalmente na natureza ou possa de alguma forma ter atingido a comunidade através de rota alternativa, e prevenir futuras pandemias. Alegações e conjecturas não ajudam, pois não facilitam o acesso à informação e avaliação objetiva da trajetória de um vírus de morcego para um patógeno humano que pode ajudar a prevenir uma futura pandemia.

A recriminação não encoraja e não encorajará a cooperação e colaboração internacional.

Novos vírus podem surgir em qualquer lugar, portanto, manter a transparência e a cooperação entre cientistas em todos os lugares provê um sistema de alerta precoce essencial. Cortar links profissionais e reduzir o compartilhamento de dados não nos deixará mais seguros.

Damos boas vindas às chamadas por investigações cientificamente rigorosas.

Para conseguir isso, incentivamos a OMS e os parceiros científicos em todo o mundo a prontamente atuar para continuarem sua investigação inicial com especialistas na China e no governo chinês e a estenderem ainda mais.

O relatório da OMS de março de 2021, deve ser considerado o início e não o fim de um inquérito, e apoiamos fortemente o apelo dos líderes do G7 por “um estudo de fase 2, oportuno, transparente, especializado e com base científica, das origens da Covid convocado pela OMS”.

Também entendemos que pode levar anos de estudo de campo e de laboratório para reunir e vincular os dados essenciais para chegar a conclusões racionais e objetivas, mas é isso que a comunidade científica global deve se esforçar para fazer.

É hora de diminuir o calor da retórica e acender a luz da investigação científica se quisermos estar mais bem preparados para conter a próxima pandemia, quando ela vier e onde quer que comece. Enquanto isso, pessoas em todo o mundo continuam a ser infectadas pelo SARS-CoV-2, muitos estão sofrendo uma doença grave e sequelas de longo prazo, e demasiados estão morrendo. Demasiadas populações não têm acesso ao teste SARS-CoV-2, tratamentos Covid-19 e vacinas seguras e eficazes, o que irá inevitavelmente perpetuar a pandemia e suas consequências. No mínimo, preparar-se para a próxima pandemia.

Ter sistemas robustos de vigilância e detecção em todo o mundo é essencial para detectar e relatar novos patógenos ou em evolução que podem potencialmente desencadear a próxima ameaça local ou global, conforme exigido pelo Regulamento Sanitário Internacional. Igualmente essencial será garantir que a força de trabalho de campo, as instalações laboratoriais e a comunidade de saúde possam trabalhar nas condições mais seguras. Até que esta pandemia termine, pedimos, como fizemos em fevereiro de 2020,1 por solidariedade e dados científicos rigorosos.

Os signatários são os cientistas e médicos Charles H Calisher, Dennis Carroll, Rita Colwell, Ronald B Corley, Peter Daszak, Christian Drosten, Luis Enjuanes, Jeremy Farrar, Hume Field, Josie Golding, Alexander E Gorbalenya, Bart Haagmans, James M Hughes, Gerald T Keusch, Sai Kit Lam, Juan Lubroth, John S Mackenzie, Larry Madoff, Jonna Keener Mazet, Stanley M Perlman, Leo Poon, Linda Saif, Kanta Subbarao e Michael Turner. A Carta também recebeu o aval de 25 instituições de pesquisa de ponta do mundo inteiro.

A Bibliografia citada na Carta é a seguinte:

  • Calisher C, Carroll D, Colwell R, et al. Statement in support of the scientists, public health professionals, and medical professionals of China combatting COVID-19. Lancet 2020; 395: E42–43.
  • Forni D, Cagliani R, Clerici M, Sironi M. Molecular evolution of human coronavirus genomes. Trends Microbiol 2017; 25: 35–48.
  • Wacharapluesadee S, Tan CW, Maneeorn P, et al. Evidence for SARS-CoV-2 related coronaviruses circulating in bats and pangolins in southeast Asia. Nat Comms 2021; 12: 972.
  • Zhou H, Ji J, Chen X, et al. Identification of novel bat coronaviruses sheds light on the evolutionary origins of SARS-CoV-2 and related viruses. Cell 2021; in press. https://doi.org/10.1016/j.cell.2021.06.008.
  • Garry RF. Early appearance of two distinct genomic lineages of SARS-CoV-2 in different Wuhan wildlife markets suggests SARS-CoV-2 has a natural origin. May 12, 2021. https://virological.org/t/early-appearance-of-twodistinct-genomic-lineages-of-sars-cov-2-indifferent-wuhan-wildlife-markets-suggestssars-cov-2-has-a-natural-origin/691 (accessed June 15, 2021)
  • Latinne A, Hu B, Olival KJ, et al. Origin and cross-species transmission of bat coronaviruses in China. Nat Comms 2020; 11: 4235.
  • Maxmen A, Mallapaty S. The COVID lab-leak hypothesis: what scientists do and don’t know. Nature 2021; 594: 313–15.
  • Nature. Protect scientific collaboration from geopolitics. Nature 2021; 593: 477.
  • Bloom JD, Chan YA, Baric RS, et al. Investigate the origins of COVID-19. Science 2021; 372: 694.
  • McNutt M, Anderson JL, Dzau VJ. Let scientific evidence determine origin of SARS-CoV-2, urge Presidents of the National Academies. June 15, 2021. https://www. nationalacademies.org/news/2021/06/letscientific-evidence-determine-origin-of-sarscov-2-urge-presidents-of-the-national-academies (accessed June 15, 2021)
  • Joint WHO-China study. WHO-convened globalstudy of origins of SARS-CoV-2: China part. March 30, 2021. https://www.who.int/ publications/i/item/who-convened-globalstudy-of-origins-of-sars-cov-2-china-part (accessed June 15, 2021).
  • G7 Cornwall UK 2021. Carbis Bay G7 Summit communiqué. Our shared agenda for global action to build back better. June 13, 2021. https://www.g7uk.org/wp-content/uploads/2021/06/Carbis-Bay-G7-SummitCommunique-PDF-430KB-25-pages-3.pdf (accessed June 15, 2021).
  • Lurie N, Keusch GT, Dzau VJ. Urgent lessons from COVID 19: why the world needs a standing, coordinated system and sustainable financing for global research and development. Lancet 2021; 397: 1229–36

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