O público dos EUA está sendo enganado, mais uma vez, para despejar bilhões em outra guerra sem fim. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o governo do EUA gastou entre 45% e 90% do orçamento federal em operações militares passadas, atuais e futuras, adverte o jornalista laureado com o Prêmio Pulitzer.
CHRIS HEDGES*
A cartilha que os cafetões da guerra usam para nos atrair para um fiasco militar após o outro, incluindo Vietnã, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e agora a Ucrânia, não muda.
A liberdade e a democracia estão ameaçadas. O mal deve ser vencido. Os direitos humanos devem ser protegidos. O destino da Europa e da Otan, juntamente com uma “ordem internacional baseada em regras” está em jogo. A vitória está garantida.
Os resultados também são os mesmos. As justificativas e narrativas são expostas como mentiras. O prognóstico alegre é falso. Aqueles em nome de quem supostamente lutamos são tão venais quanto aqueles contra quem lutamos.
A invasão russa da Ucrânia foi um crime de guerra, embora tenha sido provocado pela expansão da Otan e pelo apoio dos Estados Unidos ao golpe “Maidan” de 2014, que derrubou o presidente ucraniano eleito democraticamente, Viktor Yanukovych. Yanukovych queria a integração econômica com a União Européia, mas não à custa dos laços econômicos e políticos com a Rússia. A guerra só será resolvida por meio de negociações que permitam aos russos étnicos na Ucrânia terem autonomia e proteção de Moscou, bem como a neutralidade ucraniana, o que significa que o país não pode aderir à Otan. Quanto mais essas negociações demorarem, mais os ucranianos sofrerão e morrerão. Suas cidades e infraestrutura continuarão a ser reduzidas a escombros.
A GUERRA É UMA EXTORSÃO
Mas esta guerra por procuração na Ucrânia é projetada para servir aos interesses dos EUA. Enriquece os fabricantes de armas, enfraquece os militares russos e isola a Rússia da Europa. O que acontece com a Ucrânia é irrelevante.
“Primeiro, equipar nossos amigos na linha de frente para se defender é uma maneira muito mais barata – tanto em dólares quanto em vidas americanas – de degradar a capacidade da Rússia de ameaçar os Estados Unidos”, admitiu o líder republicano no Senado, Mitch McConnell.
“Segundo, a defesa efetiva de seu território pela Ucrânia está nos ensinando lições sobre como melhorar as defesas de parceiros que são ameaçados pela China. Não é surpresa que altos funcionários de Taiwan apoiem tanto os esforços para ajudar a Ucrânia a derrotar a Rússia.
Em terceiro lugar, a maior parte do dinheiro destinado à assistência à segurança da Ucrânia não vai de fato para a Ucrânia. É investido na fabricação de defesa americana. Financia novas armas e munições para as forças armadas dos EUA para substituir o material antigo que fornecemos à Ucrânia. Deixe-me ser claro: esta assistência significa mais empregos para os trabalhadores americanos e novas armas para os militares americanos”.
Uma vez que a verdade sobre essas guerras sem fim penetra na consciência pública, a mídia, que promove servilmente esses conflitos, reduz drasticamente a cobertura. Os desastres militares, como no Iraque e no Afeganistão, continuam em grande parte fora de vista. No momento em que os EUA admitem a derrota, a maioria mal se lembra de que essas guerras estão sendo travadas.
PORTA GIRATÓRIA
Os cafetões da guerra que orquestram esses fiascos militares migram de governo em governo. Entre os cargos, eles estão abrigados em think tanks – Project for the New American Century, American Enterprise Institute, Foreign Policy Initiative, Institute for the Study of War, The Atlantic Council e The Brookings Institution – financiados por corporações e pela indústria de guerra. Assim que a guerra na Ucrânia chegar à sua conclusão inevitável, esses Dr. Strangeloves tentarão iniciar uma guerra com a China. A Marinha e os militares dos EUA já estão ameaçando e cercando a China. Deus nos ajude se não os impedirmos.
Esses cafetões da guerra nos levam a um conflito após o outro com narrativas lisonjeiras que nos pintam como os salvadores do mundo. Eles nem precisam ser inovadores. A retórica é retirada do velho manual. Ingenuamente engolimos a isca e abraçamos a bandeira — desta vez azul e amarela — para nos tornarmos agentes involuntários de nossa autoimolação.
