O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, desmentiu que, nas mudanças que propõe na lei (no Código Penal, no Código de Processo Penal, na Lei de Execução Penal e em outras leis específicas) estivesse embutida uma “licença para matar”.
Infelizmente, a rigor, não é verdade. O problema é que, nesse sentido, o que existe nas suas propostas é menos alguma ideia sua, que uma concessão de Moro à família Bolsonaro e seu entorno.
As propostas de Moro, aliás, não são todas ruins – ao contrário, existem aquelas que são importantes para o país, sobretudo no campo do combate à corrupção (por exemplo, a mudança, no Código de Processo Penal, para determinar a execução da pena após a condenação por um “tribunal” – ou seja, pela segunda instância, a última que examina o mérito do processo; ou a mudança para explicitar que os recursos ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal – recursos “especial” e “extraordinário” – não têm o efeito de suspender a execução da pena).
Mas, colocar na lei o estatuto pró-milícia de Bolsonaro, isentando de aplicação da pena supostos policiais (na verdade, não apenas policiais) por “excessos dolosos ou culposos”, não honra o passado – nem o presente – do ministro Sérgio Moro.
Antes, vejamos que modificação está sendo proposta, quanto à questão dos “excessos”.
DEFINIÇÕES
O artigo 23 do atual Código Penal (CP) trata da chamada “exclusão de ilicitude” – isto é, situações em que não existe crime, apesar de existir um fato que, em princípio, seria criminoso.
O exemplo mais evidente é aquele de um cidadão (qualquer cidadão, não apenas os que exercem funções policiais) que mata alguém em legítima defesa – sua ou de outros.
O texto atual do Código Penal (CP) é o seguinte:
“Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:
“I – em estado de necessidade;
“II – em legítima defesa;
“III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.
Outra vez, é preciso frisar que o “agente”, de que fala o artigo, não é somente o agente policial, mas qualquer cidadão que age – e, por isso, é chamado “agente”.
Mas é óbvia a importância do dispositivo para os policiais.
O Código também define o que chama de “estado de necessidade”:
“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.
Existe uma única restrição, aliás, importante, a essa razão: “Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo” (cf. CP, art. 24, § 1º, grifo nosso).
O Código Penal também define “legítima defesa”:
“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (cf. CP, art. 25, caput, grifo nosso).
Os autores do Código Penal não acharam necessário definir a terceira possibilidade (quando o ato foi praticado “em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”) para que um fato, capitulado como criminoso pela própria lei, não seja considerado crime.
Naturalmente, consideraram óbvio que um policial, dotado de uma arma pela própria coletividade, não comete crime quando, por exemplo, no enfrentamento de uma quadrilha, fere ou mata um bandido. Aliás, é isso o que está escrito no artigo 23 – logo, não era necessária outra definição.
Aliás, se não fosse assim, por que razão a sociedade iria, não somente permitir o porte, mas comprar armas e entregá-las aos policiais?
Toda a demagogia de Bolsonaro, sobre a isenção de pena para os policiais que matarem bandidos, portanto, já está na lei – isto é, no Código Penal (como, aliás, já estava desde o Código Criminal do Império, de 1830: v. cap. II, “Dos crimes justificáveis”, art. 14).
Logo, pode-se depreender – ou, melhor, é evidente – que Bolsonaro não falava, e não está falando, do policial que mata no cumprimento de seu dever legal e social. Este já é protegido pela lei – que é necessário cumprir.
As declarações de certos bolsonaristas, sobre o assassinato a frio (e à distância) nas favelas, mostram que não são os policiais que cumpriram com seu dever, que Bolsonaro quer amparar.
EXCESSOS
Nas suas propostas de modificação, Moro, no entanto, incorporou essa barbaridade bolsonarista. E, infelizmente, nada indica que essa é a sua convicção – pelo menos, não era.
O que nos parece pior do que se ele estivesse convicto do que, nesse aspecto, apresentou.
O artigo 23 do Código Penal, que citamos acima, tem um parágrafo único:
“O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”.
Ou seja, não é lícito, ainda que a motivação seja justa, o sujeito (seja policial ou não) exceder-se em sua ação.
Se, por exemplo, em legítima defesa, alguém, depois de imobilizar ou render o agressor, acaba por matá-lo, isso é o que o Código Penal chama de “excesso punível”.
Ou, ainda que “no estrito cumprimento de dever legal”, se um policial age com crueldade, ao invés de dureza, também incorre em “excesso punível” – e essa expressão não é uma atenuante.
Tanto não é uma atenuante, que houve um “excesso punível” que redundou em 111 mortes – aquelas do Presídio do Carandiru, em outubro de 1992.
Pois, nas mudanças propostas pelo Dr. Moro, uma delas é incluir, além do parágrafo que transcrevemos, um segundo parágrafo no artigo 23 do Código Penal:
“O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-lase o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção” (grifo nosso).
Na prática, esse segundo parágrafo elimina o primeiro, que trata da punição dos excessos, tornando não puníveis os excessos puníveis, desde que o “agente” alegue “medo, surpresa ou violenta emoção”, que são estados totalmente subjetivos.
Se já existisse esse parágrafo no Código Penal, os responsáveis pela chacina do Carandiru poderiam, simplesmente, ser condenados e irem para casa, pois a pena poderia, legalmente, não ser aplicada.
PERIGO
Repare o leitor que estamos muito longe de idealizar bandidos e marginais (v., por exemplo, HP 13/06/2003, “Carandiru”: o elogio do banditismo).
Nossa opinião é que o combate ao crime requer, da parte da polícia, dureza – mas essa dureza é exatamente o contrário de adesão ao crime e ao banditismo.
Não é o que pensa a família Bolsonaro, que se notabilizou como defensora e representante político-eleitoral das “milícias” – que são, exatamente, uma adesão ao crime organizado por parte de policiais.
