Vídeo com espancamento de produtor musical negro é visto por milhões e desmoraliza lei-mordaça
Dois dias depois da manifestação que juntou 500 mil pessoas por toda a França contra a tentativa do presidente Emmanuel Macron de transformar em crime a filmagem da violência cometida pela polícia, seu governo está em busca de um remendo, que salve a face, depois que milhões viram e compartilharam o vídeo do espancamento por policiais do produtor musical negro, Michel Zecler, dentro de seu próprio estúdio.
Na manifestação, um cartaz sintetizava o que tem acontecido cada vez com maior freqüência na França, sempre que manifestantes vão às ruas por direitos, ou no dia a dia de cidadãos comuns, e que acabam em vídeos que circulam nas redes sociais. Um desenho de um policial de tropa de choque com cara de pitbull e a frase: “sorria, você está sendo filmado”.
No esforço para maquiar o desastre, Macron reuniu na segunda-feira seu gabinete. O macronismo – a bancada que sustenta o presidente ex-banqueiro na Assembleia Nacional – também anunciou que o artigo 24 – o da criminalização da divulgação de imagens de policiais violentos – será “retirado e totalmente reescrito”.
O ministro do Interior, Gerald Darmanin, cuja cabeça está sendo pedida nas ruas, compareceu ao parlamento para enxugar gelo sobre a truculência policial. A lei repudiada pelos franceses prevê pena de 1 ano de cadeia e multa de 45.000 euros em caso de infração do artigo 24.
ESPANCAMENTO E BO FALSO
Os quatro policiais envolvidos foram indiciados pelo espancamento e por falsificação de BO e dois tiveram a prisão provisória decretada – para, segundo a promotoria, evitar que “pressionem testemunhas” ou combinem depoimentos. Estão sujeitos a até 10 anos de detenção e multa de 150.000 euros, de acordo com o jornal Figaro.
Zecler, que ficou preso por 48 horas sob a cínica acusação de ter agredido os policiais, só foi solto quando um vídeo do espancamento, registrado pelo circuito de segurança interno do estúdio, desmontou a farsa.
Também na semana passada um acampamento de refugiados no centro de Paris foi desmantelado com brutalidade. No ato de sábado, um fotógrafo sírio que presta serviço à AFP apanhou da polícia. No ano passado, toda semana a polícia macronista tentava dissolver no porrete e gás lacrimogêneo as manifestações dos coletes amarelos.
Sindicatos de jornalistas, estudantes, centrais sindicais e partidos de oposição já vinham condenando a famigerada lei-mordaça, mas foi a brutal agressão policial no sábado anterior no centro de Paris a Zecler, flagrada em vídeo, que empurrou a arbitrariedade intentada para o mais completo isolamento.
Como afirmou o líder do França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, o vídeo do espancamento do produtor musical é a “prova terrível da natureza vital do direito de filmar a ação policial”.
A alegação do governo Macron era de que é preciso “proteger quem protege”, e que a divulgação dos vídeos que mostram a truculência da sua polícia expunha os agentes a perigos “físicos e psicológicos”.
Isso numa época em que em outros países, como os Estados Unidos, a força da indignação popular contra a brutalidade e impunidade policial forçou a que os agentes, na maioria dos Estados, sejam obrigados a usarem câmeras pessoais nas suas operações.
“Em muitos casos, o vídeo protege as vítimas da violência policial. Persistir em querer impedir o seu uso pelos cidadãos não pode ter outro significado senão o desejo de encobrir e, portanto, incentivar as atrocidades de certos policiais”, advertiu o deputado verde David Cormand.
A coordenação dos protestos continua exigindo a retirada artigos 21, 22 e 24” , que organizam a vigilância em massa e criminalizam a divulgação de imagens de policiais violando direitos.
“CRIOULO SUJO”
Michel Zecler foi agredido com socos, pontapés e bastonadas por quatro policiais ao retornar ao seu estúdio no sábado (21) à noite ao se dar conta de que estava sem a máscara facial de uso obrigatório. Sem qualquer aviso policiais que estavam nas imediações entraram logo atrás dele e o atacaram. Além do espancamento, foi xingado de “crioulo sujo”.
Nove adolescentes que estavam no porão do estúdio de gravação encontraram Zecler coberto de sangue. Com as inesperadas testemunhas, os agentes recuaram, mas atiraram uma granada de gás lacrimogêneo forçando a que saíssem, depois de quebrarem uma janela.
Zecler disse depois ter achado que ia ser morto. Foi cercado e espancado novamente. Também os garotos foram agredidos, o que só parou quando vizinhos começaram a filmar com seus celulares.
“É hora de sair da negação” e “concordar em tratar o tema do racismo na polícia”, enfatizou o primeiro-secretário do Partido Socialista, Olivier Faure. A repercussão segue crescendo. O atacante do clube PSG Mbappé se solidarizou com Zecler, clamando que “basta de racismo” e que “minha França tem valores”.