A entrevista do ministro Dias Toffoli à “Veja”, aparecida na sexta-feira, merece alguns comentários.
Não é um atentado à honra do ministro dizer que ele é o mais medíocre presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) que já houve. É apenas um fato, aliás, fácil de provar. Perto dele, Ataulfo de Paiva – de quem Agripino Grieco disse que “era tão medíocre, cabeça tão vazia, que quem comesse os miolos dele podia comungar” – é quase um portento jurídico e cultural.
Mas Ataulfo, apesar de ministro do STF, não foi seu presidente. E, por mais vaidoso que fosse (e era muito), jamais se meteu onde não devia, para aparecer. Muito menos pregou que o papel do Judiciário era coonestar algo tão oposto à justiça, à democracia, ao país e à Constituição, quanto Bolsonaro.
Diz Toffoli, na entrevista, que salvou o governo Bolsonaro – aliás, segundo a “Veja”, o que ele diz é que salvou o próprio Bolsonaro.
De quê?
De uma crise secreta, pois ele é a única testemunha de que ela existiu.
Segundo conta, nos meses de abril e maio, o país estava “à beira de uma crise institucional”: parlamentares, empresários e militares estavam decididos a derrubar Bolsonaro – uns, pela instalação do parlamentarismo; outros, pelo impeachment; outros, ainda, por colocar as tropas na rua (cf. Dias Toffoli: ‘O STF deve oferecer soluções em períodos de crise’, Veja nº 2647, 14/08/2019).
Quem “pacificou” a situação?
Ora, leitor, quem mais?
O Toffoli, é claro.
Resume a “Veja” o que Toffoli disse:
“Quando o caldo ameaçou transbordar, o presidente Bolsonaro, o ministro Dias Toffoli, o deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara, e o senador Davi Alcolumbre, presidente do Senado, além de autoridades militares, se reuniram separadamente mais de três dezenas de vezes para resolver o problema. Convencidos de que a situação caminhava em uma direção muito perigosa, costuraram um pacto que foi negociado em vários encontros. Resultado: no Congresso, o projeto do parlamentarismo voltou à gaveta, a CPI da Lava-Toga foi arquivada e a reforma da Previdência se destravou. No Planalto, o vice-presidente Hamilton Mourão reduziu suas barulhentas aparições públicas, e o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo, um dos alvos das suspeitas de Carlos Bolsonaro, foi demitido. No Supremo, Dias Toffoli pôs a polícia nos calcanhares de grupos que pregavam ações violentas contra os ministros, adiou o julgamento que poderia soltar Lula e concedeu uma liminar que paralisava as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro. A Praça dos Três Poderes ficou, ao menos momentaneamente, pacificada.”
Toffoli paralisou todas as investigações do país que tinham por base as informações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), da Receita Federal e do Banco Central – contra a corrupção, contra o narcotráfico, contra a sonegação – para impedir que os ilícitos de Flávio Bolsonaro continuassem a ser investigados (v. HP 17/07/2019, Toffoli decide acobertar crimes de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz e Para livrar Flávio Bolsonaro de investigações, Toffoli suspendeu a lei e até a si mesmo).
A invenção de uma “crise institucional” para, supostamente, justificar essa aberração, parece conveniente a Toffoli – pelo jeito, ele acha que qualquer coisa é justificável para evitar uma suposta crise, e que as outras pessoas vão achar isso muito razoável.
Mas não é assim. Alguém já falou sobre isso, em um texto intitulado, precisamente, O justo e a justiça política: “Não há tribunais, que bastem, para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados” (Rui Barbosa, Obras Completas, vol. XXVI, tomo IV, 1899, p. 185).
PACTO DE IMPUNIDADE
Uma conhecida colunista apontou a irresponsabilidade de Toffoli: “Conversei nesta sexta-feira com 3 ministros do STF, 3 ministros de Bolsonaro, 2 ex-ministros, 1 general, 2 governadores de Estado e 6 parlamentares. Todos classificaram, em maior ou menor grau, o risco de ruptura institucional nos meses de abril e maio como fantasioso” (Vera Magalhães, A irresponsabilidade de Toffoli, BR18, 09/08/2019).
É verdade. Trata-se de um irresponsável – mas, também, de um mentiroso, o que, aliás, a colunista aponta de maneira delicada, ao usar o qualificativo “fantasioso”.
