No ataque ao Donbass, “o governo ucraniano recorreu a milícias paramilitares essencialmente compostos por mercenários estrangeiros e muitas vezes ativistas de extrema direita armados, financiados e treinados pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá e França.”, denuncia o coronel Jacques Baud
O autor do artigo detalhando o desenrolar das tensões fomentadas pela Casa Branca até que desembocaram na crise atual entre Rússia e Ucrânia, cujos principais trechos publicamos, Jacques Baud é um ex-coronel do Estado-Maior Geral, ex-membro da inteligência estratégica suíça.
Baud é especialista em países do Leste Europeu. Ele foi treinado nos serviços de inteligência americanos e britânicos. Era o chefe de doutrina para as operações de manutenção da paz das Nações Unidas. Especialista das Nações Unidas em Estado de Direito e instituições de segurança. Trabalhou para a União Africana e foi responsável por combater a proliferação de armas pequenas na OTAN por 5 anos. Jacques estava conversando com altos oficiais militares e de inteligência russos logo após a queda da URSS. Dentro da OTAN, acompanhou a crise na Ucrânia de 2014, depois participou de programas de assistência à Ucrânia. É autor de vários livros sobre inteligência, guerra e terrorismo, com destaque para “Govern by fake News”.
Boa leitura
PARTE UM: NO CAMINHO DA GUERRA
Durante anos, do Mali ao Afeganistão, trabalhei pela paz e arrisquei minha vida por isso. Não se trata, então, de justificar a guerra, mas de entender o que nos levou a ela. Percebo que os “especialistas” que se revezam nas televisões analisam a situação com base em informações duvidosas, na maioria das vezes hipóteses transformadas em fatos, e por isso não conseguimos mais entender o que está acontecendo. É assim que você cria pânico.
O problema não é tanto quem está certo neste conflito, mas como nossos líderes tomam suas decisões.
Tentemos examinar as raízes do conflito. Começa com aqueles que nos últimos oito anos nos falaram sobre “separatistas” ou “independência” do Donbass. É falso. Os referendos realizados pelas duas autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk, em maio de 2014, não foram referendos sobre “independência” (независисимость), como alegaram alguns jornalistas inescrupulosos, mas sobre “autodeterminação” ou “autonomia” (самостоятельность). O termo “pró-russo” sugere que a Rússia era parte do conflito, o que não era o caso, e o termo “falantes de russo” teria sido mais honesto. Além disso, esses referendos foram realizados contra o conselho de Vladimir Putin.
De fato, essas repúblicas não buscavam se separar da Ucrânia, mas sim ter um status de autonomia que lhes garantisse o uso da língua russa como língua oficial. Porque o primeiro ato legislativo do novo governo resultante da derrubada do presidente Yanukovych foi a abolição, em 23 de fevereiro de 2014, da lei Kivalov-Kolesnichenko, de 2012, que tornou o russo uma língua oficial. Um pouco como se os golpistas decidissem que o francês e o italiano não seriam mais as línguas oficiais da Suíça.
Esta decisão causa uma tempestade na população de língua russa. Isso resultou em uma repressão feroz contra as regiões de língua russa (Odessa, Dnepropetrovsk, Kharkov, Lugansk e Donetsk), que começou em fevereiro de 2014 e levou a uma militarização da situação e alguns massacres (em Odessa e Mariupol, os mais importantes) . No final do verão de 2014, restavam apenas as autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk.
Nesta fase, demasiadamente rígidos e presos a uma abordagem doutrinária à arte operacional, os estados-maiores ucranianos sangraram o inimigo sem conseguir se impor. A análise do curso dos combates em 2014-2016 em Donbass mostra que o estado-maior ucraniano aplicou sistemática e mecanicamente os mesmos planos operacionais. No entanto, a guerra travada pelos autonomistas era então muito semelhante à que observamos no Sahel: operações altamente móveis realizadas com meios leves. Com uma abordagem mais flexível e menos doutrinária, os rebeldes conseguiram explorar a inércia das forças ucranianas para “pegá-las” repetidamente.
Em 2014, estou na Otan, responsável pela luta contra a proliferação de armas pequenas, e estamos tentando detectar entregas de armas russas aos rebeldes para ver se Moscou está envolvida. As informações que recebemos vêm quase inteiramente dos serviços de inteligência poloneses e não “correspondem” às informações da OSCE [Organização para Segurança e Cooperação na Europa]: apesar das acusações bastante grosseiras, não observamos nenhuma entrega de armas e materiais militares russos.
