LEONARDO WEXELL SEVERO
(HP, 23/08/2017)
Após intensa mobilização liderada pelo presidente Hugo Chávez, um referendo popular aprovou, em 1999, a atual Constituição da República Bolivariana da Venezuela (CRBV), marco anti-imperialista que colocou o país como referência de soberania, democracia e de direitos humanos, sociais e trabalhistas, para os povos do mundo.
Na contramão dos ensinamentos e compromissos nacionalistas de Chávez – e atropelando a Constituição Bolivariana -, o atual presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, promulgou em 24 de fevereiro de 2016 o decreto nº 2.248, criando a “Zona de Desenvolvimento Estratégico Nacional Arco Mineiro do Orinoco (AMO)” e, mais recentemente, patrocinou um arremedo de Assembleia Constituinte, conflagrando ainda mais o país.
Com o objetivo de ter acesso “emergencial” a divisas, Maduro, com o decreto do Arco Mineiro, deu sinal verde para 150 multinacionais de 35 países explorarem, em larga escala – e até por quatro décadas! -, jazidas de ouro, diamantes, coltan (ouro azul), cobre, ferro e bauxita, entre outros minerais estratégicos.
Apesar da pomposidade do nome da “Zona” e da necessidade real de conseguir os recursos – uma vez que o país está mergulhado na depressão, devido à criminosa sabotagem imperialista e à inação do próprio governo – a opção representa, evidentemente, uma submissão aos amos estrangeiros.
Com extensão territorial de 111.843,70 km2, superfície maior do que Portugal (92.212 km2), Cuba (109.212 km2) e Panamá (79.569 km2), o AMO corresponde a 12,2% do território venezuelano e servirá à exploração de centenas de milhões de toneladas de minério, num empreendimento em que o Estado participará com 55% das ações e as transnacionais com os outros 45%.
Tal percentual superior de ações nas mãos do governo poderia gerar alguma ilusão sobre quem vai determinar a direção do empreendimento. Mas a forma não consegue mascarar o conteúdo, altamente danoso, pois o fato é que com “o pagamento de seu subsolo às transnacionais, está se gerando outro rentismo”, avalia o ex-deputado constituinte Freddy Gutiérrez, advogado geral da União, que foi da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Unasul (União das Nações Sul-Americanas).
Para o advogado, “é absolutamente absurdo pensar que a Venezuela, que neste momento não tem fluxo de caixa, entesouramento, tenha força diante de uma multinacional com dólares, libras esterlinas ou francos suíços”. Assim, logicamente, “o domínio associativo será da transnacional, com seu capital, e que por isso vai contar com desonerações alfandegárias e no pagamento de tributos. A elas, inclusive, vai ser dado um regime trabalhista distinto”.
AMPUTAÇÃO
O mais grave, no entanto, assinala Gutiérrez, é que “o Arco Mineiro representa um país dentro de outro país”. “Não foi isso que pensamos como constituintes. Não pode haver uma república dentro de outra república. Nós entendemos que a República Bolivariana da Venezuela é única e indivisível e este decreto é uma amputação de um espaço fantástico, extraordinário do nosso país”.
Muito diferente de Maduro, a Constituição Bolivariana é clara: “a celebração dos contratos de interesse público nacional irá requerer a aprovação da Assembleia Nacional nos casos que determine a lei”. Por isso estabelece em seus artigos 150 e 187 que “não poderá ser celebrado contrato algum de interesse público municipal, estadual ou nacional com Estados ou entidades oficiais estrangeiras ou com sociedades não domiciliadas na Venezuela, nem transferir-se a eles, sem a aprovação da Assembleia Nacional”. O decreto de Maduro também faz tábua rasa do artigo 129 da atual Constituição, que determina que “todas as atividades suscetíveis de gerar danos aos ecossistemas devem ser previamente acompanhadas de estudo de impacto ambiental e sociocultural”.