Nas palavras do então deputado federal Jair Bolsonaro:
“Quero dizer aos companheiros da Bahia – há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio – que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio” (cf. Câmara dos Deputados, notas taquigráficas, 12/08/2003).
Ou, nas palavras de seu filho, Flávio Bolsonaro, então deputado estadual:
“A milícia nada mais é do que um conjunto de policiais, militares ou não, regidos por uma certa hierarquia e disciplina, buscando, sem dúvida, expurgar do seio da comunidade o que há de pior: os criminosos. Em todas essas milícias sempre há um, dois, três policiais que são da comunidade e contam com a ajuda de outros colegas de farda para somar forças e tentar garantir o mínimo de segurança nos locais onde moram. Há uma série de benefícios nisso. Eu, por exemplo, Sr. Deputado André Corrêa, gostaria de pagar 20 reais, 30 reais, 40 reais para não ter meu carro furtado na porta de casa, para não correr o risco de ver o filho de um amigo ir para o tráfico, de ter um filho empurrado para as drogas. Pergunte a qualquer morador de uma dessas comunidades se ele quer outra coisa, se quer sair de lá, se não está feliz de poder conversar com seus vizinhos na calçada até tarde da noite! É claro que sim, porque ele sabe que não corre mais o risco de morrer!” (cf. cf. Alerj, Discursos e Votações, 07/02/2007).
Esse retrato idílico das “milícias” – que são quadrilhas que, inclusive, extorquem a população, sem falar nos assassinatos e outros crimes sanguinários – só poderia ser traçado por um representante das milícias.
Moro sabe que as “milícias” não são assim. Tanto assim que, em seu próprio projeto, equiparou as “milícias” às quadrilhas do tráfico (v. Moro propõe tornar explícito em lei que milícias são organizações criminosas).
No entanto, ao aceitar a isenção de Bolsonaro para “excessos” – inclusive os dolosos – até mesmo exumou a “violenta emoção”, defesa favorita (e, desde, pelo menos, 1907, frequentemente bem sucedida) dos assassinos das próprias esposas, ou namoradas, juntamente com a famosa “defesa da honra”.
É verdade que, ao contrário da “defesa da honra”, a “violenta emoção” ainda existe no atual Código Penal (artigos 65, 121 e 129).
Como sabe o Dr. Moro, até porque vários juristas já apontaram, no Código Penal a “violenta emoção” é uma transferência para a vítima da culpa pelo crime: “violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima” (CP, art. 65) ou “violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima” (CP, arts. 121 e 129).
Portanto, o parágrafo proposto nas mudanças de Moro, transfere para a vítima – vale acrescentar: mesmo que morta – a responsabilidade do “excesso”.
Além disso, alegar “medo” ou “surpresa” como causa do “excesso”, com o efeito até mesmo de não ser punido (“O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la”) é abrir a porta diretamente para a impunidade.
Até porque não é lícito a um policial alegar o seu próprio medo (muito menos a sua surpresa) para não responder por seus atos, menos ainda por seus “excessos”.
O motivo é aquele, já referido, nas palavras do Código Penal: quem tem “o dever legal de enfrentar o perigo” não pode alegar o medo do perigo ou a surpresa diante dele.
SEM UMA PALAVRA
O jurista Luiz Flávio Gomes, hoje deputado federal (PSB-SP), esteve no lançamento do projeto de Moro, e, depois, conversou com o ministro.
Em sua primeira apreciação, ressaltou vários aspectos positivos do projeto, embora tenha feito uma consideração importante:
“As medidas de endurecimento penal, em regra, não reduzem a criminalidade, quando não acompanhadas de políticas públicas de educação para este fim e da certeza do castigo. Prevenção do crime se alcança com educação obrigatória para todos, em período integral, até os 18 anos. Sem educação de qualidade para todos, em período integral, até os 18 anos, toda política criminal no Brasil tem resultado em fracasso. Já foram 180 reformas penais de 1940 até hoje. O pacotão ora em debate seria a 181ª lei penal. Nunca uma lei penal diminuiu qualquer crime no Brasil” (cf. Luiz Flávio Gomes, Acertos, desacertos e desconsertos no pacotão anticrime do Moro, grifo nosso).
Mas, como o próprio Luiz Flávio Gomes aponta, “as medidas propostas não costumam reduzir a impunidade, salvo quando acompanhadas de políticas públicas de infraestrutura para a polícia judiciária (que investiga os crimes). Sem melhorar as polícias os índices de apuração dos crimes continuarão baixos” (grifo nosso).
Sobre isso, não há uma palavra desse governo.
Aliás, existem várias: todas no sentido de arrochar os gastos públicos, portanto, a educação pública e a polícia pública.
A família Bolsonaro prefere nenhuma educação ou educação privada.
Da mesma forma, prefere uma pseudo-polícia privada: as “milícias”.
Talvez Moro ainda não tenha percebido isso, apesar de cada vez mais evidente – e por isso tenha aceito enxertar as contribuições da família Bolsonaro em seu projeto.
Mas, se o ex-juiz nos permite a expressão pouco protocolar, é melhor ficar esperto.
C.L.
Matérias relacionadas:
Ainda cabe disputar a posição do Moro? Realmente tenho essa dúvida. A gente já precisa de muita energia pra disputar a posição de quem não é essencialmente de esquerda, mas está pela democracia de alguma forma, que não está debaixo do governo. O Moro escolheu o lugar dele, seu lado, e acho pouco sensato acreditar que não o fez com toda a sua consciência. E me incomoda bastante existir parte desse governo que a gente “bate com cuidado” fazendo crer que existe esperança que mude de ideia, conclua que foi um erro, que o governo Bolsonaro não é aquilo que pensava…