Os rebeldes estão armados graças às deserções de unidades ucranianas de língua russa que passam para o lado rebelde. À medida que os fracassos ucranianos progrediam, batalhões inteiros de tanques, artilharia ou antiaérea engrossaram as fileiras dos autonomistas. É isso que leva os ucranianos a se comprometerem com os Acordos de Minsk.
Mas, logo após a assinatura dos Acordos de Minsk 1, o presidente ucraniano Petro Poroshenko lançou uma grande operação antiterrorista (ATO/Antiteroristichnа операція) contra o Donbass. Mal assessorados pelos oficiais da Otan, os ucranianos sofreram uma derrota esmagadora em Debaltsevo que os obrigou a se comprometer com os Acordos de Minsk 2…
É essencial lembrar aqui que os Acordos de Minsk 1 (setembro de 2014) e Minsk 2 (fevereiro de 2015) não previam a separação ou independência das repúblicas, mas sua autonomia no âmbito da Ucrânia. Aqueles que leram os Acordos (são muito, muito, muito poucos) descobrirão que está totalmente escrito que o status das repúblicas deveria ser negociado entre Kiev e os representantes das repúblicas, para uma solução interna na Ucrânia.
É por isso que, desde 2014, a Rússia exige sistematicamente sua implementação, recusando-se a participar das negociações, porque era um assunto interno da Ucrânia. Por outro lado, os ocidentais – liderados pela França – tentaram sistematicamente substituir os Acordos de Minsk pelo “formato da Normandia”, que opunha os russos aos ucranianos. No entanto, lembremos que nunca houve tropas russas no Donbass antes de 23 a 24 de fevereiro de 2022. Além disso, os monitores da OSCE nunca observaram o menor vestígio de unidades russas operando no Donbass. Assim, o mapa de inteligência dos EUA publicado pelo Washington Post em 3 de dezembro de 2021 não mostra tropas russas no Donbass.
Em outubro de 2015, Vasyl Hrytsak, diretor do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU), confessou que apenas 56 combatentes russos foram observados em Donbass. Era até comparável com os suíços indo lutar na Bósnia durante os fins de semana na década de 1990, ou os franceses indo lutar na Ucrânia hoje.
O exército ucraniano estava então em um estado deplorável. Em outubro de 2018, após quatro anos de guerra, o procurador-chefe militar da Ucrânia, Anatoly Matios, disse que a Ucrânia havia perdido 2.700 homens no Donbass: 891 por doença, 318 por acidentes de trânsito, 177 por outros acidentes, 175 por envenenamento (álcool, drogas), 172 por manuseio descuidado de armas, 101 por violação das normas de segurança, 228 por homicídio e 615 por suicídio.
De fato, o exército é minado pela corrupção de seus quadros e não tem mais o apoio da população. Segundo um relatório do Ministério do Interior do Reino Unido, quando os reservistas foram convocados em março-abril de 2014, 70% não compareceram à primeira sessão, 80% à segunda, 90% à terceira e 95% à quarta. Em outubro/novembro de 2017, 70% dos convacadores não apareceram durante a campanha de retorno de chamada “Outono 2017”. Isso não inclui suicídios e deserções (muitas vezes em benefício de autonomistas) que atingem até 30% da força de trabalho na Zona ATO [Operação Anti-Terrorista]. Os jovens ucranianos se recusam a ir ao Donbass para lutar e preferem a emigração, o que também explica, pelo menos em parte, o déficit demográfico do país.
O Ministério da Defesa da Ucrânia recorreu então à Otan para obter ajuda para tornar as suas forças armadas mais “atraentes”. Tendo já trabalhado em projetos semelhantes no âmbito das Nações Unidas, a Otan pediu-me para participar num programa destinado a restaurar a imagem das forças armadas ucranianas. Mas é um processo longo e os ucranianos querem ir rápido.
Assim, para compensar a falta de soldados, o governo ucraniano recorreu a milícias paramilitares. Eles são essencialmente compostos por mercenários estrangeiros, muitas vezes ativistas de extrema direita. A partir de 2020, eles representam cerca de 40% das forças da Ucrânia e são cerca de 102.000 homens, de acordo com a Reuters. Eles são armados, financiados e treinados pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá e França. São mais de 19 nacionalidades, incluindo a suíça.
AS CENTURIAS: MILÍCIAS DE FANÁTICOS ESSENCIALMENTE ANTISSEMITAS
Assim, as milícias de extrema-direita ucranianas foram claramente criadas e apoiadas pelos países ocidentais. Em outubro de 2021, o Jerusalem Post soou o alarme ao denunciar o projeto Centuria. Essas milícias operam no Donbass desde 2014, com apoio ocidental. Mesmo que possamos argumentar com o termo “nazista”, o fato é que essas milícias são violentas, transmitem uma ideologia suja e são virulentamente anti-semitas. Seu antissemitismo é mais cultural do que político.