Diante do sem número de abusos e agressões, lideranças chavistas históricas entregaram um documento na Sala Político Administrativa do Tribunal Supremo de Justiça, solicitando a anulação do decreto. Condenando a “inconstitucionalidade e ilegalidade” da medida governamental, vários ex-ministros de Chávez firmaram o documento, como Ana Luisa Osório (Meio Ambiente), Héctor Navarro (Energia Elétrica), Gustavo Márquez Marín (Indústria e Comércio/Integração e Comércio Exterior), Ramón Rosales Linares (Produção), general Clíver Alcalá (Defesa) e os renomados ativistas pelos direitos humanos e ambientais, Juan García Viloria, dirigente da Maré Socialista; César Romero, Santiago Arconada; Leonardo Simón Domínguez e Edgardo Lander.
No documento, as lideranças explicitam que “o ato administrativo ditado pelo presidente violenta não só direitos fundamentais contemplados na Constituição Bolivariana de 1999, mas também dispositivos normativos nacionais e internacionais, tanto em matéria de ordenamento territorial, proteção de povos indígenas, ambiente, direitos trabalhistas e princípios tributários, assim como procedimentos técnico-legais para a criação da Zona”.
“Todos nós, que entramos com a ação ou fomos ministros do presidente Chávez ou colaboradores próximos dele, com isso, estamos fazendo uma demarcação ética. Estamos nos demarcando, neste caso, do presidente Maduro, porque vai contra o que o presidente Chávez nos deixou”, resumiu Ramón Rosales.
Também integrante da Plataforma pela Anulação do Decreto do Arco Mineiro, frente que congrega os mais amplos setores, Gustavo Márquez Marin aponta que o AMO “simplesmente reproduz o mesmo modelo extrativista associado ao rentismo. Esses recursos não serão o resultado da atividade produtiva do país, da geração para agregar valor, do desenvolvimento de cadeias produtivas, porque mantêm o esquema primário-exportador, igual ao que já temos com o petróleo e o ferro, que seguem sendo exportados em bruto”.
Companheiro do então tenente-coronel Hugo Chávez no levante do Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR 200) contra o governo neoliberal de Carlos Andrés Perez, o general Clíver Alcalá Cordones foi nomeado comandante da Região Estratégica de Defesa Integral (REDI) Guayana. É irmão do general reformado Carlos Alcalá, atualmente prefeito de Vargas pelo Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e manifesta-se totalmente contra o projeto. “É a vida dos venezuelanos que está em perigo. A ambição por uma riqueza vai nos destroçar de forma abismal. O presidente deve retificar a assinatura destes documentos e deve haver uma discussão prévia antes disso, porque estará se comprometendo o futuro do país se continua avançando nesta loucura”, sustenta.
Em relação ao 5 de agosto de 2016, data em que foram assinados contratos com empresas que vão explorar os recursos naturais do AMO, o general sentenciou: “este opróbrio, esta vergonha, é o ato mais desonrado dos últimos 200 anos, embora o presidente tenha se referido a ele como o ato mais importante para o país. Com uma figura que chamam de memorando de entendimento, escondem um contrato de interesse público em que se violam todas as normas. Falam que 60% dos recursos vão para as missões para cativar o povo no assalto que estão fazendo por meio destes contratos”.
Ex-ministra do Poder Popular para as Comunas e Proteção Social, Oly Millan Campos crê que “para além de uma simples assinatura de contratos, o assunto medular é que enquanto se tem um discurso muito socialista e revolucionário, se materializam relações que, como uma trama, vão criando e fortalecendo vínculos entre o capital internacional, grupos econômicos tradicionais e as elites de poder que controlam o estado venezuelano”.
Apesar dos gravíssimos impactos que o Arco Mineiro trará, “até hoje é impossível ter acesso à informação sobre a assinatura dos compromissos e os contratos de exploração, pois não está publicada em nenhum portal estatal ou meio de comunicação, são de total desconhecimento público as condições e detalhes destas negociações”. O alerta do Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos (Provea), do Grupo de Trabalho de Assuntos Indígenas (GTAI) da Universidade dos Andes e do Laboratório da Paz (LabPaz) é voz corrente e generalizada no país.
