Presidente recebeu a proposta de oferta que poderia chegar a 600 milhões de doses do imunizante, como também poderia ter editado medida provisória dando segurança jurídica ao contrato com a empresa, mas preferiu priorizar a cloroquina. Um ato de prevaricação e negligência, também de conhecimento de outros ministros do governo, que provocou a morte de milhares de brasileiros
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), na condição de vice-presidente da CPI da Covid-19 do Senado Federal, leu um trecho da carta endereçada pela Pfizer ao governo em 12 de setembro do ano passado, durante a inquirição promovida pela Comissão, hoje (12), ao ex-secretário de Comunicação do governo Bolsonaro, Fábio Wajngarten.
Dizia a carta:
“A potencial vacina da Pfizer e da BioNTech é uma opção muito promissora para ajudar seu governo a mitigar esta pandemia. Quero fazer todos os esforços possíveis para garantir que doses de nossa futura vacina sejam reservadas para a população brasileira”.
O país atravessava, naquele momento, um período crucial no enfrentamento da pandemia – já eram mais de 130 mil mortos e a média de óbitos aumentava a cada dia, impondo-se, como algo absolutamente prioritário e indispensável, celeridade na aquisição dos imunizantes que já estavam disponíveis e sendo aplicados em outros países, em um cenário que já se configurava de intensa e crescente demanda mundial por vacinas, cujas doses eram então limitadas.
A carta entregue pelo ex-secretário à CPI confirmava o acordo pretendido para fornecimento de 100 milhões de doses da vacina da Pfizer, com opção de oferecer 500 milhões de doses adicionais, o que permitiria imunizar toda população brasileira.
O documento da empresa foi endereçado ao presidente Jair Bolsonaro; ao vice-presidente, Hamilton Mourão; aos ministros da Casa Civil (de então), Walter Braga Netto; da Economia, Paulo Guedes; da Saúde (à época), Eduardo Pazuello; e até ao embaixador dos Estados Unidos, Nestor Forster.
Diante da inação, ou omissão, do governo frente ao problema, o presidente da empresa, no dia 9 de novembro, portanto, quase dois meses depois, ligou diretamente para Wajngarten tratando do assunto.
O ex-secretário, ao confirmar o telefonema, narrou aos senadores na CPI o que ocorreu após o contato com a empresa.
– “Nesse exato momento em que o presidente da Pfizer me ligou, eu subi para o Gabinete do Presidente. Eu peguei autorização com ajudante de ordens, peguei ajudante de ordens, pedi autorização e, por volta – depois do almoço – das 14h30, eu falei: “Presidente, estou com o Presidente da Pfizer na linha”. Ele despachava com o ministro Paulo Guedes nesse momento. O ministro Paulo Guedes fala, abre aspas: “É esse o caminho. É esse o caminho. O caminho são as vacinas”, fecha aspas. Paulo Guedes, ministro Paulo Guedes, conversa rapidamente com o presidente da Pfizer. E o presidente escreve num papel: Anvisa; uma vez aprovado pela Anvisa, nós vamos comprar todas as vacinas. Uma conversa breve, uma conversa rápida, desligou, cumprimentou, e eu desci e voltei para a minha sala. Isso aconteceu no dia 9 de novembro”.
O senador Randolfe, diante dessa informação, prosseguiu sua inquirição:
– “Então me diga: quais foram as providências do presidente da República nesse momento? Já que o senhor acaba de dizer que o presidente da República teve notícia no dia 9 de novembro… Ou seja, mesmo dois meses depois, no dia 9 de novembro, o presidente da República teve contato com o CEO da Pfizer. Quais foram as providências do sr. presidente da República nesse momento?”
O senador cita o CEO (Executivo) da Pfizer no Brasil, Carlos Murilo, que prestará seu depoimento nesta quinta-feira (13), pois Wajngarten informara esse outro contato da empresa feito com ele.
