O artigo a seguir, publicado pelo jurista Miguel Reale Júnior no site JOTA, no último dia 16, com o título “Bolsonaro e o tal do Tribunal de Contas”, analisa os últimos crimes cometidos pelo atual ocupante do Planalto.
Tais crimes, ressalta o autor, um dos maiores especialistas no tema em todo o país, são passíveis – e exigíveis – de impeachment.
Entretanto, chamamos a atenção do leitor para o fato de que, depois da publicação deste artigo, indícios de outros crimes apareceram – inclusive o escandaloso superfaturamento da Covaxin e a maior exposição do que a imprensa de outros tempos chamaria a mamata da cloroquina.
A corrupção, naturalmente, é o outro lado do negacionismo de Bolsonaro.
Mas, vamos ao artigo do professor Reale Júnior.
C.L.
Bolsonaro e o tal do Tribunal de Contas
MIGUEL REALE JÚNIOR
Segundo dispõe a Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, a União devia entregar R$ 60 bilhões a estados e municípios como auxílio visando às ações de enfrentamento à Covid-19 e para mitigação de seus efeitos financeiros. Sucede, todavia, que apenas R$ 7 bilhões desses R$ 60 bilhões deviam ser distribuídos, não de acordo com o índice populacional, mas tendo em vista a taxa de incidência divulgada pelo Ministério da Saúde.
Assim, apenas R$ 7 bilhões deveriam ser divididos entre todos os Estados conforme o percentual de casos de contaminados por Covid-19 e não, ressalte-se, em face de óbitos.
No entanto, o presidente Bolsonaro, no cercadinho de acólitos diariamente preparado, disse a seus seguidores:
“Em primeira mão para vocês. Não é meu, é do tal do Tribunal de Contas da União, questionando o número de óbitos no ano passado por Covid-19. O relatório final não é conclusivo, mas em torno de 50% dos óbitos por Covid no ano passado não foram por Covid, segundo o Tribunal de Contas da União”.
E completou, o presidente:
“Esse relatório saiu há alguns dias. Logicamente que a imprensa não vai divulgar. Já passei para três jornalistas com quem eu converso e devo divulgar hoje à tarde. E como é do TCU, ninguém queira me criticar por causa disso. Isso aí muita gente suspeitava. Muitos vídeos que vocês viram de Whatsapp, etc, de pessoas reclamando que o ente querido não faleceu daquilo. Está muito bem fundamentado, todo mundo vai entender, só jornalista não vai entender. O resto, todo mundo vai entender”. Finalizou o mandatário com a promessa de divulgar mais tarde o relatório.
O Tribunal de Contas da União (TCU) negou a existência de relatório acerca de mortes por Covid nos Estados, em termos categóricos:
“O TCU esclarece que não há informações em relatórios do tribunal que apontem que ‘em torno de 50% dos óbitos por Covid no ano passado não foram por Covid’, conforme afirmação do presidente Jair Bolsonaro divulgada hoje”.
Malgrado o desmentido do Tribunal de Contas, o presidente insistiu na acusação aos governadores, dizendo, em novo encontro com admiradores, haver engano pois não fora relatório, mas, sim, acórdão do tribunal a registrar aumento imenso de notificações de mortos pelos Estados.
Mas, com base em que fontes o presidente fez acusação tão grave a governadores, buscando uma redução de danos à desastrada linha por ele adotada frente à Covid-19?
A fonte reside em auditor do Tribunal de Contas, amigo da família Bolsonaro, estando lotado na secretaria do TCU que trata de inteligência e combate à corrupção. Sua amizade com o clã Bolsonaro é grande a ponto de ser indicado para ocupar uma diretoria do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), nomeação vetada pois haveria conflito de interesses na circunstância de funcionário de órgão fiscalizador, vir a integrar banco a ser fiscalizado. Vê-se, portanto, que o relatório não era do Tribunal de Contas da União, mas de um tal de tribunal de contas paralelo.
Mas esses laços com a família Bolsonaro têm origem antiga, pois o pai deste auditor é militar do Exército, coronel, que cursou com o presidente a Academia das Agulhas Negras, valendo-lhe em 2019 a nomeação para gerente-executivo de Inteligência e Segurança Corporativa na Petrobras.
O auditor tentara introduzir, para estranheza de seus colegas, estudo paralelo acerca da distorção dos números de mortos noticiados pelos governos estaduais, com vistas a recebimento de mais verba, sendo sua proposta objeto de rejeição. Hoje, afastado preventivamente por 60 dias, passou o auditor a ser objeto de comissão processante para apurar sua responsabilidade funcional.
Há uma constante do presidente em atuar fora das instituições em universo paralelo: há um ministério da saúde paralelo, sombra, dando orientações sobre o combate ao vírus com centenas de milhares de mortos; há um orçamento paralelo, destinando verbas via relator para satisfação de deputados de modo alheio ao comum das emendas parlamentares de cunho obrigatório; há um tratamento precoce paralelo, com a produção e recomendação do uso de cloroquina. Dessa forma, sem qualquer pudor, o presidente atua em campo diverso do institucional.
As consequências são as mais desastrosas, pois afetam a credibilidade nas instituições e pouco se importa o presidente em comprometer o planejamento e a necessária colaboração entre unidades da federação em favor do bem comum, que neste instante volta-se para a imunização urgente da população contra a coronavírus.
Como se enquadra esta atitude em face da legislação?