Essas milícias, nascidas dos grupos de extrema direita que lideraram a revolução Euromaidan em 2014, são formadas por indivíduos fanáticos e brutais. O mais conhecido deles é o regimento Azov, cujo emblema lembra o da 2ª Divisão SS Panzer Das Reich, que é verdadeiramente reverenciado na Ucrânia por ter ‘libertado’ Kharkov dos soviéticos em 1943, antes de cometer o massacre de Oradour-sur-Glane em 1944, na França.
O rótulo “nazista” ou “neo-nazista” dado aos paramilitares ucranianos é considerado propaganda russa. Pode ser; mas essa não é a opinião do The Times of Israel, do Simon Wiesenthal Center ou do West Point Academy – Counterterrorism Center. Além do que, isso permanece discutível, porque, em 2014, a revista Newsweek parecia associá-los ao… Estado Islâmico. A escolha fica a cargo do leitor.
Assim, o Ocidente apoia e continua armando milícias que são culpadas de inúmeros crimes contra a população civil desde 2014: estupro, tortura e massacres. Mas, embora o governo suíço tenha sido muito rápido em impor sanções contra a Rússia, não adotou nenhuma contra a Ucrânia, que vem massacrando sua própria população desde 2014. De fato, os defensores dos Direitos Humanos na Ucrânia há muito condenam as ações desses grupos, mas não foram seguidos pelos nossos governos. Porque, na realidade, não estamos tentando ajudar a Ucrânia, mas lutar contra a Rússia.
A integração destes paramilitares na Guarda Nacional não foi de forma alguma acompanhada de uma “desnazificação”, como afirmam alguns. Entre os muitos exemplos, o da insígnia do Regimento Azov é edificante:
Em 2022, de forma muito esquemática, as forças armadas ucranianas que combatem a ofensiva russa estão estruturadas como:
– Exército, dependente do Ministério da Defesa: está dividido em 3 corpos de exército e é constituído por formações de manobra (tanques, artilharia pesada, mísseis, etc.);
– Guarda Nacional, que depende do Ministério do Interior e está dividida em 5 comandos territoriais.
A Guarda Nacional é uma força de defesa territorial que não faz parte do exército ucraniano. Inclui milícias paramilitares, chamadas “batalhões voluntários” (добровольчі батальйоні), também conhecidas pelo nome evocativo de “batalhões de retaliação”, compostos de infantaria. Treinados principalmente para o combate urbano, agora atuam em cidades como Kharkov, Mariupol, Odessa, Kiev, etc.
PARTE DOIS: A GUERRA
Ex-chefe das forças do Pacto de Varsóvia no serviço de inteligência estratégico suíço, noto com tristeza, mas não com surpresa, que nossos serviços não estão mais em condições de entender a situação militar na Ucrânia. Os autoproclamados “especialistas” desfilando em nossas telas transmitem incansavelmente a mesma informação modulada pela afirmação de que a Rússia – e Vladimir Putin – é irracional. Vamos dar um passo para trás.
O ESTOPIM DA GUERRA
Desde novembro de 2021, os americanos levantam constantemente a ameaça de uma invasão russa da Ucrânia. No entanto, os ucranianos não parecem concordar. Por quê?
Temos que voltar a 24 de março de 2021. Nesse dia, Volodymyr Zelensky promulgou um decreto para a reconquista da Crimeia e começou a enviar suas forças para o sul do país. Simultaneamente, ocorreram vários exercícios da Otan entre o Mar Negro e o Mar Báltico, acompanhados por um aumento significativo dos voos de reconhecimento ao longo da fronteira russa. A Rússia então realiza alguns exercícios para testar a prontidão operacional de suas tropas e mostrar que está acompanhando a evolução da situação.
As coisas se acalmam até outubro-novembro com o fim dos exercícios do ZAPAD 21, cujos movimentos de tropas são interpretados como reforço para uma ofensiva contra a Ucrânia. No entanto, até as autoridades ucranianas refutam a ideia dos preparativos russos para a guerra, com Oleksiy Reznikov, ministro da Defesa ucraniano, declarando que não houve mudanças em sua fronteira desde a primavera.
Violando os Acordos de Minsk, a Ucrânia realizou operações aéreas no Donbass usando drones, incluindo pelo menos um ataque a um depósito de combustível em Donetsk em outubro de 2021. A imprensa americana aponta o fato, mas os europeus não e ninguém condena essas violações.
