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A análise do teórico anticolonial pioneiro é relevante para aprofundarmos o entendimento sobre a guerra de hoje em Gaza. Os paralelos com a guerra de libertação da Argélia e a conduta do Ocidente hoje são muitos. Fanon escreveu que “a violência não era imanente aos negros, era produzida neles pela injustiça da dominação colonial”
JOE GILL*
Em seu seminal Os Condenados da Terra, Frantz Fanon poderia estar escrevendo sobre Gaza quando disse: “Em todas as lutas armadas, existe o que podemos chamar de ponto de não retorno. Quase sempre é marcada por uma repressão enorme e abrangente que envolve todos os setores do povo colonializado.”
Em Israel, Gaza e Cisjordânia, esse ponto chegou.
De Gaza ao Mar Vermelho, em todas as frentes o Ocidente está agora desmascarado como uma máquina de matar sem lei com medo de perder o controle. Genocídio, fome e guerra, defendidos com duplo discurso diplomático de nível olímpico, são suas únicas respostas para o fato de que o Sul Global e as nações do Oriente Médio (se não seus líderes) não desejam mais viver sob a hegemonia dos EUA.
Jean-Paul Sartre, em seu prefácio à obra de Fanon, escreveu sobre o colonialismo ocidental: “Nosso maquiavelismo tem pouco apelo neste mundo amplamente desperto que levou nossas falsidades à terra uma após a outra. O colono só recorre a uma coisa: força bruta… o nativo só tem uma escolha, entre a servidão e a supremacia.”
Fanon foi um pensador revolucionário e um psiquiatra praticante diante do racismo colonial e do seu impacto psíquico sobre o colonizado e o colonizador. Ele e Sartre escreviam sobre a derrota iminente da França na Argélia, após sete anos de guerra brutal.
Pode parecer absurdo, apenas quatro meses após o início desta guerra, dizer que o império anglo-saxônico liderado pelos EUA também enfrenta a derrota. As guerras na Ucrânia e em Gaza expuseram os limites do poder ocidental e a sua abordagem totalmente dupla ao direito internacional e às leis da guerra.
A Rússia é acusada de crimes de guerra na Ucrânia, enquanto a guerra genocida de Israel em Gaza é apoiada por todos os meios necessários, mesmo face à decisão provisória da Corte Internacional de Justiça em Haia contra Israel devido ao seu genocídio em curso.
A decisão, na sequência dessa decisão histórica, de retirar o financiamento à agência de refugiados palestinos UNRWA por parte dos EUA, do Reino Unido e de uma dúzia dos seus aliados majoritariamente europeus é um movimento descarado para matar os palestinos de fome e forçar a rendição do Hamás, que é proibido como um grupo terrorista nos EUA, no Reino Unido e na União Europeia.
O ABJETO DESFINANCIAMENTO DA UNRWA
Com a suspensão do financiamento à UNRWA – o principal organismo de ajuda aos palestinos – com base em alegações israelenses não comprovadas, Israel acredita que ganhou um grande prêmio dos seus aliados ocidentais, o que tornará ainda pior a situação catastrófica em Gaza.
Tudo isto foi concebido para exercer uma pressão inimaginável sobre os palestinos e forçar o Hamás a concordar com uma troca de reféns [nos termos que Israel quer impor]. Para os ministros de Benjamin Netanyahu, a retirada de financiamento da UNRWA permite a próxima fase da sua guerra, que, como a recente conferência sobre Gaza em Israel mostrou, é atingir o seu objetivo de limpeza étnica e reassentamento da Faixa.
Embora no papel tudo isso aponte para Israel e seus aliados terem uma vantagem esmagadora sobre o Hamás e seus aliados na região, dado o poder de fogo militar e o terrorismo financeiro contra eles, a posição é menos otimista para o eixo ocidental do que parece.
Como o economista Philip Pilkington explicou recentemente, o bloqueio houthi [dos revolucionários iemenitas] de navios com destino a Israel através do Mar Vermelho, que está em aplicação desde novembro, é o primeiro na história a ser imposto sem uma marinha.
Esta é uma estratégia de resistência que muda o jogo, com os EUA e seus aliados reagindo com ataques aéreos contra alvos iemenitas e derrubando drones houthis. Em vez de recuar, a resposta do movimento iemenita a isso foi o desafio e a mobilização em massa de milhões de seus apoiadores nas avenidas de Sanaa e outras cidades.
Isso aponta para o problema maior, também exposto pelo ataque de drones desta semana a uma base dos EUA na fronteira Síria-Jordânia. As principais forças que lutam contra os EUA e Israel são atores não estatais altamente motivados, em vez das ditaduras enfraquecidas que o eixo do Império Ocidental atacou no passado.
Pilkington, criador do podcast Multipolaridade, também escreveu esta semana que o apoio ocidental à Ucrânia está em um momento crítico, daí algumas das conversas mais alarmistas vindas das capitais ocidentais. “O Ocidente está em uma posição muito precária agora. Um esforço de guerra que jogou uma enorme quantidade de recursos atrás da Ucrânia está muito perto de se desintegrar.”