Como os leitores sabem, em geral não pensamos o mesmo que a equipe do site “O Antagonista” e da revista “Crusoé”.
Mas, quanto à “crise” referida por Toffoli, estamos de pleno acordo: “Puro factoide. No Congresso, em momento algum, desde o início do ano, cogitou-se de maneira minimamente séria a possibilidade de tirar o presidente do poder. Nem mesmo na oposição mais radical”.
O “pacto” de Toffoli, que teria salvo Bolsonaro, é uma bobagem que já foi devidamente escrachada por absolutamente todo mundo, de todas as colorações políticas possíveis (v. HP 10/06/2019, Sem a assinatura de Maia, “pacto” de Toffoli e Bolsonaro é adiado e HP 29/05/2019, Juízes federais criticam Toffoli e o pacto com Bolsonaro).
A questão óbvia, levantada por todos, é aquela assim explicitada pelo acadêmico Merval Pereira:
“Não há na história recente exemplo de pacto político de que tenha participado o Poder Judiciário. Por uma razão muito simples: é nele que desaguarão as demandas dos que se sentirem afetados pela reforma da Previdência, por exemplo. Onde a reforma trabalhista já está sendo disputada. (…) O Judiciário não pode fazer pactos sobre assuntos que vai julgar, como a reforma da Previdência” (Merval Pereira, Pacto sem validade, O Globo, 29/05/2019).
Como pode a instância máxima do Judiciário fazer um pacto para aprovar a reforma da Previdência e até para livrar Flávio Bolsonaro das investigações?
A Justiça é o recurso do cidadão contra os abusos do Executivo – e, inclusive, contra os abusos do Legislativo.
Se ela faz um “pacto” para aprovar, sem contestação, desde a reforma da Previdência até a impunidade do filho de Bolsonaro, que recurso resta ao cidadão?
Evidentemente, Toffoli não é a Justiça, não é o Poder Judiciário. Nem mesmo é o STF.
Mas é, infelizmente, presidente do STF. Que ele queira fazer da instituição que preside, a mais alta instância do Judiciário, uma filial do Planalto bolsonarista, é algo grave – mais grave ainda porque toda a ação de Bolsonaro está em quebrar as instituições, em desrespeitá-las, em submetê-las, ao modo fascista, a começar pelo STF, que, segundo outro filho de Bolsonaro, “se quiser fechar manda um soldado e um cabo. Não precisa nem mandar um jipe” (v. HP 23/10/2018, Bolsonaro filho ameaça fechar o STF e o pai o MST).
Vejamos as palavras do próprio Toffoli, na entrevista à “Veja”:
“Estávamos em uma situação de muita pressão, com uma insatisfação generalizada. Mas o pacto funcionou. A reforma da Previdência foi aprovada, as instituições estão firmes. Agora o grande desafio é o país voltar a crescer. O Supremo estará atento para que julgamentos não impeçam ou atrapalhem o projeto de desenvolvimento econômico, que é tão necessário. O Estado de direito, a repartição dos poderes e a democracia são uma construção cultural que precisa ser sempre regada e preservada”.
Que ele acredite que Bolsonaro tem algum “projeto de desenvolvimento”, é problema dele. Apenas confirma a sua irredutível mediocridade.
Que ele fale, tratando-se de Bolsonaro, em “Estado de direito, repartição dos poderes e democracia”, aí já passa para o campo do cinismo.
Entretanto, ao fantasiar a crise da qual salvou Bolsonaro, ele deixou algo aparecer, como o gato e seu rabo – aliás, indo além do gato que deixou o rabo de fora, Toffoli deixou mais de uma coisa aparecer.
O papel do STF, na sua opinião, não está em fazer justiça ou aplicar a lei.
Está em “não atrapalhar” nem deixar que outros, através de ações judiciais, “atrapalhem” Bolsonaro.
Quanto à sua solução para “uma insatisfação generalizada” – usar a Justiça para submeter a população àquilo que causa a sua insatisfação – merece apenas uma observação, no terreno da sensatez:
A “crise institucional” de que Toffoli falou é uma invenção.
Mas, se depender dele, teremos uma crise institucional verdadeira – e muito grave.
Que Toffoli não perceba isso é uma dimensão, não apenas da sua mediocridade, mas, realmente, da sua irresponsabilidade.
C.L.