Em fevereiro de 2022, os eventos se aceleram. Em 7 de fevereiro, durante sua visita a Moscou, Emmanuel Macron reafirma a Vladimir Putin seu apreço aos Acordos de Minsk, compromisso que repetirá após seu encontro com Volodymyr Zelensky no dia seguinte. Mas no dia 11 de fevereiro, em Berlim, após 9 horas de trabalho, termina a reunião dos assessores políticos dos líderes do “formato da Normandia”, sem resultado concreto: os ucranianos ainda e sempre se recusam a aplicar os Acordos de Minsk, aparentemente sob pressão dos Estados Unidos. Vladimir Putin então percebe que Macron fez promessas vazias a ele e que o Ocidente não está pronto para fazer cumprir os Acordos, como vem fazendo há oito anos.
Os preparativos ucranianos continuam na zona de contato. O parlamento russo está alarmado e em 15 de fevereiro pede a Vladimir Putin que reconheça a independência das repúblicas [Lugansk e Donetsk], o que ele recusa.
Em 17 de fevereiro, o presidente Joe Biden anuncia que a Rússia atacará a Ucrânia nos próximos dias. Como você sabe? Mistério… Mas, depois do dia 16, os bombardeios de artilharia contra as populações de Donbass aumentaram dramaticamente, como mostram os relatórios diários dos monitores da OSCE. Naturalmente, nem a mídia, nem a União Europeia, nem a Otan, nem qualquer governo ocidental reage e intervém. Diremos mais tarde que isso é desinformação russa. De fato, parece que a União Européia e alguns países encobriram deliberadamente o massacre do povo do Donbass, sabendo que isso provocaria a intervenção russa.
Ao mesmo tempo, há relatos de atos de sabotagem no Donbass. Em 18 de janeiro, os caças do Donbass interceptam sabotadores de língua polonesa equipados pelo ocidente que tentavam criar incidentes químicos em Gorlivka. Eles poderiam ser mercenários da CIA, dirigidos ou “aconselhados” por americanos e formados por combatentes ucranianos ou europeus, para realizar ações de sabotagem nas Repúblicas do Donbass.
O aumento maciço do fogo contra a população de Donbass a partir de 16 de fevereiro indica aos russos que uma grande ofensiva é iminente. É isso que leva Vladimir Putin a reconhecer a independência das Repúblicas e a considerar uma intervenção no âmbito do artigo 51 da Carta das Nações Unidas.
De fato, já em 16 de fevereiro, Joe Biden sabia que os ucranianos começaram a bombardear a população civil do Donbass, colocando Vladimir Putin diante de uma escolha difícil: ajudar militarmente o Donbass e criar um problema internacional, ou ficar de braços cruzados e observar os falantes de russo serem esmagados.
Se decidir intervir, Vladimir Putin pode invocar a obrigação internacional de “Responsabilidade de Proteger” (R2P). Mas ele sabe que qualquer que seja sua natureza ou escala, a intervenção desencadeará uma enxurrada de sanções. Assim, quer sua intervenção se limite ao Donbass ou vá mais longe para pressionar o Ocidente sobre o status da Ucrânia, o preço a pagar será o mesmo. É assim que ele explica em seu discurso em 21 de fevereiro.
Naquele dia ele concordou com o pedido da Duma e reconheceu a independência das duas repúblicas de Donbass e, aliás, assinou tratados de amizade e assistência com elas.
O bombardeio da artilharia ucraniana continuou sobre as populações de Donbass e, em 23 de fevereiro, as duas repúblicas solicitaram ajuda militar da Rússia. No dia 24, Vladimir Putin invoca o artigo 51 da Carta das Nações Unidas, que prevê a assistência militar mútua no âmbito de uma aliança defensiva.
Para tornar a intervenção russa totalmente ilegal aos olhos do público, obscurecemos deliberadamente o fato de que a guerra realmente começou em 16 de fevereiro. O exército ucraniano estava se preparando para atacar Donbass já em 2021, como certos serviços de inteligência russos e europeus estavam bem cientes… Os juristas vão julgar.
Em seu discurso de 24 de fevereiro, Vladimir Putin anunciou os dois objetivos de sua operação: “desmilitarizar” e “desnazificar” a Ucrânia. Portanto, não se trata de tomar a Ucrânia, ou mesmo, muito provavelmente, de ocupá-la, muito menos de destruí-la.
A partir daí, nossa visibilidade do curso da operação é limitada: os russos têm excelente segurança operacional (OPSEC) e os detalhes de seu planejamento não são conhecidos. Mas com bastante rapidez, o curso das operações permite entender como os objetivos estratégicos foram traduzidos no plano operacional.