GOLD RESERVE
O único contrato exposto à opinião pública, recorda a jornalista Scarlet Clement, foi o pactado com a canadense Gold Reserve, que retornou ao país após sua concessão ser suspensa em 2009 por Chávez. Posteriormente, em 2016, a companhia firmou um memorando de entendimento com o Executivo, que lhe concedeu US$ 769,6 milhões a título de “indenização pela estatização de suas operações” e lhe garantiu o estabelecimento de uma empresa mista para retomar as ações.
Responsável de executar, sob sua gestão, a retirada da concessão da Gold Reserve, Ana Luisa Osório identifica no retorno da transnacional um descompromisso com o futuro do país, num tipo de exploração que somente “afiança a lógica rentista”.
“Este é um acordo que reverte toda a política da Revolução Bolivariana antineoliberal, porque de fato está assumindo as condições que aplica o Fundo Monetário Internacional (FMI) aos países em matéria de promoção de investimentos”, protestou o ex-ministro Márquez Marin, explicando que o tratado “é completamente inconstitucional”.
“Que passou com a soberania? Que passou com o anti-imperialismo?”, questionou o sociólogo Edgardo Lander. Professor aposentado da Universidade Central da Venezuela (UCV) e Integrante da Plataforma em Defesa da Constituição, Lander ironiza: “em um ambiente de tão generalizada corrupção, existirão alguns incentivos adicionais para que os altos funcionários deste governo, autodenominado como revolucionário, considerassem conveniente a assinatura deste convênio?”.
O decreto atenta contra a própria trajetória ambientalista da República Bolivariana. A Venezuela foi o segundo país a criar um Ministério do Meio Ambiente no mundo e o primeiro das Américas. O Ministério existiu até setembro de 2014, quando foi extinto e fundido com outro. Após 37 anos, Maduro simplesmente eliminou o órgão estatal com competência exclusiva na matéria.
O Reitor da Universidade Indígena de Tauca, o reconhecido antropólogo Esteban Emilio Monsonyi recordou: “somos o primeiro país com um mega-projeto mineiro, sem nenhum tipo de consulta a seus cidadãos nem às suas comunidades indígenas”.
Após advertir que a continuidade do plano mineiro com “empresas de má fama” representará “deslocamento, marginalização e asfixia social” de etnias como Yekwana, Pemón e Kariña, Monsony foi “democraticamente” removido do cargo.
O professor da Universidade de Tauca, Santiago Arconada descreve o plano como “uma punhalada” na vida e nos cofres públicos, uma vez que o decreto possibilita que as mineradoras comercializem um percentual de ouro no estrangeiro, sem ter nem ao menos que passar pelo Banco Central da Venezuela (BCV). Já o Diário Oficial de 30 de junho de 2015 aponta que “as pessoas, sociedades ou formas de associação que desenvolvem atividades de exploração de ouro em áreas destinadas à atividades mineiras no país deverão vender ao BCV todo o material aurífero obtido”. Novamente, a realidade desmonta a fantasia pseudo-revolucionária madurista.
A Plataforma pela Anulação do Arco Mineiro do Orinoco defende a anulação do decreto 2248, pois “implica em fracionamento da soberania e na restrição de direitos políticos e sociais contemplados na Constituição”. Ao mesmo tempo, sustenta, o AMO “põe em risco populações indígenas, a fonte hídrica mais importante do país, o fornecimento de 70% da eletricidade a nível nacional e de toda a biodiversidade que contempla a região da Guyana, devido à ampla destruição social, cultural e natural que implicam as dinâmicas extrativistas das mineradoras”.
Na avaliação dos integrantes desta Plataforma, a entrega das estratégicas riquezas minerais ao capital estrangeiro só agravará o “flagelo que atualmente envolve, direta e indiretamente, centenas de milhares de pessoas” submetidas “a um regime para-estatal administrado por gangues”. “Esta dinâmica tem trazido sintomas graves de decomposição social (massacres, fossas comuns), numa devastação criminosa e numa contaminação acelerada dos principais rios do Sul, epidemias nacionais de paludismo e difteria e condições de trabalho escravo para as dezenas de milhares que trabalham nas minas em pequena escala”. Além disso, assinala, a capitulação aos ditames externos em nada contribuirá para enfrentar “o colapso do modelo rentista que atravessa a Venezuela, para deter a crise e buscar saídas viáveis ao atoleiro em que se encontra o país”.
VIOLAÇÃO
O artigo 25 do decreto entreguista também limita a conformação de sindicatos, associações ou qualquer tipo de organização, ao assinalar que “os sujeitos que executem ou promovam atuações materiais tendentes à obstaculização das operações totais ou parciais das atividades produtivas serão sancionados”, da mesma forma que cerceia o direito à greve, determinando que “os organismos de segurança do Estado realizarão as ações imediatas necessárias para salvaguardar o normal desenvolvimento das atividades”. “Nenhum interesse particular, gremial, sindical, de associações ou de grupos, ou suas normativas, prevalecerá sobre o interesse geral em cumprimento do objetivo conteúdo no presente decreto”, colocando o Estado como capanga das multinacionais, em clara violação aos artigos 53, 68 e 97 da CRBV. O decreto militariza os territórios indígenas e possibilita a judicialização e criminalização das organizações populares que realizarem atividades na zona.
O fato, denuncia Inti Rodríguez, defensor de direitos humanos e coordenador da área de monitoria e pesquisa do Provea, é que “o governo ofereceu como uma das vantagens às empresas nestes convênios a possibilidade institucional de não ter que cumprir com a Lei Orgânica do Trabalho. E vai além, porque se acrescentam prerrogativas de anular o direito à manifestação e à associação, contando com uma brigada especial de segurança militar que protegerá a estes interesses”.
Projetando em “dois trilhões de dólares” o potencial do Arco, o ministro do Desenvolvimento Mineiro, Roberto Mirabal Acosta, apontou a existência de cerca de 200 milhões de toneladas de bauxita e de 44 mil toneladas entre ouro e diamantes.
Para os açambarcadores dessa riqueza do povo venezuelano, o artigo 21 do decreto de criação do AMO estabelece que “no marco da política setorial, o executivo nacional poderá outorgar desonerações totais ou parciais do Imposto sobre a Renda e do Imposto ao Valor Agregado (IVA)”.
O diretor executivo da Gold Reserve, Rockne Timm, declarou que a empresa retornou ao país devido à magnitude dos benefícios outorgados pelo governo, como a desoneração do Imposto sobre a Renda, dos impostos derivados da entrada de bens tangíveis e intangíveis e dos impostos municipais, pelos quais a Venezuela nada receberá.
Neste momento, como as multinacionais que assinaram tais contratos sabem que eles se encontram num “limbo legal”, estão pressionando e negociando para que a inconstitucional Assembleia Nacional Constituinte busque “legalizá-los”.
A Plataforma pela Anulação do Arco Mineiro enumera várias outras ações que poderiam ter sido tomadas para o país caminhar para a frente, entre elas o enfrentamento à abusiva sangria da dívida externa. “Nos últimos três anos, foram pagos mais de US$ 60 bilhões da dívida externa, implicando numa redução de mais de 60% das importações (incluindo comida e remédios), com relação a 2012. Somado a isso, a PDVSA vendeu bônus à Goldman Sachs com 69% de desconto, recebendo US$ 865 milhões e tendo que pagar US$ 3,556 bilhões em 2022. Em outras palavras, o governo vem endividando fraudulentamente o país à custa de que os venezuelanos tenham menos alimentos e medicamentos”.
O desmoronamento do modelo rentista, avalia a Plataforma, torna “imprescindível que estes e outros pontos de importância nacional sejam debatidos de forma aberta, pública e respeitosa, com todos os setores da população venezuelana, para além das lideranças da polarização, o que é chave para avançar em saídas democráticas e pacíficas à crise”.
Diante de tantas evidências e de tantos apelos ao diálogo para que o Estado venezuelano se abstenha de reprimir as pessoas e organizações que questionam a viabilidade do Arco e visibilizam o que representa como atentado à soberania, à democracia e aos direitos, qual foi a resposta de Maduro? “Quero dizer a estes traidores que o Arco Mineiro segue”.