Em sua segunda carta sobre a questão da origem da Covid-19, especialistas reiteram sua convocação por “solidariedade” no enfrentamento da pandemia e “dados científicos rigorosos”
Abaixo, em nova carta publicada na mais prestigiosa revista médica do mundo, The Lancet, o grupo de especialistas que no ano passado primeiro contestou a teoria do ‘vazamento de laboratório’ – então alardeada pelos círculos ligados ao governo Trump -, diante do vulto que a questão voltou a ter, reitera seu posicionamento anterior, acrescentando que “é hora de diminuir o calor da retórica e acender a luz da investigação científica se quisermos estar mais bem preparados para conter a próxima pandemia, quando ela vier e onde quer que comece”.
“Acreditamos que a pista mais forte das evidências novas, confiáveis e revisadas por pares na literatura científica é que o vírus evoluiu na natureza, enquanto as sugestões de uma fonte da pandemia por vazamento de laboratório permanecem sem evidência cientificamente validada que as apóiem diretamente em periódicos científicos revisados por pares”, sublinha a Carta, que dá boas vindas a todos os esforços para esclarecer a origem do patógeno da Covid-19.
A Carta também adverte contra a politização da questão em curso, ao salientar que “a recriminação não encoraja e não encorajará a cooperação e colaboração internacional” e que é a “transparência e a cooperação entre cientistas em todos os lugares que provê um sistema de alerta precoce essencial”.
“Até que esta pandemia termine, pedimos, como fizemos em fevereiro de 2020, por solidariedade e dados científicos rigorosos”.
A CARTA, NA ÍNTEGRA:
“Ciência, não especulação, é essencial para determinar como o vírus SARS-CoV-2 alcançou os humanos”
Em 19 de fevereiro de 2020, nós, um grupo de médicos, veterinários, epidemiologistas, virologistas, biólogos, ecologistas e especialistas em saúde pública de todo o mundo se uniram para expressar solidariedade aos nossos colegas de profissão na China.
Alegações infundadas estavam sendo levantadas sobre a origem do surto Covid-19 e a integridade de nossos colegas que estavam trabalhando diligentemente para aprender mais sobre o vírus recém-reconhecido, SARS-CoV-2, enquanto lutavam para cuidar de muitos pacientes internados em hospital com doença grave em Wuhan e em outras partes da China.
Foi o início de uma tragédia global, a pandemia Covid-19.
De acordo com a OMS, em 2 de julho de 2021, a pandemia resultou em 182.101.209 casos confirmados e 3.950.876 mortes, ambos sem dúvida subestimam o número real. O impacto da pandemia em praticamente todo o mundo foi muito pior do que mesmo esses números sugerem, com consequências sociais, culturais, políticas e econômicas adicionais sem precedentes, que têm exposto inúmeras falhas em nossa preparação para epidemias e pandemias e nos sistemas políticos e econômicos locais e globais. Temos observado escaladas de conflitos que colocam muitos partidos uns contra os outros, incluindo governo central versus governo local, jovens versus velhos, ricos versus pobres, pessoas de cor versus brancos e prioridades de saúde versus economia. A crise destacou a necessidade urgente de construir uma melhor compreensão de como a ciência procede e dos complexos, mas críticos, vínculos que a ciência tem com a saúde, a saúde pública e a política.
Recentemente, muitos de nós recebemos consultas individuais perguntando se ainda apoiamos o que dissemos no início de 2020.
A resposta é clara: reafirmamos nossa expressão de solidariedade para com aqueles que na China enfrentaram o surto, então, e os muitos profissionais de saúde em todo o mundo que desde então trabalharam até a exaustão, e sob risco pessoal, na batalha implacável e contínua contra este vírus. Nosso respeito e gratidão só aumentaram com o tempo.
