Enquanto o STF [Supremo Tribunal Federal] protela a decisão de declarar inconstitucional a Lei do Marco Temporal, a violência se alastra na Terra Guarani Kaiowá (MS). Na segunda-feira (23), um adolescente indígena da TI Nhanderu, Marangatu, da etnia Guarani Kaiowá, foi encontrado morto. O corpo de Fred Souza Garcete, de 15 anos, foi localizado nas margens da rodovia MS-384, na cidade sul-mato-grossense de João Antônio.
Este é o segundo indígena dessa etnia que morre na região em apenas cinco dias. No dia 18 de setembro, o jovem Neri Ramos, de 23 anos, foi assassinado com um tiro na cabeça, disparado pela Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, comandada pelo governador ruralista Eduardo Riedel (PSDB). O fato aconteceu em uma fazenda no mesmo município onde Fred foi encontrado morto.
A propriedade onde Neri foi localizado pertence a Pio Queiroz Silva e sua esposa, Roseli Maria Ruiz, – indicada pelos partidos PP, PL e Republicanos como “especialista” antropóloga, para ser ouvida na próxima sessão da Comissão Especial que discute, no STF, o marco temporal. O rapaz foi assassinado com um tiro na cabeça durante um ataque da Polícia Militar contra uma das comunidades da TI Ñanderu Marangatu. Já são pelo menos quatro indígenas mortos na luta por reconhecimento dessa Terra Indígenas até o momento.
As circunstâncias do falecimento de Fred ainda não foram esclarecidas. Segundo lideranças indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), a principal hipótese é de que ele tenha sido atropelado. O caso está sendo apurado pela Polícia Civil do município onde a vítima foi localizada.
De acordo com relatos dos indígenas, o adolescente estava na aldeia Bananal e de madrugada retornaria de moto para sua casa, na aldeia Campestre, também localizada na TI Nhanderu Marangatu. Ainda segundo os indígenas, que encontraram o corpo de Fred, ele apresentava ferimentos na cabeça e uma “perfuração” abaixo do ouvido.
Testemunhas afirmaram ter visto uma caminhonete Hilux na cor branca parar no local onde o corpo depois foi encontrado, segundo um áudio que circulou entre moradores da comunidade. Este local fica próximo à retomada Piquiri, uma das dez que integram a TI Nhanderu Marangatu.
Quando não é a violência praticada pelas mãos de jagunços e suar armas, a omissão das autoridades em garantir medidas que resultem no bem-estar dessas populações, também ceifa vidas dessas pessoas. No dia 30 de julho, o indígena Catalino Gomes Lopes, 49 anos, foi atropelado por uma camionete Hilux quando transitava com sua bicicleta pelo anel viário de Dourados, em MS.
DEMORA DO STF ENCORAJA RURALISTAS
“A rodovia foi bloqueada pelos Guarani e Kaiowá como forma de protesto para exigir melhorias na travessia da estrada, mas foram dispersados pela Polícia Militar com bombas de gás e bala de borracha. No dia seguinte seu corpo foi velado no mesmo local da rodovia pela comunidade”, cita o CIMI em texto assinado por Gabriela Guillén, cientista social e educadora da Escola Nacional Florestan Fernandes, Judite Stronzake, pesquisadora e ativista socioambiental, Maria Orlanda Pinassi, professora e pesquisadora, e Matias Benno Rempel, coordenador do CIMI/MS.
“No Brasil, há algum tempo, se registra uma queda-de-braço entre os ruralistas – estes com muito mais ferramentas – e o os povos indígenas, indefesos”, avalia Matias, em entrevista ao HP. “Quando o Congresso”, continua ele, “aprova uma lei, como a 14.701/2023 [Marco Temporal] e o STF, que deveria tornar essa lei inconstitucional em definitivo – e não o faz, – é como se os ruralistas praticamente ignorassem, debochassem do STF, das instituições”, explica.
Segundo o representante do CIMI, a demora pelo Supremo em declarar a ilegalidade dessa legislação, encoraja os ruralistas, promovendo o aumento da violência por parte deles contra os povos originários. “Quando o STF não faz isso [declarar ilegal a citada lei], os ruralistas se sentem empoderados, entendem que o governo e as instituições são frouxos”, analisa.
O coordenador regional do CIMI critica a “inércia” com que agem a Força Nacional e a Polícia Federal no enfrentamento do problema. “À luz da PF e da Força Nacional, o que se vê é uma inércia no sentido de articular essas forças. Aqui, as pessoas não têm mais esperanças no governo Lula”, diz.
LEILÃO DAS MILÍCIAS
A Fazenda Barra está sobreposta à Terra Indígena Nhanderu Marangatu – a área chegou a ser reconhecida como território dos Guarani Kaiowá em 2005, mas teve o procedimento suspenso no mesmo ano pelo STF. Desde então, o conflito se estabeleceu no local. A Polícia Militar, que deveria proteger os legítimos donos da terra, atua com violência contra eles e agem para dificultar as investigações, acusam os indígenas.
Segundo eles, no ataque que resultou na morte de Neri, ao contrário do que alega a polícia, a vítima não tinha “nada em suas mãos”. Os disparos partiram das armas dos PMs. Eles também teriam adulterado a cena do crime. Inicialmente, o corpo teria sido deslocado pelos policiais para a mata e depois levado ao Instituto Médico Legal (IML), antes da chegada de peritos.
Em nota à imprensa logo após a ofensiva, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Mato Grosso do Sul diz que “o óbito ocorreu depois de um confronto e troca de tiros com a Polícia Militar”, e que exames periciais estariam sendo realizados no local. “Reidel permitiu que a polícia abrisse fogo contra os indígenas”, denuncia o coordenador regional do CIMI. “Ele foi o principal articulador do ‘Leilão da Resistência’. Junto a outros ruralistas, conseguiu arrecadar [quase] R$ 1 milhão para montar uma milícia para atacar os indígenas”, reitera Matias.
