LEONARDO WEXELL SEVERO/HP
“Bolsonaro é a negação da Humanidade. Para esse governo e sua corja, a fraternidade não existe, a Amazônia deve ser entregue, o índio é lixo e o abandono de crianças uma constante. Por isso precisamos de uma grande frente pela Pátria”, afirmou o cantor e compositor brasileiro-argentino, Dante Ramón Ledesma, em entrevista exclusiva.
Durante visita a São Carlos-SP, ao lado de amigos, um dos ícones da música nativista gaúcha e latino-americana fez ecoar, nesta quinta-feira (1º), composições magistrais de sua autoria com parceiros como Humberto Gabbi Zanata e Mario Eleú Silva, ao lado de canções imortalizadas pelo uruguaio Daniel Viglietti, pelos argentinos Atahualpa Yupanqui e Mercedes Sosa e pelo cubano Pablo Milanés.
Após ter um primo-irmão “desaparecido” e uma amiga queimada e torturada pela ditadura argentina, o sociólogo formado pela Universidade de Córdoba – tendo prestado durante nove anos assistência a menores infratores – decidiu viver no Rio Grande do Sul no final dos anos 70 e naturalizar-se brasileiro. Trazia na bagagem o fato de ter vencido na categoria juvenil o Festival de Cosquín – o mais importante de música folclórica argentina – com a canção Memória del Che, em homenagem a Ernesto Guevara de la Serna. “Quando se abram as portas do país americano, seremos todos irmãos com uma mesma liberdade”, exaltava a canção.
Em 1982 houve a Guerra das Malvinas, com a Argentina confrontando a Inglaterra e exigindo sua soberania sobre as Ilhas, ocupadas desde 1833 pelo império britânico. E Dante bradou: “há uma gaivota ferida no Atlântico/ há mais de um século cativa de um pirata europeu/ sonha ser livre um dia e olha triste o continente/ quer voar até ele, mas suas asas não podem/ tem cravado no peito um selo estrangeiro/ e escuta calada um hino que não é seu de seu povo/ Imagina-se voando, livre como há pouco tempo/ em que a abriram as portas, mas a fecharam de novo/ Ainda está aberta a ferida, que tua tristeza deixou a meu povo/ todo o continente grita, a esperança de teu sonho/ livre voarás Malvinas sob o azul e branco de teu céu”.
Agora era preciso sobreviver no Brasil. Exímio vendedor da enciclopédia Delta Larrousse, bem bastante precioso na época, foi enviado de Porto Alegre para Alegrete, na fronteira Oeste, onde conquistava bons resultados econômicos vinculando suas vendas a apresentações artísticas cada vez mais concorridas. Abraçado pela Sociedade de Engenharia local, dirigida por Alcione Conde Severo, Ascânio Villaverde Moura e Antônio Carlos Schmidt rapidamente virou símbolo de resistência à ditadura do general Figueiredo. E veio o Projeto Cantar, organizado pelos principais grêmios estudantis da cidade, liderados pelo Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) – data da caída em combate do Che. Ali interpretou “Para não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, às vésperas das decisivas eleições de 1982, contribuindo para a vitória da oposição na cidade.
Virada a página, restaram elementos dentro da Polícia Federal (PF), que decidiram perseguir o cantautor “Castelhano”. “Me pegaram e disseram: veja o que está fazendo aqui alguém de fora… Por casualidade é Tupamaro [grupo guerrilheiro marxista-leninista uruguaio]? Mostre a mão esquerda. Queriam ver a estrela que aqueles militantes carregavam tatuada suavemente”. Felizmente, recordou, as coisas haviam mudado no Brasil e “uma hora depois fui avisado por amigos que o novo chefe da Federal já tinha determinado que os dois agentes que me abordaram fossem demitidos”. “A partir de agora não vão mais incomodar o Castelhano”, me informaram.
Logo foi apresentado por Alcione ao médico e compositor Mario Eleú Silva, de Rosário do Sul, que buscava um intérprete para a música Orelhano. Na voz do argentino, em 1984, Orelhano se tornou um dos maiores clássicos nativistas do Estado, fato que o próprio Dante considera como “ter ganho um prêmio da loteria”. Na sua exitosa carreira artística constam duas dezenas de CDs e nove discos de ouro, tendo mais de três milhões de cópias vendidas, e milhares de espetáculos em toda a América Latina e Europa.
