
Zema rejeita ajuda do Exército Brasileiro, que deixou 968 militares de prontidão
“O mais horrível era o choro das crianças”, disse um dos voluntários que, desde sexta-feira (25/01), ajudam no socorro às vítimas do novo desastre da Vale, em Brumadinho. “Havia os gritos dos adultos, o choro das crianças, o fogo nos postes, a lama… a lama levou tudo. Quem sobreviveu, não conseguia andar. Todo mundo parado no meio do barro. Um inferno. Um horror”.
Enquanto os bombeiros, equipes da Polícia Militar e da polícia civil, Polícia Rodoviária Federal, médicos, enfermeiras, travavam uma luta espantosa contra as consequências da irresponsabilidade, da ganância e do completo desprezo pela vida das pessoas do povo, Bolsonaro chegava a uma impressionante constatação.
“Não quero culpar os outros pelo que está acontecendo”, disse Bolsonaro, “mas algo está sendo feito errado”.
A declaração mostra a perspicácia do atual ocupante do Planalto (“algo está sendo feito errado”).
E mostra o seu servilismo, quando o autor dos crimes contra o Brasil tem dinheiro (“não quero culpar os outros”).
A declaração foi logo após sobrevoar a região do desastre, a bordo de um helicóptero, no sábado.
Na sexta-feira, com seu português algo macarrônico, Bolsonaro dissera que o problema não era do governo: “a questão da Vale do Rio Doce não tem nada a ver com o governo federal”.
A “questão” era o estouro da barragem da Vale, com a morte provável de centenas de pessoas, que Bolsonaro chamou de “acidente”.
No dia seguinte, ele passou no local – pelo ar.
Foi o máximo que conseguiu se aproximar de uma tragédia que já tinha matado, até segunda-feira (28/01) à noite, 65 pessoas – e ainda havia 279 desaparecidos.
Ao seu lado, no helicóptero, estava um certo Romeu Zema, governador de Minas Gerais, que, dois dias antes do desastre, anunciara, com a Vale, o aumento da mineração em Brumadinho – Zema é publicamente contra as licenças ambientais para as mineradoras. É a favor da exploração geral e espoliação irrestrita de seu próprio Estado.
O mesmo Zema, até a noite de segunda-feira, estava contra a ajuda do Exército Brasileiro em Brumadinho – havia 968 homens do Exército de prontidão, esperando a ordem para ajudar. Zema, no entanto, recusou.
Por quê?
Não sabemos ao certo. Disse Zema que o Exército iria mais atrapalhar do que ajudar. Como ninguém acreditou que esse fosse o seu real motivo, alguns aventaram que Zema não quer abafar o marketing dos israelenses que por lá baixaram, a pedido de Bolsonaro, já um pouco abalado pelas declarações do comandante das operações (v. “Equipamentos de Israel são ineficientes”, afirma comandante das operações em Brumadinho).
Outros aventaram uma hipótese talvez mais provável: Zema é um sujeito muito estúpido.
TUDO CERTO
Depois da tragédia, desde Augusto Heleno, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, até Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente, apareceram para dizer que o governo é favorável a um maior rigor nas licenças ambientais.
Antes de sexta-feira – antes do estouro de Brumadinho –, todos esses cavalheiros diziam, precisamente, o contrário (e continuam, como todo mundo sabe, achando a mesma coisa).
Mas isso não é um estorvo para a sua capacidade de mentir. Alguns, como o ministro Salles, deram uma declaração pela manhã e outra, oposta, à tarde (v. Ministro ignora tragédia e defende afrouxar licenças ambientais).
A declaração de Bolsonaro, aliás, diz tudo (aliás, quase tudo): “não quero culpar os outros pelo que está acontecendo”.
A quem ou a que ele se referia?
É claro que ele não quer culpar os culpados: a Vale e sua diretoria criminosa.
Para esses, a impunidade. Se não, vejamos:
Em que lugar do mundo (estamos nos referindo aos lugares decentes do mundo) um desastre dessas proporções não provocaria a queda imediata da diretoria da empresa – seja por demissão, devido à intervenção da sociedade, ou, quando há vergonha suficiente, por renúncia dos diretores?
Entretanto, o presidente da Vale, um certo Schvartsman, concedeu entrevistas em que diz que a Barragem da Mina do Feijão estourou porque ele e sua empresa fizeram tudo certo (literalmente: “Existia uma série de ações em andamento, que não foram invenção da Vale, foram feitas por especialistas internacionais de renome, e nós seguimos à risca tudo. E eu não sou técnico. Segui toda a orientação dos técnicos, e esse negócio deu no que deu”).
Esse mesmo Schvartsman, ao tomar posse como presidente da Vale, em 22 de maio de 2017, disse o seguinte:
“Para a Vale, que é uma empresa de recursos naturais, sustentabilidade não é uma opção, mas uma obrigação. A verdadeira sustentabilidade é sobre postura e atitude. Além disso, devemos adotar juntos um lema: ‘Mariana nunca mais’. Que tenha sido a última vez que essa empresa esteja envolvida direta e indireta num desastre ecológico e social da dimensão que foi Mariana. Quero ter junto com vocês o compromisso de ser referência mundial de sustentabilidade.”
