“Nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática”, diz um trecho do manifesto que denuncia o “terraplanismo diplomático” de Araújo
Mais de 300 diplomatas publicaram, neste sábado (27), uma carta pública em que acusam a política externa atual de causar “graves prejuízos para as relações internacionais e à imagem do Brasil” e pedem a saída de Ernesto Araújo da chefia do Ministério das Relações Exteriores.
Essa carta vem se somar às pressões dos dirigentes do Congresso, de militares, do agronegócio e de grandes empresários.
O ministro de Bolsonaro, com sua extrema limitação cognitiva e o seu terraplanismo diplomático, tem destruído a política externa brasileira, uma política que foi construída a duras penas, em muitas e muitas décadas de muito trabalho, por figuras exponenciais como José Bonifácio, Rui Barbosa, o próprio Barão do Rio Branco, patrono do Itamaraty, Osvaldo Aranha, San Tiago Dantas, João Cabral de Melo Neto e tantos outros.
“Esperamos, com essas reflexões, oferecer mais elementos para que as necessárias e urgentes mudanças na condução da política externa ganhem maior apoio na sociedade”, diz a carta, que foi divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo. “A crise da Covid-19 tem revelado que equívocos na política externa trazem prejuízos concretos à população.”
A carta aponta que, nos últimos dois anos, “avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo com os códigos mais elementares da prática diplomática. Além de problemas mais imediatos, como a falta de vacinas, de insumos ou a proibição da entrada de brasileiros em outros países, acumulam-se danos de longo prazo na credibilidade internacional do país.”
Leia, abaixo, a íntegra da carta.
Brasília, 27 de março de 2021,
Nos últimos dias, o Brasil superou a trágica marca de 300 mil mortes por COVID-19, tendo o papel do Itamaraty na resposta à pandemia ganhado grande relevância no debate nacional. Neste momento, às vésperas da celebração do dia do diplomata, não há o que se comemorar. Pelo contrário, nunca foi tão importante reafirmar os preceitos constitucionais que balizam as relações exteriores da República Federativa do Brasil, definidos no artigo 4º da Constituição Federal de 1988, assim como as melhores tradições do Itamaraty.
Historicamente, a política externa brasileira caracterizou-se por pragmatismo e profissionalismo. O corpo diplomático, formado por concurso público desde 1945, sempre investiu no diálogo respeitoso e construtivo, com interlocutores internos e internacionais, com a imprensa e o Parlamento. A Constituição de 1988 consagrou princípios fundamentais pelos quais nossa diplomacia deve guiar-se, entre eles a independência nacional; prevalência dos direitos humanos; o repúdio ao terrorismo e ao racismo; e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.
Nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática. O Itamaraty enfrenta aguda crise orçamentária e uma série numerosa de incidentes diplomáticos, com graves prejuízos para as relações internacionais e a imagem do Brasil. A crise da Covid-19 tem revelado que equívocos na condução da política externa trazem prejuízos concretos à população. Além de problemas mais imediatos, como a falta de vacinas, de insumos ou a proibição da entrada de brasileiros em outros países, acumulam-se danos de longo prazo na credibilidade internacional do país.
Nesse contexto e diante da gravidade do momento, sentimos ser nosso dever complementar os alertas emitidos pela academia, pelo empresariado, pelos movimentos sociais, por prefeitos, por governadores e pelo Congresso Nacional, a respeito dos graves erros na condução da política externa atual. Nunca foi tão importante apelar à mudança e à retomada das melhores tradições do Itamaraty e dos preceitos constitucionais —conquistas da nossa sociedade e instrumentos indispensáveis para a promoção da prosperidade, justiça e independência em nosso país.
Esta carta foi elaborada por diplomatas da ativa que não podem assiná-la como desejariam em razão de dispositivos da Lei do Serviço Exterior, que a propósito deveriam ser reexaminados tendo em conta sua flagrante inconstitucionalidade. Esperamos, com essas reflexões, oferecer mais elementos para que as necessárias e urgentes mudanças na condução da política externa ganhem maior apoio na sociedade, contribuindo, assim, para os esforços de superação das crises sanitária, econômica, social e política enfrentadas pelo Brasil.