Desmilitarização:
● destruição terrestre da aviação ucraniana, sistemas de defesa aérea e meios de reconhecimento;
● neutralização das estruturas de comando e inteligência (C3I), bem como das principais rotas logísticas dentro do território;
● cerco do grosso do exército ucraniano concentrado no sudeste do país.
Desnazificação:
● destruição ou neutralização de batalhões voluntários que operam nas cidades de Odessa, Kharkov e Mariupol, bem como várias instalações no território.
A “DESMILITARIZAÇÃO”
A ofensiva russa prossegue de forma muito “clássica”. No início – como os israelenses haviam feito em 1967 – com a destruição em solo das forças aéreas nas primeiras horas. Assim, vemos uma progressão simultânea em vários eixos segundo o princípio da “água corrente”: avançamos onde a resistência é fraca e deixamos as cidades (com mais tropas) para depois. Ao norte, a usina de Chernobyl é imediatamente ocupada para evitar atos de sabotagem. Naturalmente, as imagens dos soldados ucranianos e russos que guardam conjuntamente a fábrica não são mostradas…
A ideia de que a Rússia está tentando tomar Kiev, a capital, para eliminar Zelensky, geralmente vem do Ocidente: é o que eles fizeram no Afeganistão, Iraque, Líbia e o que eles queriam fazer na Síria com a ajuda do Estado Islâmico. Mas Vladimir Putin nunca teve a intenção de derrubar Zelensky. Pelo contrário, a Rússia procura mantê-lo no poder, empurrando-o para negociar enquanto cerca Kiev. Recusou-se a fazê-lo até agora para implementar os Acordos de Minsk, mas agora os russos querem a neutralidade da Ucrânia.
Muitos comentaristas ocidentais ficaram atônitos com o fato dos russos continuarem a buscar uma solução negociada enquanto realizavam operações militares. A explicação está na concepção estratégica russa, desde os tempos soviéticos. Para os ocidentais, a guerra começa quando a política cessa. No entanto, a abordagem russa segue uma inspiração de Clausewitz: a guerra é a continuidade da política e pode-se passar suavemente de uma para outra, mesmo durante o combate. Isso cria pressão sobre o oponente e o empurra para negociar.
A maior parte do exército ucraniano foi implantado no sul do país para uma grande operação contra Donbass. É por isso que as forças russas conseguiram cercá-lo desde o início de março no “caldeirão” entre Slavyansk, Kramatorsk e Severodonetsk, com um ataque vindo do leste através de Kharkov e outro vindo do sul da Crimeia. As tropas das Repúblicas de Donetsk (DPR) e Lugansk (RPL) completam a ação das forças russas com um empurrão do Oriente.
Nesta fase, as forças russas estão lentamente apertando o laço, mas não estão mais pressionadas pelo tempo. Seu objetivo de desmilitarização é amplamente alcançado e as forças ucranianas residuais não têm mais uma estrutura de comando operacional e estratégica.
O “freio” que os nossos “experts” atribuem à má logística é apenas consequência do cumprimento dos objetivos traçados. A Rússia parece não querer participar de uma ocupação de todo o território ucraniano. Na verdade, parece que a Rússia está tentando limitar seu avanço à fronteira linguística do país.
Nossa mídia fala de bombardeios indiscriminados contra a população civil, particularmente em Kharkov, e imagens dantescas são transmitidas em loop. No entanto, Gonzalo Lira, um latino-americano que mora lá, nos presenteia com uma cidade tranquila nos dias 10 e 11 de março . É verdade que é uma cidade grande e você não pode ver tudo, mas isso parece indicar que não estamos na guerra total que somos continuamente servidos em nossas telas.
Quanto às Repúblicas de Donbass, elas “libertaram” seus próprios territórios e estão lutando na cidade de Mariupol.
A “DESNAZIFICAÇÃO”
Em cidades como Kharkov, Mariupol e Odessa, a defesa é feita por milícias paramilitares. Eles sabem que o objetivo da “desnazificação” é voltado principalmente para eles.
Para um atacante em uma área urbana, os civis são um problema. É por isso que a Rússia procura criar corredores humanitários para esvaziar as cidades de civis e deixar apenas as milícias para poder combatê-las mais facilmente.
Em vez disso, essas milícias procuram manter civis nas cidades para impedir que o exército russo venha lutar lá. É por isso que eles relutam em implementar esses corredores e fazem o possível para que os esforços russos sejam em vão: eles podem usar a população civil como “escudos humanos”. Vídeos mostrando civis tentando deixar Mariupol e sendo espancados por combatentes do regimento Azov são naturalmente cuidadosamente censurados aqui.