Agora, há 65 mortos já resgatados, que talvez cheguem a mais de 200, há um número ainda não contado de pessoas desalojadas e casas destruídas – mas sabemos, por Schvartsman, que isso se deve à excelência do seu serviço e da Vale, que fizeram tudo certo, de acordo com os padrões “internacionais”.
Isso deveria ser suficiente para um sujeito ir parar na cadeia, mas Schvartsman nem pensa em se demitir – e ninguém no governo exige que ele se demita. Não se trata, como em outros países, de um haraquiri diante das câmeras de TV. Ninguém, no governo, exige nem ao menos que ele se demita.
Em que país nós estamos?
No momento, em um país onde o presidente da República, depois de um desastre horrendo que matou, provavelmente, duas centenas de brasileiros, apenas sobrevoa o local, dentro de um helicóptero – e não pousa em terra nem para falar com as vítimas, nem para ver os danos ao meio ambiente de seu país, nem para cumprimentar as equipes que, mesmo com um salário baixo, ou sem nenhum salário, se desdobram para enfrentar as consequências de um crime monstruoso contra a Nação.
Alguém disse, na TV ou em algum jornal, que uma parte do Brasil fora soterrada pela lama da Vale.
Mas Bolsonaro, depois de dizer que era um problema só da Vale, mas não do governo (provavelmente, o Brasil não diz respeito ao seu governo), declara que “não quero culpar os outros pelo que está acontecendo” – ou seja, não quer culpar a Vale.
Bolsonaro não gosta do povo – acha essa mistura pouco branca, que somos nós todos, um sinal de inferioridade. Por isso, a única coisa que conseguiu dizer sobre a tragédia dos moradores e trabalhadores da Vale foi: “Difícil ficar diante de todo esse cenário e não se emocionar”.
Resta saber porque ele não queria se emocionar, a ponto de dizer que era “difícil não se emocionar”.
A resposta, aliás, é algo óbvia: porque ele ficou o mais longe que pôde desse “cenário” (cenário? Será que tudo, para Bolsonaro, é um “cenário”, uma cena?) e não se emocionou com a tragédia (quem manda esse povo ficar debaixo de uma barragem da Vale?), mas achou que devia dar alguma declaração mostrando “emoção”.
No entanto, o que ocorreu em Brumadinho é uma síntese da política de Bolsonaro.
Muitos lembraram que todas as propostas do governo Bolsonaro são no sentido de acabar com qualquer fiscalização ou regulação do Estado – ou seja, da sociedade – na área ambiental, além de privatizar até o ar que respiramos.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu, há poucos dias, o fim do licenciamento ambiental pelo poder público, com sua substituição pelo “auto-licenciamento” (sic) ou “licenciamento automático” (sic) das empresas.
A diretriz, disse ele, partiu de Bolsonaro: “queremos tirar o Estado do cangote do empresário”.
No caso, a fiscalização da barragem da Vale que estourou estava sendo feita pela própria Vale, porque, em dezembro, com ajuda do governo de Fernando Pimentel, do PT, e com a abstenção do Ibama, ela conseguiu o rebaixamento de sua classificação de risco (cf. Vale rebaixou categoria de Mina do Feijão para conseguir licenciamento, O Tempo, 25/01/2019).
Portanto, foi exatamente a política preconizada por Bolsonaro e seus asseclas que predominou na fiscalização da barragem da Mina do Feijão.
Resta lembrar que jamais aconteceu algo semelhante durante os 55 anos em que a Vale foi uma empresa pública, uma empresa estatal, uma empresa pertencente ao povo brasileiro.
Agora, é o segundo grande desastre em três anos.
Aliás, esse é o segundo grande desastre que aparece na mídia.
Há um sem número de desastres que não apareceram, mas já motivaram, inclusive, condenações judiciais (p. ex., Parauapebas: entre o céu e o inferno, Justiça determina que Vale paralise mineração em Onça Puma e obriga mineradora a indenizar comunidades indígenas em R$ 100 milhões e Vale é condenada por danos ambientais no Pará).
O servilismo de Bolsonaro aos monopólios, nesse caso da Vale aparece como um escândalo, pelas mortes e pelo povo afogado debaixo de lama.
Seu vice, Mourão, percebeu, pelo menos em parte, a situação: disse, na segunda-feira, uma daquelas frases que estão certas, mas nada significam nesse governo – “tem que punir mesmo”. Esclareceu, em seguida, que estava se referindo a multas, “tal como já está sendo feito”.
Depois, no mesmo dia, Mourão declarou que o governo “estudava a possibilidade” de afastar a diretoria da Vale, mas “eu não tenho a certeza que [o governo] possa fazer essa recomendação”.
A Segurança Nacional, tão propalada por Mourão e Bolsonaro, portanto, acaba na porta da Vale – porque eles a confundem com a segurança dos assaltantes (e, na verdade, assassinos) do país.
Quanto a Bolsonaro, sua assessoria emitiu nota para informar que ele está acompanhando a situação em Brumadinho diretamente do hospital paulista em que se internou para realizar uma cirurgia.
Se nem quanto esteve lá, pousou no chão para tomar contato com o problema, pode-se imaginar o que é esse acompanhamento pós-operatório…
C.L.
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