O fundador da plataforma WikiLeaks, Julian Assange, preso desde 2019 em Londres, e que teve a extradição para os EUA autorizada pelo governo britânico na sexta-feira (17), enfrenta 18 acusações sob a Lei de Espionagem dos EUA por publicar informações confidenciais.
Assange vem sendo punido pelos sucessivos governos estadunidenses por ter divulgado, a partir de 2010, centenas de milhares de arquivos do Pentágono comprovando os crimes de guerra dos EUA no Afeganistão, no Iraque – inclusive o assassinato de dois jornalistas da Reuters em Bagdá -, e no campo de concentração e tortura de Guantánamo.
“A única possibilidade de bloquear uma extradição, se o recurso final for rejeitado, viria do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH). O braço parlamentar do Conselho da Europa, que criou o TEDH, junto com seu Comissário de Direitos Humanos, vir a se opor à “prisão, extradição e processo judicial” de Julian porque representa “um precedente perigoso para os jornalistas”, afirma Chris Hedges, jornalista dos Estados Unidos, em artigo publicado no domingo (18) em diversos portais sob o título original de “A iminente extradição de Julian Assange e a morte do jornalismo”, onde detalha e analisa a obra de Assange e a ilegalidade de sua prisão.
“Julian Assange pode em breve ser condenado à prisão perpétua nos EUA por praticar jornalismo, mas ele não será o único”, adverte Hedges.
A seguir o artigo na íntegra:
CHRIS HEDGES*
“Para Julian Assange, as opções legais estão praticamente esgotadas e ele pode ser extraditado para os Estados Unidos a qualquer momento. Se condenado naquele país, qualquer reportagem sobre o funcionamento interno do poder se tornará crime.
O juiz da Suprema Corte Jonathan Swift – que já trabalhou para várias agências do governo britânico como advogado e disse que seus clientes favoritos são ‘as agências de segurança e inteligência’ – rejeitou na semana passada dois pedidos dos advogados de Julian Assange para contestar sua extradição. A ordem de extradição foi assinada em junho do ano passado pela ministra do Interior, Priti Patel. A equipe jurídica de Julian entrou com um pedido de apelação final, a última opção disponível nos tribunais do Reino Unido. Se aceito, o caso poderá seguir para uma audiência pública perante dois novos juízes da Suprema Corte. Se rejeitado, Julian pode ser imediatamente extraditado para os Estados Unidos, onde será julgado por 18 acusações de violação da Lei de Espionagem, acusações pelas quais pode ser condenado a 175 anos ainda esta semana.
A única possibilidade de bloquear uma extradição, se o recurso final for rejeitado, como presumo que acontecerá, viria do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH). O braço parlamentar do Conselho da Europa, que criou o TEDH, junto com seu Comissário de Direitos Humanos, se opõe à “prisão, extradição e processo judicial” de Julian porque representa “um precedente perigoso para os jornalistas”. Não está claro se o governo do Reino Unido acataria a decisão do tribunal – embora seja obrigado a fazê-lo – se decidir contra a extradição, ou se o Reino Unido extraditaria Julian antes que uma apelação pudesse ser feita no tribunal. Uma vez enviado para os Estados Unidos, Assange seria julgado no Tribunal Distrital Leste da Virgínia, onde o governo dos EUA ganhou a maioria dos casos de espionagem.
A juíza do Tribunal de Magistrados de Westminster, Vanessa Baraitser, recusou-se a conceder o pedido de extradição de janeiro de 2021 do governo dos EUA devido à gravidade das condições que Julian suportaria no sistema prisional dos EUA.
“Diante das condições de quase isolamento sem os fatores de proteção que limitaram seu risco na prisão inglesa de Belmarsh, estou convencida de que os procedimentos delineados pelos EUA não impedirão o Sr. Assange de encontrar uma maneira de cometer suicídio”, disse Baraitser ao entregar sua sentença de 132 páginas, “e por esta razão decidi que a extradição seria vergonhosa por causa de dano mental e ordeno sua libertação.”
A decisão de Baraitser foi anulada na sequência de um recurso das autoridades norte-americanas. O Supremo Tribunal aceitou as conclusões do tribunal de primeira instância sobre o aumento do risco de suicídio e as condições desumanas da prisão. Mas também aceitou quatro garantias da Nota Diplomática dos EUA no. 74, entregue à Justiça em fevereiro de 2021, prometendo que Julian seria bem tratado. O governo dos Estados Unidos alegou que suas garantias “respondem plenamente às preocupações que levaram o juiz [do tribunal de primeira instância] a libertar o Sr. Assange”. As “garantias” afirmam que Assange não será submetido a Medidas Administrativas Especiais (SAMs). Eles prometem que, como cidadão australiano, ele poderá cumprir sua pena na Austrália se o governo desse país solicitar sua extradição. Prometem que receberá atendimento clínico e psicológico adequado. Prometem que, antes e depois do julgamento, Julian não ficará confinado no Centro de Internação de Segurança Máxima (ADX, por sua sigla em inglês) de Florence, Colorado. Ninguém é retido antes do julgamento no ADX Florence. Mas parece perturbador citar ADX Florence não é a única prisão de segurança máxima nos EUA. Assange pode ser recluso em qualquer uma das outras instalações semelhantes a Guantánamo em uma Unidade de Gerenciamento de Comunicações (CMU por sua sigla em inglês). As CMUs são unidades altamente restritivas que reproduzem o isolamento quase total imposto pelas SAMs.