No Facebook, o grupo Azov foi considerado na mesma categoria do Estado Islâmico e sujeito à “política de pessoas e organizações perigosas” da plataforma. Por isso, foi proibido glorificá-lo e os “posts” que lhe eram favoráveis foram sistematicamente proibidos. Mas, em 24 de fevereiro, o Facebook mudou sua política e permitiu postagens favoráveis à milícia. No mesmo espírito, em março, a plataforma autoriza, nos antigos países do Leste Europeu, apelos ao assassinato de soldados e líderes russos. Até aqui os valores que inspiram nossos líderes, como veremos.
Nossa mídia propaga uma imagem romântica de resistência popular. É esta imagem que levou a União Europeia a financiar a distribuição de armas à população civil. É um ato criminoso. Em minha função de chefe de doutrina para operações de manutenção da paz na ONU, trabalhei na questão da proteção de civis. Descobrimos então que a violência contra civis ocorreu em contextos muito específicos. Especialmente quando as armas são abundantes e não há estruturas de comando.
Ora, essas estruturas de comando são a essência dos exércitos: sua função é canalizar o uso da força de acordo com um objetivo. Ao armar os cidadãos aleatoriamente, como acontece atualmente, a União Europeia transforma-os em combatentes, com as consequências decorrentes: potenciais alvos. Além disso, sem comando, sem objetivos operacionais, a distribuição de armas leva inevitavelmente ao acerto de contas, ao banditismo e a ações mais mortíferas do que efetivas. A guerra torna-se uma questão de emoções. A força torna-se violência. Foi o que aconteceu em Tawarga (Líbia) de 11 a 13 de agosto de 2011, onde 30.000 negros africanos foram massacrados com armas lançadas de paraquedas (ilegalmente) pela França. Além disso, o Instituto Real Britânico de Estudos Estratégicos (RUSI) não vê valor agregado nessas entregas de armas.
Ao entregar armas a um país em guerra, expõe-se a ser considerado um beligerante. Os ataques russos de 13 de março de 2022 à base aérea de Mykolaiv seguem os avisos russos de que os portadores de armas seriam tratados como alvos hostis.
A UE repete a experiência desastrosa do Terceiro Reich nas últimas horas da Batalha de Berlim. A guerra deve ser deixada para os militares e quando um lado perde, deve ser admitido. E se vai haver resistência, é imperativo que ela seja direcionada e estruturada. No entanto, estamos fazendo exatamente o oposto: estamos pressionando os cidadãos a lutar e, ao mesmo tempo, o Facebook está permitindo pedidos de assassinato de soldados e líderes russos. Até aqui, os valores que nos inspiram.
Em alguns serviços de inteligência, essa decisão irresponsável é vista como uma forma de usar a população ucraniana como bucha de canhão para lutar contra a Rússia de Vladimir Putin. Esse tipo de decisão assassina teve que ser deixada para os colegas do avô de Ursula von der Leyen. Teria sido mais prudente entrar em negociações e, assim, obter garantias para a população civil do que jogar lenha na fogueira. É fácil ser combativo com o sangue alheio…
A MATERNIDADE MARIUPOL
É importante entender de antemão que não é o exército ucraniano que está presente em Mariupol, mas a milícia Azov.
Em seu resumo da situação de 7 de março de 2022, a missão russa da ONU em Nova York afirma que “os moradores relatam que as forças armadas ucranianas expulsaram os funcionários do Hospital Natal nº 1 na cidade de Mariupol e instalaram uma estação de tiro dentro do estabelecimento”.
Em 8 de março, o jornal independente russo Lenta.ru publicou o testemunho de civis de Mariupol que diziam que a maternidade foi tomada por milícias do regimento Azov, e eles perseguiram os ocupantes civis, ameaçando-os com suas armas. Confirmam assim as declarações do embaixador russo de algumas horas antes.
O hospital Mariupol ocupa uma posição de comando, perfeitamente adequada para a instalação de armas antitanque e para observação. Em 9 de março, as forças russas atacaram o prédio. Segundo a CNN, 17 pessoas teriam ficado feridas, mas as imagens não mostram vítimas nas instalações e não há evidências de que quaisquer vítimas mencionadas estejam relacionadas a este ataque. Falamos de crianças, mas na realidade não vemos nada. Pode ser verdade, mas pode ser falso… O que não impede que os líderes da UE vejam isso como um crime de guerra… O que permite que Zelensky, logo em seguida, reivindique uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia…
Na verdade, não sabemos exatamente o que aconteceu. Mas a sequência de eventos tende a confirmar que as forças russas atacaram uma posição do regimento Azov e que a maternidade estava livre de civis.