FADIGA DA GUERRA NA UCRÂNIA
Os republicanos nos EUA estão vinculando mais apoio à Ucrânia a seus apelos por uma política de fronteira mais dura, enquanto a promessa da UE de 50 bilhões de euros para a Ucrânia provavelmente desaparecerá no buraco negro do orçamento de Kiev.
“A situação política nos Estados Unidos está se tornando superaquecida e caminhando para uma potencial crise constitucional”, escreveu Pilkington. “E tudo isso está ocorrendo com uma eleição extremamente controversa e desestabilizadora se aproximando sobre o país em novembro.”
As tensões entre o governo conservador de Rishi Sunak e o Ministério da Defesa do Reino Unido também estão surgindo sobre a estratégia britânica em relação à guerra da Ucrânia e desafios mais amplos, com o chefe de gabinete cessante levantando a perspectiva do retorno do alistamento militar obrigatório diante do conflito global iminente.
O discurso de Sir Patrick Sanders foi tão crítico da reduzida capacidade militar do Reino Unido que o Ministério da Defesa se recusou a divulgá-lo à mídia. Um assessor de imprensa confirmou à Sky que o discurso de Sanders “não foi e não será” disponibilizado.
Tobias Ellwood, ex-ministro da Defesa do Reino Unido e falcão de guerra, disse à Sky que “há uma sensação de 1939 para o mundo agora”. Refletindo uma visão ocidental comum do que está acontecendo, ele disse: “Esses Estados autoritários estão se rearmando. Há uma aversão ao risco sobre o Ocidente em querer lidar com isso, e nossas instituições globais, como as Nações Unidas, não são capazes de responsabilizar essas nações errantes.”
Enquanto Ellwood vê o Ocidente como avesso ao risco, o resto do mundo vê os EUA e seus aliados em fúria, desafiando a CIJ, matando civis sitiados em Gaza e bombardeando um dos países mais pobres do planeta.
Os EUA e o Reino Unido travam uma guerra no Mar Vermelho com ataques contra o Iêmen em resposta ao bloqueio naval de navios israelenses. Desde os ataques, os houthis declararam que terão como alvo navios do Reino Unido e dos EUA.
Não importa quantas vezes os políticos do Reino Unido e dos EUA neguem que os houthis estejam fazendo isso pelos palestinos em Gaza, é assim que o resto do mundo vê. E graças às redes sociais, as declarações dos iemenitas não podem ser bloqueadas.
RISCOS DE ESCALADA
Cada dia traz novos riscos de escalada. O presidente Joe Biden está sendo pressionado por senadores americanos a atacar o Irã, após a morte de três soldados americanos em uma base na fronteira da Síria em um ataque de drone reivindicado por uma milícia iraquiana.
Ao apoiar a Ucrânia, e potencialmente até mesmo se juntar à guerra, o Ocidente está planejando a Terceira Guerra Mundial. A Rússia está lutando em sua própria fronteira, e Putin pode retratar a guerra como uma luta existencial contra seu eterno inimigo, o Ocidente, que os russos agora parecem estar vencendo.
Cada uma dessas escaladas aponta para uma conflagração generalizada que se estende do Mar Vermelho ao Líbano e ao Báltico. Pode não ser o que Biden ou Sunak querem em um ano eleitoral, com eleitores cansados da guerra e maiorias a favor de um cessar-fogo em Gaza. Mas todas as suas ações estão nos empurrando nessa direção.
As potências ocidentais estão envolvidas em conflitos a milhares de quilômetros de casa, como no tempo de Fanon na Argélia, Congo e Indochina. Hoje, a classe política ocidental se uniu em torno da Ucrânia e de Israel, mas para milhões de pessoas não está mais claro que essas guerras valem a pena ser lutadas.
Como disse o porta-voz do Iêmen, Mohammed al-Bukhaiti: “A guerra hoje é entre o Iêmen, que está lutando para parar os crimes de genocídio, e a coalizão americana e britânica [que] apoia seus perpetradores. Cada partido ou indivíduo neste mundo tem duas escolhas sem escapatória … com quem você está enquanto assiste a esses crimes?”
Fanon, escrevendo há 63 anos, concorda: “O mundo colonial é um mundo maniqueísta… às vezes esse maniqueísmo chega à sua conclusão lógica e desumaniza o nativo, ou para falar claramente, o transforma em animal. O nativo é declarado insensível à ética; ele representa não apenas a ausência de valores, mas a negação de valores… Ele é inimigo dos valores e, nesse sentido, é o mal absoluto.
“O nativo sabe de tudo isso e ri para si mesmo toda vez que vê uma alusão ao mundo animal nas palavras do outro. Pois ele sabe que não é um animal, e é justamente no momento em que percebe sua humanidade que começa a afiar as armas com as quais garantirá a vitória.”
* Jornalista. O artigo é reproduzido do Middle East Eye. Tradução Hora do Povo. Destaques em negrito do HP