Nenhuma dessas “garantias” vale nem o papel em que foram escritas. Todas vêm com cláusulas de exceção. Nenhuma é juridicamente vinculativa. Se depois de oferecer essas garantias, Julian fizer “qualquer coisa que cumpra os requisitos para imposição de SAM ou a designação de ADX”, ele estará sujeito a essas formas mais severas de controle, admitiu o tribunal.
Se a Austrália não solicitasse a transferência, “isso não poderia ser motivo para criticar os EUA, nem para considerar que as garantias são inadequadas para satisfazer as preocupações da juíza”, diz a sentença. E mesmo que não o fizesse, Julian levaria de 10 a 15 anos para recorrer de sua sentença à Suprema Corte dos Estados Unidos, tempo mais do que suficiente para destruí-lo psicológica e fisicamente.
O avião que espera para levar Assange aos Estados Unidos estará, sem dúvida, bem abastecido com vendagens para os olhos, sedativos, algemas, enemas, fraldas e macacões usados para facilitar as “entregas extraordinárias” realizadas pela CIA.
A extradição de Julian será o próximo passo na execução em câmera lenta do editor e fundador do WikiLeaks e um dos jornalistas mais importantes de nossa geração. Isso garantirá que Julian passe o resto de sua vida em uma prisão norte-americana. Isso criará precedentes legais que criminalizarão qualquer investigação sobre o funcionamento interno do poder, mesmo por cidadãos de outro país. Será um duro golpe para nossa democracia anêmica, que está se metamorfoseando rapidamente em totalitarismo corporativo.
Estou tão chocado com esse ataque frontal ao jornalismo quanto com a falta de indignação do público, especialmente da mídia. O pedido muito tardio do The New York Times, The Guardian, Le Monde, Der Spiegel e El País – todos os quais publicaram material fornecido pelo WikiLeaks – para retirar as acusações de extradição é insuficiente e chega muito tarde. Todos os protestos públicos de que participei em defesa de Assange nos EUA contam com pouca gente. Nossa passividade nos torna cúmplices de nossa própria escravidão.
O CASO DE JULIAN TEM SIDO UMA COMPLETA FARSA JUDICIAL
O ex-presidente equatoriano L. Moreno pôs fim ao direito de asilo de Julian como refugiado político, em flagrante violação do direito internacional. A continuação, autorizou a Polícia Metropolitana de Londres a entrar na embaixada do Equador – território soberano sancionado diplomaticamente – para deter um cidadão naturalizado do Equador. O governo Moreno, que revogou a cidadania de Julian, recebeu um grande empréstimo do Fundo Monetário Internacional por sua ajuda. Donald Trump, ao exigir a extradição de Julian sob a Lei de Espionagem, criminalizou o jornalismo da mesma forma que Woodrow Wilson fez quando fechou publicações socialistas como The Masses.
As audiências, a algumas das quais participei em Londres e outras online, zombaram dos protocolos jurídicos básicos. Incluíram a decisão de ignorar a vigilância da CIA e a gravação de reuniões entre Julian e seus advogados durante sua estada como refugiado político na embaixada, eliminando o sigilo advogado-cliente. Só por isso, o caso deveria ter sido arquivado. Validaram a decisão de acusar Assange, embora ele não seja cidadão americano, sob a Lei de Espionagem. Incluíram contorções kafkianas para convencer os tribunais de que Julian não é jornalista. Ignoraram o Artigo 4 do tratado de extradição entre o Reino Unido e EUA, que proíbe a extradição por crimes políticos.
Observei o procurador James Lewis, representando os Estados Unidos, dar diretrizes legais à juíza Baraitser.
O debate sobre as distorcidas nuances legais nos distrai do fato de que Julian não cometeu nenhum crime na Grã-Bretanha, exceto por uma antiga acusação de violação das condições da fiança quando pediu asilo na Embaixada do Equador. Normalmente, isso acarretaria uma multa. Em vez disso, ele foi condenado a um ano na prisão de Belmarsh, onde está detido desde abril de 2019.
A decisão de solicitar a extradição de Julian, contemplada pelo governo de Barack Obama, foi impulsionada pelo governo Trump após a divulgação pelo WikiLeaks de documentos conhecidos como Vault 7, que expunham programas de ciberguerra da CIA destinados a monitorar e controlar carros, smart TVs, web navegadores e os sistemas operacionais da maioria dos smartphones, bem como Microsoft Windows, MacOS e Linux.