O problema é que as milícias paramilitares que zelam pela defesa das cidades são incitadas pela comunidade internacional a não respeitar os estatutos da guerra. Parece que os ucranianos recriaram a cena da maternidade na cidade do Kuwait em 1990, que havia sido totalmente encenada pela empresa Hill & Knowlton por um valor de 10,7 milhões de dólares para convencer o Conselho de Segurança das Nações Unidas a intervir no Iraque para a Operação Escudo do Deserto/Tempestade.
Políticos ocidentais também aceitaram ataques contra civis em Donbass por oito anos, sem tomar nenhuma sanção contra o governo ucraniano. Há muito entramos em uma dinâmica na qual os políticos ocidentais concordaram em sacrificar o direito internacional em prol de seu objetivo de enfraquecer a Rússia.
PARTE TRÊS: CONCLUSÕES
Como ex-profissional de inteligência, a primeira coisa que me impressiona é a completa ausência dos serviços de inteligência ocidentais em descrever a situação por um ano. Na Suíça, os serviços foram criticados por não terem fornecido uma imagem correta da situação. Na verdade, parece que em todo o mundo ocidental os serviços foram sobrecarregados por políticos. O problema é que são os políticos que decidem: o melhor serviço de inteligência do mundo é inútil se o decisor não o ouvir. Foi o que aconteceu durante esta crise.
Dito isto, enquanto alguns serviços de inteligência tinham uma imagem muito precisa e racional da situação, outros claramente tinham a mesma imagem propagada por nossos meios de comunicação. Nesta crise, os serviços dos países da “nova Europa” desempenharam um papel importante. O problema é que, por experiência, descobri que eles eram extremamente ruins em nível analítico: doutrinários, não têm a necessária independência intelectual e política para apreciar uma situação com “qualidade” militar. É melhor tê-los como inimigos do que como amigos.
Então, parece que em alguns países europeus os políticos ignoraram deliberadamente seus serviços para responder ideologicamente à situação. É por isso que esta crise foi irracional desde o início. Note-se que todos os documentos que foram apresentados ao público durante esta crise foram apresentados por políticos com base em fontes comerciais…
Certos políticos ocidentais obviamente queriam que houvesse um conflito. Nos Estados Unidos, os cenários de ataque apresentados por Anthony Blinken ao Conselho de Segurança foram apenas o produto da imaginação de um Tiger Team trabalhando para ele: ele fez exatamente a mesma coisa que Donald Rumsfeld em 2002, que assim “ignorou” a CIA e outros serviços de inteligência que foram muito menos assertivos sobre as armas químicas iraquianas.
Os desenvolvimentos dramáticos que estamos testemunhando hoje têm causas que conhecíamos, mas nos recusamos a ver:
● no plano estratégico, a expansão da Otan (de que não tratamos aqui);
● no plano político, a recusa ocidental de implementar os Acordos de Minsk;
● e a nível operacional, os ataques contínuos e repetidos à população civil de Donbass durante anos e o aumento dramático no final de fevereiro de 2022.
Por outras palavras, podemos naturalmente deplorar e condenar o ataque russo. Mas NÓS (ou seja: Estados Unidos, França e União Européia na liderança) criamos as condições para o surgimento de um conflito. Mostramos compaixão pelo povo ucraniano e pelos dois milhões de refugiados. Está bem. Mas se tivéssemos um mínimo de compaixão pelo mesmo número de refugiados das populações ucranianas de Donbass massacradas por seu próprio governo e que se acumulam na Rússia há oito anos, provavelmente nada disso teria acontecido.
Como podemos ver, mais de 80% das vítimas do Donbass vêm de tiros disparados pelo exército ucraniano. Durante anos, os ocidentais permaneceram em silêncio diante do massacre de ucranianos de língua russa pelo governo de Kiev, sem nunca tentar influenciar Kiev. Foi esse silêncio que obrigou a Rússia a agir.
Se o termo “genocídio” se aplica aos abusos sofridos pelas populações de Donbass é uma questão em aberto. Este termo é geralmente reservado para casos maiores (Holocausto, etc), no entanto, a definição dada pela Convenção do Genocídio é provavelmente ampla o suficiente para ser aplicada. Os juristas vão decidir.
Claramente, esse conflito nos levou à histeria. As sanções parecem ter se tornado a ferramenta preferida de nossa política externa. Se tivéssemos insistido para que a Ucrânia respeitasse os Acordos de Minsk, que negociamos e apoiamos, nada disso teria acontecido. A condenação de Vladimir Putin também é nossa. Não adianta reclamar depois do fato, tínhamos que agir antes. No entanto, nem Emmanuel Macron (como fiador e membro do Conselho de Segurança da ONU), nem Olaf Scholz, nem Volodymyr Zelensky respeitaram seus compromissos. Em última análise, a verdadeira derrota é a daqueles que não têm voz.