MEMÓRIA HISTÓRICA
Para o músico, que integrou desde cedo a ONG Carismáticos, de origem católica, devemos valorizar a história sagrada do continente como nossa maior riqueza, para podermos avançar com solidariedade, serenidade e constância e “assim sustentarmos nossas convicções de irmandade entre os povos”. Por isso, acredita que este é o momento de recordar “quem durante a pandemia ironizou as pessoas e pediu um dólar por vacina [lembrando a propina no Ministério de Saúde]” como uma das muitas corrupções deste governo.
Dante aponta que o período Bolsonaro faz lembrar os tempos mais sombrios das ditaduras do continente. “Assim que assumiram recebi uma ligação me pedindo para evitar palavras com temas sociais, que falassem de fome, da falta de pão… Foi então que respondi: agora é que mais vou cantar. O problema é que no Rio Grande Sul, afora João Almeida Neto, outros anularam o seu repertório para serem convidados para cantar. A Rede Brasil Sul (RBS) faz de tudo para controlar o que se fala e nos corta espaço”. Entre outros exemplos de tentativa de intimidação citou o ocorrido na cidade de Vacaria: “ali tinha gente na primeira fila do show para gravar e filmar tudo que eu dizia”.
Mas há questões mais graves, aponta, como o recente assassinato de um menino em São Gabriel, que desapareceu após ser abordado por policiais militares, com o seu corpo encontrado posteriormente submerso em um açude. Ou do militante do Partido dos Trabalhadores (PT) assassinado em Foz do Iguaçu por um delinquente bolsonarista.
“RECORDEMOS DE RICARDO SALLES”
Frequentador do Pantanal mato-grossense, o cantor também eleva o tom contra as queimadas patrocinadas pelos que querem sua devastação, e denuncia elementos como o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, envolvido no contrabando ilegal de madeira para os Estados Unidos e para a Europa. “Desde o governo de Juan Domingo Perón na Argentina [em meados dos anos 40] já se falava do interesse estrangeiro pela Amazônia. Com Ricardo Salles foram levadas milhares de toras de árvores de 50, de 70 anos, riqueza que pertence à Pátria, à Terra e à Humanidade. Da mesma forma que tucanos e outras aves foram levados em gaiolas, sem falar do nosso minério”, condenou.
Profundamente identificado com o trabalho do campo, Dante foi finalista do Festival Acordes Cataratas de Foz do Iguaçu, em 1991, com a música “A Vitória do Trigo”: “Não precisa ser herói/ Para lutar pela terra/ Porque quando a fome dói/ Qualquer homem entra em guerra/ É preciso ter cuidado/ Para evitar essa luta/ Pois cada pai é um soldado/ Quando é o pão que se disputa/ Se somos todos irmãos/ Se todos somos amigos/ Basta um pedaço de chão/ Para a vitória do trigo/ Basta um pedaço de terra/ Para a semente ser pão/ Enquanto a fome faz guerra/ A paz espera no chão”. Conforme o Wikipedia, essa canção é considerada em seis países da Europa a mais representativa para as famílias sem-terra latino-americanas.
Recordando contribuições anti-imperialistas e integracionistas como a do professor Humberto Gabbi Zanata e de Francisco Alves com a música América Latina, Dante declama: “Talvez um dia, não mais existam aramados/ E nem cancelas nos limites da fronteira/ Talvez um dia, milhões de vozes se erguerão/ Numa só voz, desde o mar as cordilheiras/ A mão do índio, explorado, aniquilado/ Do camponês, mãos calejadas, e sem-terra/ Do peão rude que humilde anda changueando/ E dos jovens, que sem saber morrem nas guerras/ América Latina, Latina América/ Amada América, de sangue e suor”. E emociona: “Talvez um dia, o gemido das masmorras/ E o suor dos operários e mineiros/ Vão se unir à voz dos fracos e oprimidos/ E as cicatrizes de tantos guerrilheiros/ Talvez um dia, o silêncio dos covardes/ Nos desperte da inconsciência deste sono/ E o grito do Sepé na voz do povo/ Vai nos lembrar que esta terra ainda tem dono/ E as sesmarias, de campos e riquezas/ Que se concentram nas mãos de pouca gente/ Serão lavradas pelo arado da justiça/ De norte a sul, no Latino Continente”.
Com voz e olhares firmes e cativantes, Dante se despediu da aniversariante Maria Lucia Saran Azevedo com um sorriso: “Venceremos, sem perder a ternura jamais!”.