A segunda intenção de nossa Correspondência original foi expressar nossa visão de trabalho de que o SARS-CoV-2 provavelmente se originou na natureza e não em um laboratório, com base na análise genética inicial do novo vírus e em evidências bem estabelecidas de doenças infecciosas emergentes anteriores, incluindo os coronavírus que causam o resfriado comum, bem como o SARS-CoV original e o MERS-CoV.2
Opiniões, entretanto, não são dados nem conclusões. As evidências obtidas com o uso do método científico devem informar nosso entendimento e servir de base para a interpretação da informação disponível. O processo não é isento de erros, mas é autocorretivo, à medida que bons cientistas se esforçam para fazer novas perguntas continuamente, aplicar novas metodologias à medida que são desenvolvidas e revisar suas conclusões por meio de um compartilhamento aberto e transparente de dados e de um diálogo contínuo.
A questão crítica que devemos abordar agora é: como o SARS-CoV-2 alcançou a população humana? Isso é importante porque são essas percepções que orientarão o que o mundo deve fazer com urgência para evitar outra tragédia como a Covid-19. Acreditamos que a pista mais forte das evidências novas, confiáveis e revisadas por pares na literatura científica é que o vírus evoluiu na natureza, enquanto as sugestões de uma fonte da pandemia de vazamento de laboratório permanecem sem evidência cientificamente validada que a apóie diretamente em periódicos científicos revisados por pares.
A coleta cuidadosa e transparente de informações científicas é essencial para entender como o vírus se espalhou e para desenvolver estratégias para mitigar o impacto contínuo do Covid-19, quer tenha ocorrido totalmente na natureza ou possa de alguma forma ter atingido a comunidade através de rota alternativa, e prevenir futuras pandemias. Alegações e conjecturas não ajudam, pois não facilitam o acesso à informação e avaliação objetiva da trajetória de um vírus de morcego para um patógeno humano que pode ajudar a prevenir uma futura pandemia.
A recriminação não encoraja e não encorajará a cooperação e colaboração internacional.
Novos vírus podem surgir em qualquer lugar, portanto, manter a transparência e a cooperação entre cientistas em todos os lugares provê um sistema de alerta precoce essencial. Cortar links profissionais e reduzir o compartilhamento de dados não nos deixará mais seguros.
Damos boas vindas às chamadas por investigações cientificamente rigorosas.
Para conseguir isso, incentivamos a OMS e os parceiros científicos em todo o mundo a prontamente atuar para continuarem sua investigação inicial com especialistas na China e no governo chinês e a estenderem ainda mais.
O relatório da OMS de março de 2021, deve ser considerado o início e não o fim de um inquérito, e apoiamos fortemente o apelo dos líderes do G7 por “um estudo de fase 2, oportuno, transparente, especializado e com base científica, das origens da Covid convocado pela OMS”.
Também entendemos que pode levar anos de estudo de campo e de laboratório para reunir e vincular os dados essenciais para chegar a conclusões racionais e objetivas, mas é isso que a comunidade científica global deve se esforçar para fazer.
É hora de diminuir o calor da retórica e acender a luz da investigação científica se quisermos estar mais bem preparados para conter a próxima pandemia, quando ela vier e onde quer que comece. Enquanto isso, pessoas em todo o mundo continuam a ser infectadas pelo SARS-CoV-2, muitos estão sofrendo uma doença grave e sequelas de longo prazo, e demasiados estão morrendo. Demasiadas populações não têm acesso ao teste SARS-CoV-2, tratamentos Covid-19 e vacinas seguras e eficazes, o que irá inevitavelmente perpetuar a pandemia e suas consequências. No mínimo, preparar-se para a próxima pandemia.
Ter sistemas robustos de vigilância e detecção em todo o mundo é essencial para detectar e relatar novos patógenos ou em evolução que podem potencialmente desencadear a próxima ameaça local ou global, conforme exigido pelo Regulamento Sanitário Internacional. Igualmente essencial será garantir que a força de trabalho de campo, as instalações laboratoriais e a comunidade de saúde possam trabalhar nas condições mais seguras. Até que esta pandemia termine, pedimos, como fizemos em fevereiro de 2020,1 por solidariedade e dados científicos rigorosos.
