
Apoiador pago fez pergunta ensaiada para Bolsonaro: “Eu não assisto a Globo”
No dia 13 de abril de 2020, início da pandemia que já matou mais de 685 mil pessoas no país, Jair Bolsonaro (PL) disse uma frase na saída do Palácio da Alvorada que tinha como alvo a TV Globo e o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que seria demitido três dias depois.
A cena — gravada por várias pessoas e imediatamente veiculada nas redes, onde viralizou — foi previamente combinada entre o governo federal e o site bolsonarista Foco do Brasil, afirma o publicitário Beto Viana.
Naquele dia, ele figurava como apoiador do presidente e foi o responsável por fazer a pergunta. Agora, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Viana disse que havia sido indicado por um amigo e contratado, por telefone, por pessoa de nome Anderson, do Foco do Brasil, canal bolsonarista criado por Anderson Azevedo Rossi, com 2,9 milhões de inscritos no Youtube.
Aquela segunda-feira, 13 de abril, era o primeiro dia de trabalho dele. Ele relata que Anderson o questionou se ele tinha coragem de fazer uma pergunta ao presidente.
“Aí ele falou: ‘Eu vou mandar a pergunta aí no WhatsApp e você faz essa pergunta pra ele. Se qualquer outro apoiador for falar com o presidente, você corta porque o presidente está esperando essa pergunta sua. Aí ele mandou o texto do jeitinho que era pra eu falar.”
“BATOM NA CUECA”
Mensagens de WhatsApp armazenadas no telefone de Viana mostram que, às 8h26 daquele dia, o contato de nome “Anderson Foco do Brasil” mandou mensagens com o texto literal do questionamento e, posteriormente, orientou-o a sempre se fingir de apoiador e buscar não levantar suspeitas de outros repórteres que fazem a cobertura jornalística no local.

Vídeo postado nas redes sociais de Bolsonaro naquele dia mostra a comitiva presidencial parando perto do “cercadinho” – como é chamado esse ponto de entrevistas e conversas com apoiadores -, momento em que o Bolsonaro sai do carro e vai na direção do pequeno grupo que o aguardava.
Viana aparece nas imagens de camisa florida e, assim que vê oportunidade, faz a pergunta, repetindo o texto que havia recebido no telefone celular.
COMBINADO
“Eu não assisto a Globo”, disse Bolsonaro prontamente, sendo ovacionado pelas pessoas no “cercadinho”.
Antes de entrar no carro, o presidente repete a frase, “para toda a imprensa”, e olha diretamente para o auxiliar que está gravando a cena.
“Eu fiquei até meio sem graça porque imaginei que ele ia falar alguma coisa, falar da entrevista e tal, porque, no meu ponto [de vista], seria uma pergunta de imprensa, mas era uma pergunta para ele poder ‘mitar’. Aí ele ‘mitou’”, disse Viana.
Naquele mesmo dia, às 10h, o fotógrafo recebeu uma TED (Transferência Eletrônica Disponível) de R$ 1.100 transferido da conta da “Folha do Brasil Negócios Digitais”, antigo nome do Foco do Brasil. Segundo ele, a informação foi a de que era adiantamento de salário mensal, de R$ 2.000.
FIGURAÇÃO COMO APOIADOR
O publicitário, que hoje trabalha como motorista de aplicativo, afirma que continuou indo ao cercadinho e foi orientado a não fazer mais perguntas e só figurar como apoiador.
Após alguns dias, ele relata que Anderson disse que o vídeo havia viralizado e ele estaria muito visado, razão pela qual ele seria deslocado para fazer imagens de manifestações bolsonaristas na Esplanada dos Ministérios.
Cerca de um mês depois, foi dispensado. Viana diz que nos dias em que ficou no Alvorada, foi abordado algumas vezes por seguranças, mas que outros liberaram o acesso dele dizendo frases como “esse é dos nossos”.
Em uma das mensagens do telefone dele, o contato em nome do dono do Foco do Brasil diz que uma pessoa de nome Vera, da Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), já havia passado os dados dele para os seguranças para que ele tivesse livre acesso.
“MILITÂNCIA” PAGA
Em outra mensagem, o contato de Anderson havia lhe prometido ajuda mensal de R$ 500 para que ele alugasse uma moradia na Vila Planalto, que fica bem próxima ao Alvorada.
O publicitário relata ainda que Anderson, ao lhe convidar para o trabalho, o questionou sobre filiação ao PCdoB. Viana disse que se filiou pouco após ingressar na maioridade, mas que desde então não teve atuação partidária e que era simpático a Bolsonaro. O sistema de registro de filiação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) mostra que ele se filou ao PCdoB em 2007.
Os telefones vinculados a Anderson no aparelho celular de Viana ou estão inativos ou não estão mais com o dono do Foco do Brasil (ao menos um desses foi confirmado como sendo de Anderson em investigação da Polícia Federal).
CAMINHOS OPOSTOS
Foram feitas perguntas ao Foco do Brasil por meio dos perfis no Instagram, mas também não houve resposta. Em abril de 2020, Bolsonaro e Mandetta trilhavam caminhos divergentes na condução da pandemia da covid-19.
O ministro da Saúde defendia posições mais alinhadas às autoridades sanitárias, no sentido de restrição do contato social e pelo uso de máscaras, entre outros pontos.
Bolsonaro já adotava claramente posição anticientífica de minimizar a pandemia e de ser contra o distanciamento social e o fechamento do comércio. Naquela entrevista ao Fantástico, ao ser questionado sobre a divergência de opiniões entre ele e o presidente, Mandetta pediu um alinhamento de discurso porque o brasileiro não estava sabendo se escutava o ministro da Saúde ou o presidente.
Na quinta-feira daquela semana, Mandetta foi demitido e deu lugar a Nelson Teich, que pediu demissão antes de completar um mês no cargo, também em meio a divergências com Bolsonaro.
ALVOS DE BUSCA DA PF
Endereços do Foco do Brasil foram alvos de busca e apreensão da Polícia Federal cerca de dois meses e meio depois, em julho de 2020, no âmbito da investigação dos atos antidemocráticos organizados por bolsonaristas.
A investigação indicou como era a relação de páginas, sites e perfis bolsonaristas com o governo na tentativa de disseminar notícias de interesse do grupo político do presidente.
Em depoimento dado à PF, Anderson Rossi afirmou que era o fundador e único dono do Foco do Brasil e que seu canal tinha ganho entre R$ 50 mil a R$ 140 mil ao mês.
Ele afirmou ainda que chegou a receber vídeos de divulgação de atividades de Bolsonaro enviados pelo então assessor especial da Presidência Tércio Arnaud Tomaz. Tércio confirmou a informação à PF, dizendo que enviava esses vídeos a Anderson assim como a diversos jornalistas.
PEDIDO DE ARQUIVAMENTO
Inicialmente solicitada pela PGR (Procuradoria-Geral da República), a investigação teve pedido de arquivamento feito pelo gabinete de Augusto Aras após se aproximar do núcleo mais próximo de Bolsonaro.
Após isso, o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), utilizou o material reunido pela PF para abrir outro inquérito, batizado de milícias digitais. Atualmente, a apuração concentra todos os casos sobre fake news e atos antidemocráticos.
M. V.
Veja o vídeo da encenação: