VALÉRIO BEMFICA (*)
Em 1511 o humanista Erasmo de Rotterdam escrevia “Elogio da Loucura”, obra satírica em que o autor demonstra que não é a Razão que está governando o mundo dos homens, mas a Loucura. Pegamos o título emprestado, mas, cinco séculos depois, para descrever acontecimentos do governo do capitão-messias, precisamos acrescentar a picaretagem como corregente da realidade. Há alguns dias utilizávamos o espaço do HP para denunciar o abandono das estruturas do antigo Ministério da Cultura, que haviam sido “esquecidas” no Ministério da Cidadania, enquanto a Secretaria Especial de Cultura tinha sido alocada à sombra dos laranjais do Ministério do Turismo. Escrevemos então, tentando imaginar os motivos do olvido:
“De que serve uma fundação que não lança editais exclusivamente para a arte evangélica, com ênfase na teologia da prosperidade? Ou um instituto que não eleve o Templo de Edir Salomão à condição de patrimônio brega, quer dizer, cultural da humanidade? Ou uma biblioteca que não tenha alas inteiras dedicadas ao astrólogo de Richmond? De que serve uma fundação que estuda o pensamento brasileiro e que não apoiou a principal atividade intelectual que esta turma promoveu, a saber, a Convenção Brasileira de Terraplanismo? Que dizer então de uma fundação que não controla a quantidade de arrobas que cada quilombola pesa? Ou um monte de museus que ignorem os elaboradíssimos memes criados pela intelectualidade whatsapiana amiga do Carluxo? E uma agência que ainda não teve a brilhante ideia de financiar um reality show chamado “Empreguinho Bom”, comandado pelo Queiroz, a ser exibido na TV do Bispo? Dinheiro posto fora!”
Nos últimos dias fomos recebendo notícias sobre a ocupação dos principais cargos da estrutura ora comandada por um certo Alvim (nada a ver com os esquilos), cidadão em surto psicótico com manifestações paranoides (enxerga comunistas embaixo da cama, dentro do armário, nas coxias dos teatros, fungando no seu cangote…). Pensamos, de início, que tínhamos parcela de culpa, por ter despertado o cidadão: cutucamos a anta com vara curta! Mas este artigo não é, caro leitor, um pedido de desculpas. Refletindo melhor, logo ficamos com a consciência tranquila. No máximo a nossa provocação serviu para a bozolândia chamar seus principais intelectuais para tentar dar um lustro ao seu desastre administrativo. Seria impossível para nós contribuir de alguma forma com as barbaridades que a turma olavista da cultura está perpetrando. O leitor duvida? Vejamos então o escrete escalado por Bob Alvim para cuidar da Cultura brasileira:
Na Funarte, um certo Dante Mantovani, maestro. Não sabemos se ele lançará “editais exclusivamente para a arte evangélica”, como havíamos ironicamente sugerido. Mas, em seu site na internet, o regente destaca que seu trabalho “Tem dado ênfase à criação de grupos corais religiosos na Igreja Católica, priorizando o resgate das Tradições Litúrgicas e do Canto Gregoriano”. O chefe Olavo nunca foi mesmo muito fã dos neopentecostais (na verdade sempre dirigiu a eles impropérios variados) e preferiu indicar um aluno mais próximo dos Arautos do Evangelho. Disse o tal Dante: “Canto Gregoriano em latim para crianças. É nisso que eu acredito!”. Seus altos conhecimentos de Filosofia Política Olaviana permitem-lhe fazer revelações bombásticas: os Beatles vieram para implantar o comunismo, John Lennon tinha um pacto com o diabo, Elvis Presley era produto de agentes soviéticos infiltrados na CIA. E tudo isso sob a regência de Theodor Adorno e seus cúmplices da Escola de Frankfurt. Não, amigo leitor, não estamos brincando. O cidadão falou isso mesmo!