Assange, como apontei em uma coluna enviada de Londres no ano passado, está na mira pelos relatórios da guerra no Iraque publicados em outubro de 2010, que documentam numerosos crimes de guerra dos EUA, incluindo imagens que aparecem no vídeo Collateral Murder (Assassinato Colateral), do assassinato a tiros de dois jornalistas da Reuters e dez outros civis e duas crianças gravemente feridas.
Estão atrás dele porque divulgou a morte de quase 700 civis que se aproximaram demais dos comboios e postos de controle norte-americanos, incluindo mulheres grávidas, cegos e surdos e pelo menos 30 crianças.
Estão atrás dele porque expôs mais de 15.000 mortes não declaradas de civis iraquianos e a tortura e maus-tratos de cerca de 800 homens e crianças, com idades entre 14 e 89 anos, no campo de detenção de Guantánamo.
Estão atrás dele porque nos mostrou que Hillary Clinton ordenou a diplomatas norte-americanos em 2009 que espionassem o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e outros representantes da ONU da China, França, Rússia e Reino Unido, espionagem que incluía a obtenção de DNA, varreduras de íris, impressões digitais e senhas pessoais, tudo o que fazia parte do complexo esquema de vigilância ilegal que incluiu escutas telefônicas do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, nas semanas que antecederam a invasão do Iraque liderada pelos Estados Unidos em 2003.
Estão atrás dele porque revelou que Obama, Hillary Clinton e a CIA apoiaram o golpe militar de junho de 2009 em Honduras que derrubou o presidente democraticamente eleito Manuel Zelaya, substituindo-o por um regime militar corrupto e assassino.
Estão atrás dele porque divulgou documentos revelando que os Estados Unidos lançaram secretamente ataques com mísseis, bombas e ataques de drones no Iêmen, matando dezenas de civis.
Estão atrás dele porque tornou públicas as conversas não oficiais de Hillary Clinton com o Goldman Sachs, conversas pelas quais ela recebeu $ 657.000, uma quantia tão grande que só pode ser considerada um suborno, bem como suas garantias particulares a Wall Street de que ela seguiria suas ordens, enquanto prometia ao público a regulamentação dos bancos e a reforma financeira.
APENAS POR REVELAR ESSAS VERDADES, JULIAN É CULPADO
O sistema judicial norte-americano é ainda mais draconiano do que o britânico. Ele pode usar Medidas Administrativas Especiais, leis antiterrorismo e a Lei de Espionagem para impedir Assange de falar em público, ser libertado sob fiança ou ver as evidências “secretas” usadas para condená-lo.
A CIA foi criada para realizar assassinatos, golpes de Estado, torturas, sequestros, chantagens, difamação e espionagem ilegal. Apesar das limitações de seus estatutos, tem como alvo cidadãos norte-americanos. Essas atividades foram expostas em 1975 pelas audiências do Comitê Church no Senado e do Comitê Pike na Câmara dos Deputados.
Trabalhando com a UC Global, a empresa de segurança espanhola da embaixada do Equador, a CIA submeteu Julian a vigilância digital e de vídeo 24 horas por dia. Falava-se em sequestrá-lo e assassiná-lo enquanto estava na embaixada, incluindo planos para um tiroteio de rua com o envolvimento da Polícia Metropolitana de Londres. Os Estados Unidos alocam um orçamento secreto de 52 bilhões de dólares por ano para esconder múltiplos projetos clandestinos realizados pela Agência de Segurança Nacional, a CIA e outras agências de inteligência, normalmente fora do escrutínio do Congresso. Todas essas atividades clandestinas, especialmente após os ataques de 11 de setembro, se expandiram maciçamente.
O senador Frank Church, depois de revisar os documentos da CIA, fortemente adulterados, entregues ao seu comitê, definiu a atividade secreta da CIA como “um disfarce semântico para o assassinato, a coerção, a chantagem, o suborno, a disseminação de mentiras”.
A CIA e as agências de inteligência, juntamente com os militares, que operam sem supervisão efetiva do Congresso, são os motores que impulsionam a extradição de Assange. Ao expor seus crimes e mentiras, Julian infligiu-lhes uma ferida grave. Eles exigem vingança. O controle que essas forças pretendem exercer no exterior é o mesmo controle que pretendem exercer em casa.
Julian Assange pode em breve ser condenado à prisão perpétua nos EUA por praticar jornalismo, mas ele não será o único.
*Chris Hedges é um jornalista norte-americano vencedor do Prêmio Pulitzer. Foi correspondente estrangeiro do The New York Times por 15 anos, servindo como chefe para os escritórios do Oriente Médio e dos Bálcãs. Nos últimos anos, ele estabeleceu uma relação pessoal com Assange e se tornou um de seus mais fortes defensores: “O que está em jogo não é apenas a liberdade de Julian, mas a liberdade de expressão e de imprensa”.
Fonte: https://chrishedges.substack.com/p/listen-to-this-article-the-imminent?utm_source=substack&utm_medium=email#details