COMPLEXO INDUSTRIAL-MILITAR DOS EUA
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o governo gastou entre 45% e 90% do orçamento federal em operações militares passadas, atuais e futuras. É a maior atividade sustentada do governo dos Estados Unidos. Deixou de importar — pelo menos para os cafetões da guerra — se essas guerras são racionais ou prudentes. A indústria de guerra se metastatiza nas entranhas do império americano para esvaziá-lo por dentro. Os EUA são insultados no exterior, afogados em dívidas, têm uma classe trabalhadora empobrecida e estão sobrecarregados com uma infraestrutura decadente, bem como serviços sociais de má qualidade.
As forças armadas russas – por causa do baixo moral, fraco comando, armas obsoletas, deserções, falta de munição que supostamente forçava os soldados a lutar com pás e severa escassez de suprimentos – não deveriam entrar em colapso meses atrás? Putin não deveria ser afastado do poder? As sanções não deveriam mergulhar o rublo em uma espiral mortal? Não iria a separação do sistema bancário russo do SWIFT, o sistema internacional de transferência de dinheiro, supostamente paralisar a economia russa? Como é que as taxas de inflação na Europa e nos Estados Unidos são mais altas do que na Rússia, apesar desses ataques à economia russa?
Os quase US$ 150 bilhões em equipamento militar sofisticado, assistência financeira e humanitária prometidos pelos EUA, UE e 11 outros países não deveriam ter mudado o rumo da guerra? Como é que talvez um terço dos tanques que a Alemanha e os EUA forneceram foram rapidamente transformados por minas, artilharia, armas antitanque, ataques aéreos e mísseis russos em pedaços carbonizados de metal no início da alardeada contra-ofensiva? Essa última contra-ofensiva ucraniana, originalmente conhecida como “ofensiva da primavera”, não deveria perfurar as linhas de frente fortemente fortificadas da Rússia e recuperar grandes extensões de território? Como podemos explicar as dezenas de milhares de baixas militares ucranianas e os recrutamentos militares da Ucrânia? Mesmo nossos generais aposentados e ex-funcionários da CIA, FBI, NSA e Segurança Interna, que atuam como analistas em redes como CNN e MSNBC, não podem dizer que a ofensiva foi bem-sucedida.
DEMOCRACIA, QUE DEMOCRACIA?
E a democracia ucraniana que lutamos para proteger? Por que o parlamento ucraniano revogou o uso oficial de línguas minoritárias, incluindo o russo, três dias após o golpe de 2014? Como racionalizar os oito anos de guerra contra os russos étnicos na região de Donbass antes da invasão russa em fevereiro de 2022? Como explicamos a matança de mais de 14.200 pessoas e 1,5 milhão de deslocadas antes da invasão russa no ano passado?
Como defendemos a decisão do presidente Volodymyr Zelenskyy de banir onze partidos de oposição, incluindo a Plataforma de Oposição pela Vida, que tinha 10% das cadeiras no Conselho Supremo, o parlamento unicameral da Ucrânia, juntamente com o Partido Shariy, Nashi, Bloco de Oposição, Oposição de Esquerda, União das Forças de Esquerda, Estado, Partido Socialista Progressista da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, Partido Socialista e Bloco Volodymyr Saldo? Como podemos aceitar a proibição desses partidos de oposição – muitos dos quais são de esquerda – enquanto Zelenskyy permite fascistas dos partidos Svoboda e do Setor de Direita, bem como do Batalhão Banderista Azov e outras milícias extremistas, florescer?
Como lidamos com os expurgos anti-russos e as prisões de supostos “quinta colunistas” que varrem a Ucrânia, dado que 30% dos habitantes da Ucrânia falam russo? Como responder aos grupos neonazistas apoiados pelo governo de Zelenskyy que perseguem e atacam a comunidade LGBT, a população cigana, protestos antifascistas e ameaçam vereadores, meios de comunicação, artistas e estudantes estrangeiros? Como podemos tolerar a decisão dos EUA e seus aliados ocidentais de bloquear as negociações com a Rússia para acabar com a guerra, apesar de Kiev e Moscou aparentemente estarem prestes a negociar um tratado de paz?