Com relação à bicentenária Fundação Biblioteca Nacional, perguntávamos qual a utilidade para o governo do capitão-messias de “uma biblioteca que não tenha alas inteiras dedicadas ao astrólogo de Richmond?” Resolveram a questão! Chamaram para ocupar a sua presidência um certo Rafael Alves da Silva, dit Rafael Nogueira, discípulo do astrólogo e, como ele, “Aspirante a filósofo e a polímata”. Deu aulas de “Geografia, Ética e Cidadania, Empreendedorismo, Sociologia, Inglês, Redação, História e Filosofia, Humanidades e Redação para Enem e vestibulares”. Comenta-se, também, que o polímata é versado em etiqueta, corte e costura, culinária e javanês. Juram seus amigos que o rapaz tem grande habilidade com livros, valendo-se deles como calço de mesa. Para completar o currículo, acrescente-se que o muar é defensor da monarquia. Vislumbra-se, porém, algum conflito com o presidente da Funarte: o moço declarou-se roqueiro, fã da banda de power metal Angra e lamentou profundamente a morte de seu guitarrista, André Matos. Ou seja, é um comunista em potencial. Talvez seja necessário um desencapetamento conduzido pela Damares para que ele seja incorporado definitivamente aos quadros do governo.
Para a Fundação Cultural Palmares o escolhido foi o capitão do mato Sérgio Nascimento de Camargo. Renegado pela família de ativistas da causa negra, o mau crioulo defendeu as vantagens da escravidão, que teria enriquecido negros na África e sido benéfica para os descendentes dos sequestrados. Ignorando os mais de três séculos de luta e resistência, propugnou a extinção do movimento negro, xingou Zumbi e negou a existência de racismo no Brasil. Para os padrões bolsonaristas, deu uma derrapada, ao afirmar que racismo de verdade existe é nos EUA. Mas nada que um puxão de orelha do tio Olavo não resolva. Para não deixar dúvidas sobre sua alta capacidade de tratar dos assuntos de cultura e arte, cravou em seu twitter em 30 de agosto: “Não gosto dos artistas brasileiros. São parasitas e inimigos do País; deveriam estar na cadeia!“. Em breve, deve anunciar medidas para controlar “a quantidade de arrobas que cada quilombola pesa”. Mas as mudanças não param por aí…
Os esforços pelo resgate do audiovisual brasileiro começaram! Uma certa Katiane de Fátima Gouvêa, também conhecida como Katiane da Seda (o tecido, não o invólucro para o cigarrinho do capeta!), dona de 960 votos na última eleição para a Câmara Federal, orgulhosa integrante da Cúpula Conservadora das Américas e amiguinha do zero à esquerda, Dudu Bolsonaro. Não consta em seu currículo que tenha ido algum dia ao cinema, nem para ver o filme do Bispo. Parece que ajudou a elaborar um dossiê que reclamava do ataque à moral e aos bons costumes nos projetos aprovados pela Ancine.
Para colocar nos eixos o cinema nacional, coisa que desde a Cinédia, passando pela Atlântida, pela Vera Cruz, pelo Cinema Novo, pela Embrafilme, pela retomada, por centenas de prêmios internacionais, milhares de filmes e profissionais mundialmente reconhecidos, ninguém conseguiu, ela será auxiliada pelo colunista social televisivo Edilásio Barra Júnior, cognominado Tutuca. Digamos, em seu benefício, que este tem contato com as artes e com a cultura. Seu pai chegou a empresariar Waldik Soriano e ele chegou a fazer pontas em uma novela e trabalhar como dançarino em um programa de auditório. Suas investidas na área espiritual não deram muito certo e teve de encerrar as atividades de sua Igreja Continental do Amor de Jesus (o cara conseguiu falir uma igreja evangélica!). Sua empresa, a VIP Empreendimentos Artísticos, faz de tudo um pouco, de assessoria a empresas e campanhas políticas até “contratação do buffet, decoração, palco, iluminação, som, dj’s, cantores, atores e banda para melhor realização do evento”. Além de um belo estipêndio, Tutuca será responsável pela gestão do Fundo Setorial do Audiovisual, coisa de R$ 800 milhões anuais. O suficiente para “se financiar um reality show chamado “Empreguinho Bom”, comandado pelo Queiroz, a ser exibido na TV do Bispo”, como vaticinávamos.