Dentro da estratégia desenhada por Bolsonaro, não importa vencer o vírus, relevante é vencer a reeleição em 2022. Sem qualquer hesitação, se necessário for, para fins eleitorais, o presidente desprestigia governadores, afetando sua honorabilidade e respeito, acusando-os de mentir sobre os mortos de cada dia, para abocanhar verbas maiores.
Irresponsavelmente, imputa-se conduta delituosa grave aos governadores, mesmo que assim se dificulte a aceitação por parte da população das medidas sanitárias imprescindíveis para salvação de vidas, recomendadas pelos governos estaduais.
O efeito imediato desta declaração de Bolsonaro vem a ser o enfraquecimento do esforço de governadores e prefeitos na imposição de medidas restritivas fundamentais para controle da pandemia. Diminui a credibilidade dos governadores ao se difundir, com respaldo em inexistente relatório do TCU, ser uma farsa a mortandade em razão da Covid-19, para indiretamente reintroduzir a ideia de tudo não passar de uma “gripezinha”.
Dessa maneira, pouco se preocupa se a população, a crer na palavra do presidente, descuidará de obedecer às recomendações de uso de máscara, distanciamento social, lavar as mãos, passar álcool em gel e se vacinar. Mais vale acusar levianamente governadores de ato vil, pois podem ser eventuais concorrentes em 2022, do que se irmanar a eles para salvar vidas. E ainda por cima, busca uma redução de danos em vista do negacionismo adotado, para escapar da acusação de responsabilidade pelas mortes de tantos brasileiros.
Creio que o presidente incorre em três hipóteses de crime de responsabilidade previstas na Lei nº 1079/50, passível de impeachment por seu comportamento neste episódio, além de toda sua conduta ao longo de ano e meio de pandemias.
Constitui crime de responsabilidade previsto no art. 7º. n. 9:
“Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:
…………………………………………………
9 – violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição“[1];
Dentre os direitos sociais, sobressai na Constituição Federal de 1988 o direito à saúde, conforme o disposto no art. 6o. e no art. 196, segundo o qual “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos”.
Em vez de implementar medidas de proteção à saúde, em meio a uma pandemia mortal, o presidente conspira contra cautelas que visam à redução do risco, colocando, por interesse político-eleitoral, pessoas em perigo, enfraquecendo a adoção de cuidados essenciais à não disseminação da doença.
Valeu-se de informação falsa, de fonte por ele sabidamente comprometida e que deveria saber inverídica, pois sancionou a lei que fixara percentual maior de parte do auxílio emergencial conforme o número de casos e não o número de mortes, como disse.
A insistência em dizer serem falsos números de mortes, após o desmentido do TCU, revela o descaso com a saúde pública, em preciso atentado contra a efetividade do direito à saúde da população.
Ao lançar descrédito à pessoa dos governadores que lutam nos seus estados para conter a pandemia, vem o presidente por meio do crime de atentar contra a saúde pública, a cometer outra infração à Lei nº 1.079/50, qual seja o constante do art. 6º. n. 7, qual seja: – “praticar contra os poderes estaduais ou municipais ato definido como crime neste artigo”.
A competência concorrente no campo da saúde pública entre União, estados e municípios já foi fixada claramente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e está prevista no caso da luta frente à Covid-19 na Lei nº 13.979/20, sancionada pelo presidente.
Ao acusar levianamente governadores de falsear dados de mortos por Covid-19, afronta o direito à saúde por fragilizar as necessárias medidas preventivas impostas por governadores, efetivando, destarte, ato contra os poderes estaduais por via de crime de responsabilidade.
Por fim, ao divulgar calúnia lesiva aos governadores, com o fito de minimizar responsabilidade pelo desastre social causado por seu negacionismo, o presidente falta à dignidade e ao decoro exigíveis no exercício do cargo. Constitui crime de responsabilidade proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo, conforme edita o art. 9º, n. 7 da Lei nº 1079/50.
Difundir mentira, com as graves consequências dela derivadas, é sem dúvida faltar com o decoro e agir de forma indigna, pois ter decoro significa atuar com decência. É decente o que é honesto, e responsável por não colocar o interesse pessoal acima do interesse da comunidade que tem o dever de proteger.
Ao mentir na sua fala matinal com repercussão imediata na mídia, o presidente abusa do poder político que detém, não age retamente, pois busca enganar a população para extrair da inverdade benefício pessoal, em prejuízo da instituição da presidência da República, que perde seu ornamento moral.
É próprio, portanto, da presidência da República proteger a imagem do poder aos olhos do povo mediante o respeito à verdade e a promoção dos direitos dos cidadãos. Mentir e insistir na mentira não é conduta compatível com a presidência da República, cargo ao qual se atribui o dever de zelar pela respeitabilidade do exercício do poder em benefício da estrutura democrática. Desfaz-se a autoridade quando se revela que o titular do poder político mente e o faz em seu benefício e em prejuízo do seu povo.
Falta retidão moral na conduta de mentir como o fez o presidente, em questão da maior gravidade, atingindo malevolamente governadores e fragilizando cautelas necessárias para preservar a saúde da população. Há, portanto, uma conduta destituída de decoro e indigna.
Em suma, é mais um episódio do qual podemos brasileiros nos envergonhar. Atingidos fomos todos ao se desprestigiar a instituição da presidência da República.
Transitando sempre em um universo paralelo, o presidente reiteradamente desmerece as instituições da República e torna-se indigno do exercício do cargo de mandatário da Nação.