Os signatários são os cientistas e médicos Charles H Calisher, Dennis Carroll, Rita Colwell, Ronald B Corley, Peter Daszak, Christian Drosten, Luis Enjuanes, Jeremy Farrar, Hume Field, Josie Golding, Alexander E Gorbalenya, Bart Haagmans, James M Hughes, Gerald T Keusch, Sai Kit Lam, Juan Lubroth, John S Mackenzie, Larry Madoff, Jonna Keener Mazet, Stanley M Perlman, Leo Poon, Linda Saif, Kanta Subbarao e Michael Turner. A Carta também recebeu o aval de 25 instituições de pesquisa de ponta do mundo inteiro.
A Bibliografia citada na Carta é a seguinte:
- Calisher C, Carroll D, Colwell R, et al. Statement in support of the scientists, public health professionals, and medical professionals of China combatting COVID-19. Lancet 2020; 395: E42–43.
- Forni D, Cagliani R, Clerici M, Sironi M. Molecular evolution of human coronavirus genomes. Trends Microbiol 2017; 25: 35–48.
- Wacharapluesadee S, Tan CW, Maneeorn P, et al. Evidence for SARS-CoV-2 related coronaviruses circulating in bats and pangolins in southeast Asia. Nat Comms 2021; 12: 972.
- Zhou H, Ji J, Chen X, et al. Identification of novel bat coronaviruses sheds light on the evolutionary origins of SARS-CoV-2 and related viruses. Cell 2021; in press. https://doi.org/10.1016/j.cell.2021.06.008.
- Garry RF. Early appearance of two distinct genomic lineages of SARS-CoV-2 in different Wuhan wildlife markets suggests SARS-CoV-2 has a natural origin. May 12, 2021. https://virological.org/t/early-appearance-of-twodistinct-genomic-lineages-of-sars-cov-2-indifferent-wuhan-wildlife-markets-suggestssars-cov-2-has-a-natural-origin/691 (accessed June 15, 2021)
- Latinne A, Hu B, Olival KJ, et al. Origin and cross-species transmission of bat coronaviruses in China. Nat Comms 2020; 11: 4235.
- Maxmen A, Mallapaty S. The COVID lab-leak hypothesis: what scientists do and don’t know. Nature 2021; 594: 313–15.
- Ling H. The lab leak theory doesn’t hold up. The rush to find a conspiracy around the COVID-19 pandemic’s origins is driven by narrative, not evidence. June 15, 2021. https://foreignpolicy.com/2021/06/15/lableak-theory-doesnt-hold-up-covid-china/ (accessed June 15, 2021).
- Nature. Protect scientific collaboration from geopolitics. Nature 2021; 593: 477.
- Bloom JD, Chan YA, Baric RS, et al. Investigate the origins of COVID-19. Science 2021; 372: 694.
- McNutt M, Anderson JL, Dzau VJ. Let scientific evidence determine origin of SARS-CoV-2, urge Presidents of the National Academies. June 15, 2021. https://www. nationalacademies.org/news/2021/06/letscientific-evidence-determine-origin-of-sarscov-2-urge-presidents-of-the-national-academies (accessed June 15, 2021)
- Joint WHO-China study. WHO-convened globalstudy of origins of SARS-CoV-2: China part. March 30, 2021. https://www.who.int/ publications/i/item/who-convened-globalstudy-of-origins-of-sars-cov-2-china-part (accessed June 15, 2021).
- G7 Cornwall UK 2021. Carbis Bay G7 Summit communiqué. Our shared agenda for global action to build back better. June 13, 2021. https://www.g7uk.org/wp-content/uploads/2021/06/Carbis-Bay-G7-SummitCommunique-PDF-430KB-25-pages-3.pdf (accessed June 15, 2021).
- Lurie N, Keusch GT, Dzau VJ. Urgent lessons from COVID 19: why the world needs a standing, coordinated system and sustainable financing for global research and development. Lancet 2021; 397: 1229–36