Para cuidar de nosso patrimônio histórico os olavistas escalaram um craque: Olav Schrader, militante do Movimento Brasil Real e ligado à Associação dos Moradores do Bairro Imperial de São Cristóvão. Os grifos não são à toa, leitor. O tipinho, bastante blasé, é monarquista de carteirinha. Em recente reportagem de O Globo, sobre a inauguração de seu empreendimento gastronômico, além de discorrer sobre sua interessante vida pelos salões europeus, ele revelou seus planos para “reproduzir a ceia organizada pela Imperatriz Leopoldina e por José Bonifácio, em homenagem a Dom Pedro I, assim que ele retornou de São Paulo, após proclamar a Independência”. Em seu favor poderíamos dizer que foi autor de um texto (o único entre as hostes do capitão-messias) lamentando o incêndio do Museu Nacional. Com um pouco de atraso, é verdade (um ano). E tendo por principal reclamação não o incêndio em si, mas o fato de o espaço ter sido descaracterizado pela República: “O Palácio também foi sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a única Corte do Novo Mundo. Mas onde nasceu uma Rainha de Portugal, haverá talvez um meteorito sob aço e vidro.”, escreveu o cidadão. Ou ainda: “A grande Capela Imperial dentro do Palácio, derrubada à marretadas pela universidade para acomodar esqueletos de dinossauros, já nem em memória mais existe.” Sua endinheirada família está procurando pechinchas no bairro imperial para restauro. Visando, é claro, transformá-los depois em lucrativos empreendimentos. Imagine-se o que será feito com o patrimônio histórico nacional (principalmente o que não puder ser transformado em elogio à monarquia). E o tombamento do Templo de Edir Salomão já está no papo.
Para comandar a Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic) foram buscar em Ribeirão Preto um certo Camilo Calandreli, cantor lírico e fundador do Simpósio Nacional Conservador. Declarou que “Ser cristão, conservador, contra aborto, a favor da vida, contra doutrinação ideológica nas escolas, menino ser menino e menina ser menina não é ser radical”. Ficamos aliviados… A principal tarefa da Sefic é coordenar a Lei de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Rouanet. Mas, segundo o novo secretário, ela “passou a ser utilizada como mecanismo de ideologização política”, e foi apropriada pelo “marxismo cultural”. E disse isso sem ter bebido água-benta e nem cheirado incenso! Graças ao luminar descobrimos que Itaú, Bradesco, Cielo e Arcelor Mittal (alguns dos maiores patrocinadores de 2018) injetaram milhões no financiamento ao comunismo, através das ações subversivas do Masp, da Orquestra Sinfônica Brasileira, da Fundação Bienal de São Paulo.