O ex-secretário tenta poupar, novamente, Bolsonaro:
– “Os atos de meio, senador, eu não sei quais foram. O ato final: ele promulgou uma medida provisória que deu 20 bilhões para a compra de vacina. Então, entre…”
Foi quando Randolfe abordou a questão da segurança jurídica para respaldar o contrato com a Pfizer, condição indispensável antes da liberação dos recursos para a aquisição da vacina que o ex-secretário quis ressaltar na medida do presidente:
– Não, mas a chamada segurança jurídica… Vou aqui reportar, inclusive, uma questão em particular que o senhor tinha… O senhor fez um contato comigo no dia 22 de fevereiro saudando a iniciativa do projeto de lei deste Senado Federal sobre a segurança jurídica em relação a vacinas. Eu lhe pergunto: por que nesse dia 9 de novembro também não teve uma medida provisória sobre vacina? Não seria essa a primeira medida?”
A observação do senador buscava esclarecer que a medida provisória, diferentemente do projeto de lei do Senado, entraria automaticamente em vigor e daria a segurança jurídica pretendida.
Wajngarten esquivou-se:
– Eu não conheço qual é o rito político ou o rito jurídico nesse sentido da Administração Pública, eu não tenho experiência nisso. Mas procurei o senhor, efetivamente, muito bem recomendado… Vi o empenho do senhor com relação às vacinas, que era exatamente igual ao meu, exatamente igual ao de muitos brasileiros, inquieto, aflito. Eu sempre busquei trazer o maior número de vacinas para a população brasileira.
O presidente da CPI observou, então, os ataques feitos ao Congresso como se fosse o parlamento o obstáculo à solução jurídica para a aquisição das vacinas:
– “Essa mentira foi cantada e decantada nas redes sociais como se nós tivéssemos atrapalhado a compra e não tivéssemos votado a lei.”
E questionou, na mesma linha de Randolfe:
– “Por que o governo não editou uma medida provisória, como está cansado de editar, sem necessidade da gente (do Congresso)? É isso.”
O senador Aziz prosseguiu, contundentemente:
– “Se no dia 12 de setembro, um dos ministros que receberam essa carta da Pfizer tivesse procurado o presidente para comprar a vacina, 12 de setembro… Porque V. Exa. só foi procurar o dono de uma emissora de TV… Como você não podia dizer “não” para o dono da emissora de TV, você se preocupou em procurar dois meses depois da carta. Então, do dia 12 de setembro até 22 de fevereiro, foram 6 meses.” (o dono da emissora de TV a que refere o senador é Marcelo Carvalho, da Rede TV, procurado pelo próprio ex-secretário para tratar do assunto, o que foi confirmado por ele, grifo nosso).
– “Não, senador, 40 dias”, tentou retrucar Wajngarten, ao que Aziz rebateu de forma peremptória:
– “Não, não, de 12 de setembro… Pera aí! Pera aí! Em 12 de setembro, o Paulo Guedes, que disse: “É o caminho”, ele tinha a carta. O Paulo Guedes tinha a carta. Por que não tratou disso em setembro com o presidente? O vice-presidente Mourão tinha a carta. Por que não tratou com o presidente?”, indagou.
Ficou evidente que todos tinham a carta em 12 de setembro de 2020 e nada fizeram. Ficou mais claro, ainda, que no dia 9 de novembro, houve um contato direto do presidente da Pfizer com a cúpula do governo, conforme atestado por Wajngarten, mas a postura de indiferença e descaso frente à vacina que poderia poupar milhares de vidas foi mantida.
A narrativa e as ações de Bolsonaro continuaram concentradas na propagação do tratamento precoce via cloroquina e outras drogas comprovadamente ineficazes no combate à Covid-19 e à indução do contágio para a consecução do que considera a forma mais efetiva de enfrentar a pandemia: a imunidade de rebanho, negado pela ciência por basear-se na disseminação da morte como método da sobrevivência dos mais fortes.