Com ampla divulgação na mídia, em dezembro de 2013, foi realizado o vergonhoso “Leilão da Resistência”. O evento teve como objetivo arrecadar dinheiro para a contratação de jagunços para atuar contra os indígenas. O tal leilão foi promovido pela Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrissul), Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), à época presidida pelo atual governador do Estado, com o apoio e presença de parlamentares ligados à bancada ruralista no Congresso Nacional.
O ministro Gilmar Mendes, relator no Supremo das ações sobre a tese do marco temporal, defendeu no dia 5 de agosto último ser necessário “disposição política” e “novo olhar” para tentar resolver o impasse em torno do tema. A nova lei foi alvo de diversas contestações na Corte, que foi provocada a reabrir os debates mesmo depois de já ter julgado em definitivo a questão, o que gerou um impasse com o Legislativo. A APIB [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil] é uma das autoras das ações.
Na ocasião, o magistrado decidiu formar um foro de negociação, composto por ruralistas, indígenas e representantes de órgãos públicos e do Congresso Nacional, num processo de conciliação determinado por ele. A medida é criticada por entidades que atuam na defesa dos direitos dos povos originários, como a APIB, que se retirou do colegiado.
“A condução da Câmara na primeira sessão, dia 5 de agosto, deixou claro que se trata de um espaço meramente protocolar, que os povos indígenas não têm voz e a metodologia estabelecida pelo gabinete do Ministro Gilmar é totalmente fora dos marcos legais sobre mediação e conciliação – podemos definir como uma conciliação forçada por maioria”, diz a entidade, em texto na sua página eletrônica.
“Assessora Especial da Casa Civil do Governo Estadual do Mato Grosso do Sul, a advogada ruralista Luana Ruiz é também a advogada da ação deferida pela Justiça Federal de Ponta Porã que determina a proteção da Fazenda Barra, sobreposta à Terra Indígena Nhanderu Marangatu, pela Polícia Militar com rondas ostensivas e presença 24 horas por dia”, denuncia o CIMI.
“Estão chamando de expert em direitos indígenas uma pessoa que está ocupando território homologado e mandando a Polícia Militar atirar nos indígenas”, critica o secretário executivo da entidade, Luis Ventura, sobre a indicação de Roseli Ruiz [mãe de Luana] para câmara de conciliação instaurada no STF.
“Não se concilia algo que já está posto, os indígenas já têm direito assegurado [sobre as terras]”, afirma o coordenador do CIMI. Segundo Matias, o ministro Gilmar favorece o agro e tem interesses próprios com relação à demarcação de áreas indígenas. Inclusive, “é amigo de Luana Ruiz, que há 20 anos segura a terra”, impedido o acesso a ela por parte dessas populações.
Em entrevista recente ao ISA [Instituto Socioambiental], renomados juristas, especializados em Direito Constitucional”, questionam a decisão de Mendes. “Desde o primeiro momento, manifestei minha perplexidade, pois, tendo o Supremo declarado a inconstitucionalidade do marco temporal, não há porque engajar-se em um processo de conciliação em que necessariamente a flexibilização dos direitos indígenas está em pauta”, opina Oscar Vilhena.
Marcelo Neves argumenta que, antes da decisão do ano passado, um mecanismo de mediação poderia ser considerado, mas após essa deliberação, isso não é mais viável. “Uma vez que, não apenas conforme a interpretação de especialistas do Direito, mas também segundo o próprio órgão oficial que toma decisões vinculativas, ficou estabelecido que a Constituição garante esse direito [indígena à terra], um direito fundamental ou um direito de minorias, independentemente da sua utilização, claramente não há espaço para conciliação”, ressalta.
Para Daniel Sarmento, processos de mediação são instrumentos positivos e bem-vindos para dirimir conflitos judiciais, mas não podem ser aplicados indiscriminadamente. “Pela própria Constituição, os direitos territoriais indígenas são indisponíveis e não admitem nenhum tipo de conciliação, renúncia, nada desse gênero”, sustenta.
Neves reprova também o fato de o ministro ter implementado a conciliação de maneira unilateral, sem submeter o tema ao plenário do Tribunal e ignorando a opinião conjunta dos ministros do ano passado. “[É] uma postura de desrespeito em relação ao próprio órgão que tomou a decisão”, afirma.
De acordo com o marco temporal, somente teriam direito às suas terras os povos indígenas que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Essa tese desconsidera as expulsões e violências perpetradas contra essas populações, especialmente nas últimas décadas. Na prática, pode inviabilizar as demarcações devido a contestações administrativas ou judiciais.
APOIO INTERNACIONAL
“Pensamos, portanto, que o momento é mais do que propício para colocar o dedo na ferida já podre das omissões funcionais do Governo Federal que vem dando provas de que identitarismos de fachada não conseguem mais esconder a total cumplicidade que pratica com o agronegócio e suas deliberadas ações assassinas da natureza e seus povos”, cita o CIMI no texto de autoria coletiva.
Nesta semana, uma comitiva formada pelo coordenador do CIMI/MS, pelo secretário-executivo da entidade, lideranças indígenas dos estados mais afetados pela violência contra os povos indígenas – como Bahia, Mato Grosso do Sul e Paraná, por exemplo – vão à Europa para denunciar ao mundo essa realidade. “Vamos ocupar instâncias de direitos humanos internacionais, como a ONU, o Parlamento Europeu e instâncias governamentais de países europeus para denunciar essa barbárie”, diz Matias Benno Rempel.