A Fundação Casa de Rui Barbosa, importante centro de debates e produção de conhecimento no Brasil foi entregue à célebre intelectual Letícia Dornelles. Quem??? Ela mesma, a roteirista dos humorísticos “Partiu Shopping” e “Treme Treme”! Ainda não ligou o nome à pessoa? Letícia é a autora do best-seller “Como Enlouquecer em Dez Lições”! Nada ainda? Tá bom: a moça é apadrinhada política do deputado e pastor Marco Feliciano, respeitável intelectual e recentemente convertido ao olavismo. Questionado por um inocente se o nome da moça era mesmo adequado, o combativo deputado sapecou: “a Fundação Rui Barbosa (sic) não precisa de mais um acadêmico, já tem muitos. Precisa de sangue novo”. Animada, a moça declarou que vai “acelerar as palestras, que hoje são muito acadêmicas”. Provavelmente vai convidar os novos coleguinhas para desfilarem seus conhecimentos sobre a monarquia e a terra plana, em um evento organizado pelo Tutuca. Pobre Águia de Haia…
Só mais um pouco de paciência, estimado leitor. Para finalizar a patota, mestre Alvim indicou a reverenda Jane Silva (Janícia Ribeiro Silva) para a Secretaria de Diversidade Cultural. No Twitter ela se apresenta: “Jane Silva é pacifista. PH.D. Honoris Causa em Filosofia com menção em Ciências Politica.” (assim mesmo: sem acento e no singular). Quem terá concedido a titulação Honoris Causa? Como foi feita a “menção”? Como dizia um padre na escola em que eu estudava, quando confrontado com perguntas difíceis: “estes são os mistérios da fé!” A douta evangelizadora comprova seu pacifismo militante sendo uma das entusiastas da transferência da Embaixada Brasileira de Tel Aviv para Jerusalém: “Busquei apoio incondicional pra Bolsonaro por causa da embaixada”, disse ela em agosto passado, quando até o capitão-messias tentava esquecer da promessa. Em outra página na internet ela apresenta-se como “empresária no ramo de publicidade, presidente da Comunidade Brasil Israel, uma lider em edificar pontes entre judeus e cristãos” (a falta de acento continua por conta de nossa dirigente cultural). Talvez ela considere que a paz no oriente médio tem uma solução fácil: basta eliminar os árabes e integrar judeus e cristãos!
Para o Instituto Brasileiro de Museus ainda não foi designado um novo titular. Está faltando maluco no pedaço.
Pois bem, leitor, este foi o resultado de nossa provocação. Não incluímos aqui todas as boçalidades proferidas pelos nomeados pois, ao que parece sob orientação de Alvim, eles apagaram boa parte do conteúdo de suas redes sociais e se recusaram a dar entrevistas. Se fosse um time de futebol, a equipe de Alvim perderia de goleada para o Íbis. Selecionaram os intelectuais mais preparados da turma do capitão-messias, os olavetes mais destacados, os mais brilhantes pensadores do neo-pentecostalismo para dirigir a Cultura Brasileira e foi isso que conseguiram: uma récua! Entre os homens o uso da gravata foi proibido e substituído por amplos babadores. Entre as mulheres foi dada uma instrução clara para que se contivessem e não fizessem sombra à lucidez da Damares. O ministro Abraão ficou com inveja. Nosso editor sugeriu que a situação pudesse ser um dano colateral da extinção dos manicômios, espalhando pelas ruas napoleões de hospício e profetas dos mais variados tipos, ora recolhidos e agraciados com salários de R$ 17 mil no governo do capitão-messias. É uma boa hipótese.
De qualquer forma, depois da análise dos perfis da turma, ficamos um pouco aliviados. Nossa preocupação era com a destruição de nossas instituições culturais. Mas, vendo a turma escalada para a tarefa, nos tranquilizamos. Muito antes de eles conseguirem destruir alguma coisa o atual governo já terá ido para o seu devido lugar na História. Funarte, Ipham, FCRB, Palmares, Ancine, Ibram, Biblioteca Nacional e o que restou do sistema MinC são muito mais fortes do que esta tropa.
Encerramos nosso último artigo afirmando:
“Felizmente, leitor, a história nos ensina que estes pesadelos não costumam durar muito. Não se apaga a Cultura de um povo – menos ainda uma Cultura rica e pujante como a brasileira – por decreto. A loucura e a estultice como forma de governo têm vida curta. Apedeutas só conseguem se fingir de sábios por pouco tempo. As forças vivas da Nação, os setores comprometidos da sociedade reagem e recolocam os tipos em seus devidos lugares: uns no ostracismo, outros na cadeia o resto no manicômio.”
Vendo os nomes escolhidos para tentar dar cabo da Cultura Brasileira, nossa convicção no que escrevemos aumentou.
(*) Presidente do CPC-UMES
Cheguei a conclusão que o bolsonarismo tem mais de um manicômio.