A cada dia que passa, os fatos que, pouco a pouco, são revelados pela CPI, confirmam que o Brasil, desde setembro do ano passado, teve uma oportunidade de ouro de frear o vírus, conter novos contágios e evitar as mortes que se multiplicaram exponencialmente a partir deste ano.
Compreende-se, também, por outro lado, as razões da histeria bolsonarista contra a CPI e a tentativa de miná-la mesmo depois de instalada.
A Pfizer, à época, já ostentava o maior contrato com o governo norte-americano, informação constante na carta endereçada a Bolsonaro, que ressaltava a necessidade de dar “celeridade” ao processo de vacinação no país.
Segundo o presidente da CPI, já no final da sessão de hoje (12), o alerta teria sido feito ainda no mês de agosto do ano passado, o que agrava, anda mais, a situação do governo.
“A carta da Pfizer, que ele entregou, mostrou como o governo foi incompetente. O presidente Bolsonaro e os ministros Braga Netto, Paulo Guedes e Eduardo Pazuello não responderam à carta, mostrando a incompetência e a falta de prioridade na compra de vacinas”, disse Aziz, diante de um ex-secretário atordoado, que tentava tirar a responsabilidade de Bolsonaro para imputá-la à burocracia governamental – uma atitude, no mínimo, diversionista e solerte. Uma afronta à inteligência dos senadores que compõem aquele colegiado.
Wajngarten, que aproveitou sua aparição na CPI para exaltar o papel de seus gurus espirituais, legítimos representantes da “teologia da prosperidade”, como Malafaia e outras espécimes, olavista de carteirinha, embora uma figura menor na engrenagem bolsonarista, compareceu à Comissão com um propósito muito claro: livrar a pele do ex-chefe pela desídia cometida diante da oportunidade de “mitigar” – como dizia a carta da Pfizer – a pandemia no país, evitando que ela se aproximasse, hoje, do patamar trágico e assombroso de meio milhão de mortos.
Se nas investigações de crimes do colarinho branco vale a máxima, siga o caminho do dinheiro, na CPI da Covid-19, vale outra máxima, apropriada a ela: siga a vacina. Nessa trilha, que deve ocupar a atenção central da Comissão, a carta da Pfizer, em 12 de setembro de 2020, abriu uma avenida cujo destino deverá ser a investigação, no mínimo, pelo crime de prevaricação.
Certamente, esse foi o elemento mais importante a resgatar do depoimento de Wajngarten.
O Código Penal, em seu artigo 319, diz muito claramente, o que significa crime de prevaricação:
“Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Pena: detenção de três meses a um ano e multa.”
No entanto, o Parlamento e a Justiça não se encontram, nesse caso, diante de episódio comum de prevaricação praticado por um funcionário qualquer do Estado.
Trata-se de um ato de incúria e flagrante negligência por parte, ninguém menos, do que do presidente da República e de seu núcleo mais próximo de ministros, que provocou, de setembro para cá, mais de 300 mil mortes de brasileiros e brasileiras.
O presidente Aziz indignou-se com esse fato e lembrou do depoimento à mesma CPI do ministro da Saúde Marcelo Queiroga, na última semana, quando afirmou que haveria “tempo” para vacinar a população que ainda não se imunizou: “o ministro mentiu, pois não há tempo mais para recuperar as vidas que se perderam”, razão, entre outras, que provocará nova convocação.
O senador, que bem conhece o martírio dos seus irmãos amazonenses cujas vidas foram também consumidas por outra irresponsabilidade governamental – a falta de oxigênio, tem toda razão quando lembra que “não haverá mais tempo para as famílias dos entes queridos que se foram”.
Diante dos fatos novos que vieram ao conhecimento público, além de Pazuello, todos os demais destinatários da carta da Pfizer deverão ser convocados para abordar um fato inédito na história do país: a ação deliberada do presidente e de seu governo contra a vida dos brasileiros.
Não de um “governo paralelo”, como alguns caracterizaram, mas de um governo cujos CPFs e endereços são muito bem conhecidos.
(MAC)