A União Europeia não conseguiu promover a implementação dos acordos de Minsk, pelo contrário, não reagiu quando a Ucrânia bombardeou a sua própria população no Donbass. Se o tivesse feito, Vladimir Putin não precisaria reagir. Ausente na fase diplomática, a UE distinguiu-se por alimentar o conflito. Em 27 de fevereiro, o governo ucraniano concordou em iniciar negociações com a Rússia. Mas algumas horas depois, a União Europeia votou um orçamento de 450 milhões de euros para fornecer armas à Ucrânia, colocando mais lenha na fogueira. A partir daí, os ucranianos sentem que não precisarão chegar a um acordo. A resistência da milícia Azov em Mariupol provocará inclusive um aumento de 500 milhões de euros em armas.
Na Ucrânia, com a bênção dos países ocidentais, são eliminados aqueles que são a favor de uma negociação. É o caso de Denis Kireyev, um dos negociadores ucranianos, assassinado em 5 de março pelo serviço secreto ucraniano (SBU) por ser muito favorável à Rússia e considerado um traidor. O mesmo destino está reservado para Dmitry Demyanenko, ex-vice-chefe da principal direção da SBU para Kiev e sua região, assassinado em 10 de março, porque ele era muito favorável a um acordo com a Rússia: ele foi assassinado pela milícia Mirotvorets (“Pacificadora”). Esta milícia está associada ao site Mirotvorets que lista os “inimigos da Ucrânia”, com seus dados pessoais, endereço e telefones, para que possam ser assediados ou até mesmo eliminados; uma prática punível em muitos países, mas não na Ucrânia. A ONU e alguns países europeus exigiram seu fechamento… rejeitado pela Rada (parlamento local).
Eventualmente, o preço será alto, mas Vladimir Putin provavelmente alcançará as metas que estabeleceu para si mesmo. Seus laços com Pequim se solidificaram. A China surge como mediadora do conflito, enquanto a Suíça entra na lista de inimigos da Rússia. Os americanos devem pedir petróleo da Venezuela e do Irã para sair do impasse energético em que entraram.
Os ministros ocidentais que procuram desmoronar a economia russa e fazer o povo russo sofrer, inclusive pedindo o assassinato de Putin, mostram (mesmo que tenham invertido parcialmente a forma de suas declarações, mas não a substância!) que nossos líderes não são melhores do que aqueles que nós odiamos, porque sancionar atletas paralímpicos russos ou artistas russos não tem absolutamente nada a ver com lutar contra Putin.
Assim, reconhecemos que a Rússia é uma democracia, pois acreditamos que o povo russo é o responsável pela guerra. Se não, por que estamos tentando punir uma população inteira pela culpa de um? Lembre-se que a punição coletiva é proibida pelas Convenções de Genebra…
A lição a ser tirada desse conflito é nosso senso de geometria humana variável. Se estávamos tão apegados à paz e à Ucrânia, por que não a encorajamos mais a respeitar os acordos que ela assinou e que os membros do Conselho de Segurança aprovaram?
A integridade da mídia é medida por sua vontade de trabalhar sob os termos da Carta de Munique. Eles conseguiram espalhar ódio contra os chineses durante a crise do Covid e sua mensagem polarizada leva aos mesmos efeitos contra os russos. O jornalismo está se despojando cada vez mais do profissionalismo para se tornar militante…
Como disse Goethe: “Quanto maior a luz, mais escura a sombra”. Quanto mais escandalosas as sanções contra a Rússia, mais se destacam nosso racismo e servilismo pelos casos em que não fizemos nada. Por que nenhum político ocidental reagiu aos ataques contra a população civil de Donbass por oito anos?
Afinal, o que torna o conflito na Ucrânia mais repreensível do que a guerra no Iraque, Afeganistão ou Líbia? Que sanções adotamos contra aqueles que deliberadamente mentiram perante a comunidade internacional para travar guerras injustas, injustificadas, injustificáveis e assassinas? Tentamos “fazer sofrer” o povo americano que mentiu para nós (porque é uma democracia!) antes da guerra no Iraque? Adotamos uma única sanção contra os países, empresas ou políticos que estão alimentando o conflito no Iêmen, considerado o “pior desastre humanitário do mundo”? Sancionamos os países da União Europeia que praticam as torturas mais hediondas em seu território em benefício dos Estados Unidos?
Fazer a pergunta é respondê-la… e a resposta não é gloriosa.