AO INVÉS DE “DIVIDENDOS DA PAZ”, DESASTRE ANUNCIADO
Fiz uma reportagem sobre a Europa Central e Oriental em 1989, durante a dissolução da União Soviética. A Otan, presumimos, havia se tornado obsoleta. O presidente Mikhail Gorbachev propôs acordos econômicos e de segurança com Washington e a Europa. O secretário de Estado James Baker no governo de Ronald Reagan, junto com o ministro das Relações Exteriores da Alemanha Ocidental, Hans-Dietrich Genscher, garantiu a Gorbachev que a Otan não seria estendida além das fronteiras de uma Alemanha unificada. Ingenuamente, pensamos que o fim da Guerra Fria significava que a Rússia, a Europa e os EUA não precisariam mais desviar recursos maciços para suas forças armadas.
O chamado “dividendo da paz”, no entanto, era uma quimera.
Se a Rússia não quisesse ser o inimigo, a Rússia seria forçada a se tornar o inimigo. Os cafetões da guerra recrutaram ex-repúblicas soviéticas para a Otan, pintando a Rússia como uma ameaça. Os países que aderiram à Otan, que agora incluem Polônia, Hungria, República Tcheca, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte, reconfiguraram suas forças armadas, muitas vezes em dezenas de milhões em empréstimos ocidentais, para se tornarem compatíveis com o equipamento militar da Otan. Isso gerou bilhões em lucros para os fabricantes de armas.
OTAN MARCHA PARA LESTE
Foi universalmente entendido na Europa Central e Oriental após o colapso da União Soviética que a expansão da Otan era desnecessária e uma provocação perigosa. Não fazia sentido geopolítico. Mas fazia sentido comercial. A guerra é um negócio.
Em um telegrama diplomático classificado – obtido e divulgado pelo WikiLeaks – datado de 1º de fevereiro de 2008, escrito de Moscou e endereçado ao Estado-Maior Conjunto, Cooperativa Otan-União Européia, Conselho de Segurança Nacional, Coletivo Político Rússia Moscou, Secretário de Defesa, e Secretário de Estado, havia um entendimento inequívoco de que a expansão da Otan arriscava conflito com a Rússia, especialmente sobre a Ucrânia.
“A Rússia não apenas percebe o cerco [pela Otan] e os esforços para minar a influência da Rússia na região, mas também teme consequências imprevisíveis e descontroladas que afetariam seriamente os interesses de segurança russos”, diz o telegrama. “Os especialistas nos dizem que a Rússia está particularmente preocupada que as fortes divisões na Ucrânia sobre a adesão à Otan, com grande parte da comunidade étnica russa contra a adesão, possam levar a uma grande divisão, envolvendo violência ou, na pior das hipóteses, guerra civil. Nessa eventualidade, a Rússia teria que decidir se iria intervir; uma decisão que a Rússia não quer ter que enfrentar…”
“Dmitri Trenin, vice-diretor do Carnegie Moscow Center, expressou preocupação de que a Ucrânia seja, a longo prazo, o fator potencialmente mais desestabilizador nas relações EUA-Rússia, dado o nível de emoção e neuralgia desencadeado por sua busca pela adesão à Otan…” lê-se no cabograma.
“Como a adesão permaneceu divisiva na política interna ucraniana, criou uma abertura para a intervenção russa. Trenin expressou preocupação de que elementos dentro do establishment russo seriam encorajados a se intrometer, estimulando o incentivo aberto dos EUA a forças políticas opostas e deixando os EUA e a Rússia em uma postura clássica de confronto”.
A invasão russa da Ucrânia não teria acontecido se a aliança ocidental tivesse honrado suas promessas de não expandir a Otan além das fronteiras da Alemanha e a Ucrânia tivesse permanecido neutra. Os proxenetas da guerra conheciam as consequências potenciais da expansão da Otan. A guerra, no entanto, é sua única vocação, mesmo que leve a um holocausto nuclear com a Rússia ou a China.
A indústria da guerra, não Putin, é nosso inimigo mais perigoso.
* Tradução e subtítulos Hora do Povo. Originalmente publicado por scheerpost.com