O Dr. Anthony Fauci, o principal infectologista dos EUA, advertiu sem rodeios no programa “Estado da União” da CNN no domingo que a pandemia da Covid-19 está “indo na direção errada”, já que metade do país não está totalmente vacinado e há uma parcela importante da população que recusa se imunizar. Sob o impacto da variante delta, mais transmissível, o número de casos e mortes voltou a subir.
Fauci advertiu que a grande maioria das mortes de norte-americanos nesse quadro irá acontecer entre os não-vacinados. “Este é um problema predominantemente entre os não vacinados, e é por isso que estamos praticamente implorando aos não vacinados que saiam e se vacinem”, ele disse ao jornalista Jake Tapper.
De acordo com o CDC, o órgão de saúde pública dos EUA, 97% das pessoas atualmente hospitalizadas pelo vírus não foram vacinadas, o que vai a 99% no caso das mortes. As infecções pela variante delta já são 87% de todas as ocorrências. “Isso está se tornando uma pandemia de não vacinados”, disse a diretora do CDC, Rochelle Walensky.
Segundo a CNN, as pesquisas estão mostrando que muitos norte-americanos em Estados conservadores permanecem “profundamente céticos em relação à vacina e muitos pretendem nunca tomá-la, ou é altamente improvável que mudem de ideia quando o vírus – e uma variante altamente contagiosa – começa a aumentar seu terrível tributo”.
Pelos números: os EUA tiveram um aumento de 170% em relação à média móvel de 14 dias nos novos casos e de 20% nas mortes. Aproximadamente 66% dos americanos elegíveis receberam pelo menos uma dose da vacina COVID-19 e 57% estão totalmente vacinados.
ROLETA AMERICANA
Questão mostrada dramaticamente por pesquisa da semana passada feita pelo Centro de Pesquisa de Assuntos Públicos da Associated Press-NORC entre adultos americanos que ainda não receberam a vacina, que revelou que 45% dizem que “definitivamente não” tomarão as vacinas e 35% dizem que “provavelmente não”.
Situação que, segundo a emissora, está forçando a Casa Branca a reavaliar seus cálculos, tanto no aspecto sanitário quanto das repercussões na economia, diante de uma crise que se esperava estivesse prestes a acabar. Em 4 de julho, Biden anunciara que o “vírus estava batendo em retirada” e os EUA “estavam de volta”.
A reavaliação incluiria, por exemplo, a possibilidade de voltar a recomendar uso de máscara para os vacinados em áreas onde a disseminação do vírus saiu de controle.
“A perspectiva de outro outono e inverno brutais na pandemia também ameaça prejudicar a ambiciosa agenda do presidente, assombrar sua presidência e prejudicar a recuperação econômica em eleições de meio de mandato que já eram um desafio difícil”, observa a CNN.
Em uma nota recente aos investidores, os economistas do Bank of America Stephen Juneau e Anna Zhou advertiram que a variante Delta pode levar a uma mudança no comportamento do consumidor, gerando “retração nos gastos com serviços”.
Cada Estado que votou em Trump em 2020 vacinou totalmente menos da metade de seus residentes, de acordo com os dados mais recentes do CDC. Nesses Estados, uma média de 42% das pessoas estão totalmente vacinadas, em comparação com uma média de 54% totalmente vacinadas nos Estados que votaram em Biden.
CASA DE FERREIRO
Também líderes republicanos começaram a se preocupar com a questão, na medida em que os Estados aonde a pandemia mais vem se agravando são aqueles que votaram em Trump, como a Flórida, Texas e Louisiana.
Assim, a governadora republicana do Alabama, Kay Ivey, disse que “está na hora de começar a culpar as pessoas que não se vacinam” pelo recrudescimento da Covid-19. De acordo com o jornal Guardian, apenas um terço das pessoas aptas no Estado para receber a vacina foram imunizadas, uma das taxas mais baixas do país.
A governadora sublinhou que as vacinas “são a melhor arma que temos para lutar contra a Covid-19”.
“Supõem-se que as pessoas tenham bom senso, mas está na hora de começar a culpar as pessoas que não se vacinam, não aquelas que se vacinam. São as pessoas não vacinadas que estão nos desestabilizando”, acrescentou.
“Quase 100% das novas hospitalizações são com pessoas não vacinadas. E as mortes certamente estão ocorrendo com pessoas não vacinadas. Essas pessoas estão escolhendo um estilo de vida horrível de dor autoinfligida. Gente, precisamos fazer as pessoas tomarem a vacina”.
DANO COLATERAL
Na realidade, esse quadro não acontece espontaneamente e é fruto da campanha de desinformação e negacionismo intencionalmente desencadeada pelo governo Trump, que praticamente tornou como linha divisória entre republicanos ‘genuínos’ e democratas o questionamento da vacinação, a recusa de máscara e o apego à hidroxicloroquina.
Com os Estados republicanos no olho do furacão, algumas personalidades republicanas já começam a querer se diferenciar dos aprendizes de feiticeiro.
O governador republicano de Arkansas, Asa Hutchinson, explicitou o que está levando ao desastre. “Este é um momento crucial em nossa corrida contra o vírus Covid. Temos aulas chegando. Temos muitas atividades esportivas que as pessoas estão esperando e estão ansiosas”, disse Hutchinson a Tapper. “E o que nos impede é uma baixa taxa de vacinação.”
Uma no cravo, outra na ferradura. Hutchinson segue defendendo que era correta a proibição no Estado de que as autoridades municipais determinassem o uso de máscara, já que, segundo ele, na época o vírus estava em “níveis baixos” de transmissão. Empurrou a responsabilidade para os cidadãos comuns: “sabiam exatamente o que fazer”.
O próprio Trump, em um comício no Arizona, recomendou às pessoas que se “vacinassem”, ao mesmo tempo em que jogava a responsabilidade pela desconfiança sobre a vacinação nos ombros do governo Biden. “As pessoas não estão vacinando porque não confiam no presidente”, apontou. E, adulando o negacionismo da sua base, acrescentou também acreditar “em sua liberdade 100%”.
NEGACIONISTAS
No Congresso, a divisão entre os republicanos fica patente. No Senado, conforme a CNN, 46 dos 50 senadores estão vacinados; dois se recusam a dizer se estão ou não, enquanto Rand Paul e Ron Johnson enchem a boca para recusar a vacina.
Na Câmara, onde o controle de Trump sobre a bancada republicana é muito maior, pouco mais da metade dos republicanos está vacinada: 114 de 211.
O republicano calouro Peter Meijer considerou a apologia antivacina “equivalente a dizer às pessoas para não usarem cinto de segurança quando estamos sofrendo uma quantidade enorme de fatalidades nas estradas. Portanto, há um imperativo moral e humanitário de ser aberto e honesto”, acrescentou.
O líder da minoria Steve Scalise anunciou ter finalmente se vacinado e foi à Fox News para encorajar outros.”Eu tinha os anticorpos, mas com esta nova variante Delta que você está vendo, visitei muitos hospitais nas últimas semanas e você está vendo os casos aumentarem”.
ANTES TARDE …
Assim, começam a aparecer convocações de republicanos à vacinação. O líder da minoria Mitch McConnell, um sobrevivente da pólio, disse na semana passada que a vacina “precisa chegar ao braço de todos o mais rápido possível. Quero encorajar todos a fazer isso e ignorar todas essas outras vozes que estão dando conselhos comprovadamente ruins.”
“É desanimador que tantas pessoas permaneçam não vacinadas. Sou um grande fã de vacinas. Tive uma experiência pessoal com isso na minha própria vida e fica bem claro por todas as evidências que se você pega a doença, você é muito mais provavelmente sobreviverá se você for vacinado”, acrescentou.
O senador republicano Richard Burr relatou que diz aos seus eleitores que “se você não quer ir para o hospital e não quer morrer, tome uma vacina”. “Este é um vírus muito sério. As pessoas não devem arriscar suas vidas ou a vida de seus filhos.”
Segundo o senador democrata Chris Murphy, na Câmara os republicanos têm sido cúmplices da desinformação e negacionismo. “Não há dúvida de que uma grande parte do Partido Republicano nacional está enviando uma mensagem antivacina para sua base”, disse Murphy. O que ele considerou “criminosamente negligente”.
LIBERDADE ?
Para a CNN, a questão das vacinas “atinge a questão central das liberdades americanas e até que ponto os interesses de um indivíduo devem permanecer sacrossantos, mesmo que suas ações coloquem em risco o resto da comunidade”.
Dilema resumido pela emissora: os “céticos da vacina” argumentam que o governo não deve ter poder para impedir que eles visitem seu bar ou restaurante favorito, estejam ou não imunizados. Já os “americanos vacinados” questionam por que aqueles que não vão tomar a vacina não se dispõem a ajudar a acabar com a pandemia para todos e a evitar o aparecimento de novas variantes resistentes às vacinas.
“Se alguém não quiser ser vacinado, não tenho desejo de segurá-lo e forçá-lo a se vacinar, mas eles devem se certificar de que não prejudiquem outras pessoas”, disse Lawrence Gostin, professor de Direito global de Saúde na Universidade de Georgetown.
“Eles recebem ou a vacina ou têm que fazer dois testes por semana; eles têm que usar máscara. Mas devemos ter certeza absoluta de que, se você decidir não ser vacinado, você simplesmente não terá o direito de ir sem máscara e não vacinado em um local de trabalho lotado”, disse Gostin à CNN. “Precisamos tornar a vacinação o padrão, a escolha fácil.”
A exigência de que os trabalhadores de saúde dos EUA sejam obrigados a tomar a vacina contra a Covid-19 foi defendida na semana passada por mais de 50 associações médicas, incluindo a Associação Médica Americana e a Associação Americana de Enfermagem. O Departamento de Assuntos dos Veteranos se tornou a primeira agência federal a exigir de seus funcionários a vacinação. Os funcionários públicos da cidade de Nova York e do Estado da Califórnia terão de se vacinar, ou se submeterem semanalmente a teste da Covid.